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Lei de Responsabilidade Fiscal: como a Lei Complementar nº 131/2009 democratizou o controle orçamentário?

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4 – O controle popular na perspectiva da jurisprudência brasileira

Os Tribunais brasileiros gradativamente consolidam posicionamentos jurisprudenciais alinhados ao ideal do Estado Democrático de Direito: a participação popular no controle fiscal e funcional da Administração Pública. Embora ainda seja bastante incipiente o reconhecimento de que o povo é o legítimo detentor do poder, sendo, portanto, o principal interessado na prestação das contas públicas, nota-se uma reviravolta na concepção da fiscalização ser somente exercida pelos órgãos que assumem essa característica.

A doutrina e a própria jurisprudência renovam a argumentação jurídica a partir de fundamentos lastreados no texto da Constituição, quebrantando o paradigma do Estado Social, em que o Estado avocava para si a responsabilidade pela prestação de políticas públicas e o controle de seus próprios atos.

Na perspectiva do modelo calcado pelo exercício efetivo da democracia popular, o monopólio do poder de controle e fiscalização pelo Estado perde eficácia. Abandona-se a crença de representação e o povo passa a ocupar a posição de co-responsável pela gestão fiscal e administrativa através de conselhos municipais, ouvidorias, audiências públicas e demais instrumentos de participação.

O poder constituinte originário assegurou nessa nova ordem constitucional a possibilidade para a abertura do canal de participação popular direta nos atos de gestão pública. A Lei Complementar nº. 101, que dispõe sobre normas direcionadas à responsabilidade na gestão fiscal, foi criada justamente para especificar a norma constitucional que garante o controle e a fiscalização do povo enquanto detentor do poder.

Mesmo tendo se passado mais de vinte anos de promulgação da Constituição, não apenas os gestores públicos apresentam-se resistentes e receosos quanto ao compartilhamento com o povo pela responsabilidade administrativa e fiscal, mas também a jurisprudência. São escassas as decisões jurisdicionais contendo argumentos jurídicos construídos sob o respaldo constitucional, que reconhece a força dos instrumentos de controle e fiscalização popular.

A lei nº. 4.717 de 29 de junho de 1965, por exemplo, que criou a ação popular, apesar de prever que qualquer cidadão é parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, ainda é pouco explorada. Se já é raro se constatar a tramitação de uma ação popular sob o manto da lei em comento, uma decisão judicial envolvendo a referida ação torna-se ainda mais infreqüente.

Contudo, a inovação na lei de responsabilidade fiscal sinaliza a busca por novos horizontes. Sem dúvida alguma, certifica-se a ocorrência de um grande avanço o legislador favorecer a possibilidade de o povo interferir no processo de prestação de contas. E isso ainda é consubstanciado pelo fato da jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) dar indícios de que, o povo enquanto legítimo detentor do poder, precisa estar ciente dos atos praticados pelos gestores públicos, senão vejamos:

Auditoria. BACEN. Verificação da economicidade, eficiência e eficácia dos gastos com publicidade e propaganda do Governo Federal e apuração de denúncia acerca do assunto. Veiculação de campanhas desconectadas dos objetivos institucionais da autarquia. Campanhas comemorativas do Plano Real sem o conhecimento das peças básicas orientadora dos gastos dos recursos pelo BACEN e sem autorização expressa da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Utilização de meios de comunicação de massa inadequados ao esclarecimento do Programa PROER, com o objetivo de direcionar a opinião pública no sentido de amenizar a imagem negativa do Programa. Celebração de termo aditivo para pagamento de diárias e passagem vedado pelo contrato original. Celebração de termo aditivo para prorrogação da vigência de contrato para realização de serviços que já dispunham de valor global para execução. Acolhimento das justificativas apresentadas por alguns responsáveis. Alegações de defesa do ex-Diretor Administrativo do BACEN rejeitadas, em parte. Multa. Determinação. Juntada às contas.

(...)

Ora, para poder participar realmente dos atos de governo, o cidadão precisa ficar sabendo o que o governo está fazendo ou pretende fazer. Sem publicidade fica seriamente prejudicado o exercício da democracia participativa.

Em resumo, os princípios fundamentais da Constituição da República Democrática e Federativa do Brasil indicam claramente que a Administração Pública não pode ser secreta, reservada, acessível apenas aos detentores do Poder.

Também não é razoável que os assuntos administrativos cheguem ou não cheguem ao conhecimento do povo na dependência do interesse ou da boa vontade da imprensa. (TCU, Processo nº. 000.526/1998-3, Rel. Adylson Motta, DOU 12/12/2000)

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A democracia participativa taxada como ultraje aos interesses da Administração Pública em passado remoto, no atual contexto constitucional encontra-se em fase embrionária, desenvolvendo-se principalmente pela readequação da postura política do cidadão frente às exigências ideológicas do Estado Democrático de Direito.

Os entraves de ordem burocrática até então capazes de impedir a participação popular, agora são incompatíveis com essa realidade constitucional que paira sobre o Estado brasileiro. Essa situação começa a ser inclusive rechaçada pela jurisprudência dos Tribunais, especialmente do TCU, que reconhece ser o controle popular o mecanismo que proporcione a atuação eficiente das instituições e órgãos públicos.

Nesse sentido, destaca-se a decisão do TCU acerca da importância da participação popular, verbis:

Pedido de reexame. Representação. Pessoal. Pagamentos irregulares de diárias. Negativa de provimento. Nega-se provimento a Pedido de Reexame em que os argumentos oferecidos pela recorrente não se mostram hábeis a alterar a deliberação atacada.

(...)

O controle social é a concretização do ideal de democracia participativa. Revela-se promissor na medida em que os indivíduos e suas entidades representativas podem deflagrar ações concretas para proteger o bem de todos. É a participação cidadã emergindo como agente de mudança e mostrando o papel de cada um ante a ação do Estado. É o homem comum sentindo-se responsável pelos seus rumos.

Agindo assim, a nova cidadania efetiva essa eficiente fiscalização, provocando a atuação das instituições que têm como missão zelar pelo patrimônio público. É o desejo do aperfeiçoamento da administração estatal se manifestando em atitudes que buscam evitar desvios ou mau uso dos dinheiros do erário, desencadeando a punição dos responsáveis quando não for possível impedir o prejuízo. (TCU, Processo nº. 008.506/1999-0, Rel. Valmir Campelo, DOU 14/09/2007)

Sob essa ótica, a alteração da lei de responsabilidade fiscal para admitir o controle popular nos atos praticados por gestores públicos envolvendo matérias fiscais e orçamentárias, representou uma mudança de postura do legislador chancelada pela jurisprudência. Esse fato marca uma evolução compatível com a Constituição na medida em que o TCU, também na condição de órgão fiscalizador, prestigia a participação como o instrumento mais viável de controle das contas públicas.


Conclusão

O Estado Democrático de Direito de certa forma tem que festejar a queda do autoritarismo perpassado na sua história constitucional. Após sua instituição mediante a promulgação da Constituição de 1988, ainda era desconhecida uma lei que sequer tivesse como primado facilitar o acesso popular nas funções primordiais da Administração Pública.

Perdurou por muito tempo a idéia de que os órgãos de gestão administrativa deveriam permanecer restritos a uma atuação meramente representativa. Isso provocou o surgimento do mito pelo qual ao povo não era dado o direito de intervir diretamente nos atos de gestão administrativa, ainda mais em assuntos fiscais e orçamentários.

O legítimo detentor do poder esteve durante todo esse período ausente do exercício de sua soberania, configurada apenas no momento de consumação do pleito eleitoral. A partir disso, a vontade popular seria delegada aos seus representantes eleitos por um espaço de tempo delimitado, cabendo aos órgãos apropriados o papel de exigirem e fiscalizarem as prestações de contas dos gestores públicos.

O povo permanecia relegado ao papel de coadjuvante enquanto o controle das contas públicas realizava-se às escuras. A fragilidade do controle orçamentário culminou em inúmeros escândalos políticos de corrupção e na diluição de exorbitantes quantidades financeiras.

A burocracia no acesso às prestações de contas foi outro fator de incerteza quanto à veracidade dos resultados, uma vez se contrapunham drasticamente à realidade do País, em especial na esfera municipal.

Esses acontecimentos fizeram com que o povo se despertasse para a necessidade de uma reação imediata, ainda pouco intensa na atual conjuntura. Por isso que a inovação trazida pela lei de responsabilidade fiscal representa um marco evolutivo no processo de controle orçamentário.

Agora em diante os administrados assumem a co-responsabilidade pela condução da Administração Pública, inclusive com a prerrogativa de escolherem democraticamente quais são as prioridades dos investimentos públicos.

Essa descentralização do poder decisório acentua as características do papel do povo no paradigma do Estado Democrático de Direito, principalmente quando a questão envolve matéria fiscal e orçamentária.

Portanto, a LC nº. 101 é um indicativo de que o legislador começou a consentir que o povo é o titular do poder político, sendo fundamental a sua participação direta no processo de apuração e controle dos recursos arrecadados e gastos pelos gestores públicos.


Bibliografia

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 2. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. In: HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 277-292.

HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Translation by William Regh. The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1996.

JUND, Sérgio.

Direito Financeiro e Orçamento Público: teoria e 470 questões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

MOTTA, Carlos Pinto Coelho; FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Responsabilidade Fiscal:Lei Complementar n. 101 de 04/05/2000. 2. ed. rev., atual. e ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? 3. ed., rev. e ampl., Tradução: Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003.

PETIT, Philip. Democracia e contestabilidade. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy editora, 2003, p. 370-384.

VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: fundamentos doutrinários e desdobramentos históricos. Caderno de Ciências Sociais, Belo Horizonte, 2002, p. 47-64.


Notas

  1. "A aceitabilidade racional dos resultados conseguidos em conformidade com o procedimento segue de uma comunicação que, idealmente falando, assegura que todas as perguntas relevantes, questões e contribuições são colocadas e processadas nos discursos e nas negociações com base nas melhores informações e argumentos disponíveis." (Tradução livre)
  2. Paulo Bonavides sustenta que o cidadão enquanto parte do parte do povo é o instrumento de rompimento do regime representativo. Segundo o autor: "O cidadão, nesse sistema, é, portanto, o povo, a soberania, a nação, o governo; instância que há de romper a seqüência histórica na evolução do regime representativo, promovendo a queda dos modelos anteriores e preparando a passagem a uma democracia direta, de natureza legitimamente soberana e popular." (BONAVIDES, 2004, p. 34-35)
  3. Para Habermas, é necessário assegurar a existência de um canal de comunicação para viabilizar a participação popular. O autor expõe que: "A formação de opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável." (HABERMAS, 2004, 289)
  4. Philip Petit aponta que o legislativo também precisa facilitar a participação popular mediante a concessão de oportunidades de deliberação aos diversos grupos sociais. Segundo o autor: "Um legislativo verdadeiramente inclusivo deverá incorporar, em seu próprio benefício, todos os diferentes canais encontrados no seio da comunidade. Deverá assegurar que, ao longo dos debates decisórios, as deliberações manifestadas sejam consideradas pela assembléia legislativa não apenas com base em um conjunto restrito de pareceres privilegiados, mas com base no extenso leque de perspectivas sociais." (PETIT, 2003, p. 374)
  5. Antes de 1988, o Brasil esteve submetido durante mais de vinte anos à opressão do Estado ditatorial marcado pelo longo período de governo militar. O início desse período ocorreu a partir de um golpe de Estado praticado em 1964, sendo que em momentos posteriores diversos governos militares comandaram o País. O período militar findou-se em 1985, quando o Brasil passou por um forte processo de redemocratização.
  6. Art. 48.São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
  7. Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: 

    I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; 

    II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público;

    III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.

  8. Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a:
  9. I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado;

    II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.

  10. Art. 73-A. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas nesta Lei Complementar.
  11. Art. 73-B. Ficam estabelecidos os seguintes prazos para o cumprimento das determinações dispostas nos incisos II e III do parágrafo único do art. 48 e do art. 48-A:
  12. I – 1 (um) ano para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de 100.000 (cem mil) habitantes;

    II – 2 (dois) anos para os Municípios que tenham entre 50.000 (cinquenta mil) e 100.000 (cem mil) habitantes;

    III – 4 (quatro) anos para os Municípios que tenham até 50.000 (cinquenta mil) habitantes. 

    Parágrafo único. Os prazos estabelecidos neste artigo serão contados a partir da data de publicação da lei complementar que introduziu os dispositivos referidos no caputdeste artigo.

  13. Interessante notar que a doutrina vem dando demonstrações ainda superficiais acerca da importância do controle popular nos gastos públicos. Carlos Pinto Coelho e Motta e Jorge Ulisses Jacoby Fernandes sustentam que: "Nesse contexto, não parece, por exemplo, sustentável que havendo o dever coletivo de contribuir para ingresso de recursos a serem aplicados pelo Estado, segundo a mais legítima vontade popular, possam as autoridades a pretender que seja mantido sigilo quanto ao cumprimento ou não desse dever. Não se trata de um apego a uma extremada posição socialista, mas uma efetiva ação do parâmetro da responsabilidade, valor fundamental e pressuposto da democracia." (MOTTA; FERNANDES, 2001, p. 179)
Sobre os autores
Luiz Márcio Siqueira Júnior

Mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).Advogado.

Andréa Cristina Correia de Souza Renault Baêta dos Santos

Pós-graduanda em Direito Notarial e registral pela Faculdade de Direito Milton Campos. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Oficial Substituta do 4 º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte

Michelle Abras

Pós-graduada em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professora da Faculdade Minas Gerais (FAMIG). Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA JÚNIOR, Luiz Márcio; SANTOS, Andréa Cristina Correia Souza Renault Baêta et al. Lei de Responsabilidade Fiscal: como a Lei Complementar nº 131/2009 democratizou o controle orçamentário?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2764, 25 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18337. Acesso em: 22 dez. 2024.

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