3 ANÁLISE HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL
Após o necessário aprofundamento com relação às mais importantes Teorias sobre o fundamento do Direito Internacional, tem-se como objetivo aqui expor ao leitor a forma como o Direito Internacional foi criado e desenvolvido ao longo da história. Assim como colocado no fim do primeiro capítulo, pode-se observar ao longo dos últimos séculos, especialmente após o desenvolvimento do Estado moderno europeu, a falta de efetividade e aplicação dos ideais pregados pelos chamados Fundadores do Direito Internacional.
Com essas considerações feitas, abre-se uma lacuna com relação às teorias que tiveram seus conceitos realmente aplicados ao longo do desenvolvimento do Direito Internacional e, a partir desse ponto, dá-se início a esse segundo capítulo. Realizando uma importante digressão histórica, buscar-se-á aqui observar a forma como os diferentes agentes internacionais comportaram-se uns com relação aos outros no desenrolar da história, mormente a história europeia. Essa caracterização da forma como se conceberam as Relações Internacionais nos últimos tempos possibilita a verificação de quais pensadores tiveram suas ideias de fundamentação do Direito Internacional comprovadas no confronto com a realidade.
A estudo das teorias e dos fatos históricos concernentes ao Direito Internacional de forma conjunta se fazem da maior importância, visto que ambos são um produto da realidade social e histórica, não estando desatrelados pelo fato de serem criação e consequência dos mesmos agentes. Assim como defende Juan Antonio Carrillo Salcedo [55] no início de sua obra,
A interpretação histórica do Direito Internacional deve-se fazer desde uma pluralidade de planos, em que se tenham em conta ao mesmo tempo os feitos, as normas, os valores e a reflexão doutrinal. Procurou-se que este planos distintos estejam presentes de modo equilibrado, sem que nenhum deles fique hipertrofiado ou, ao contrário, marginalizado. (tradução nossa).
Como rapidamente citado no capítulo anterior, há divergências com relação ao posicionamento do nascimento do Direito Internacional na história. Pode-se dizer que a maioria dos estudiosos do Direito Internacional o considera como posterior à Antiguidade, inexistindo no seio desta. Alguns dos primeiros a estudar a história da ciência jurídica internacional, como Henry Wheaton, diplomata norte-americano que viveu principalmente durante a primeira metade do século XIX, deram início a suas análises no período posterior à Paz de Vestfália, considerando o período anterior apenas em caráter introdutório. Louis Le Fur [56] é outro desses historiadores ao defender que o Direito Internacional tem suas raízes no cristianismo, condizente com a noção de igualdade entre os homens, posteriormente transcendida à ideia de igualdade entre Estados [57].
Também já citado, o posicionamento deste trabalho com relação a esse embate teórico dá-se no sentido do Direito Internacional ser anterior aos Estados, ainda que estes venham a tornar-se mais tarde o mais relevante agente internacional. Segundo Mello, os primeiros autores a seguir essa linha de pensamento foram o Barão Sérgio A. Korff e Paul Vinogradoff, consagrado historiador russo nascido em 1854. O primeiro considerava um erro estudar o Direito Internacional tão-somente a partir de já avançada história mundial, visto que os povos antigos mantinham constantes relações entre si, utilizando-se de institutos de arbitragem e imunidades diplomáticas. Dizia ainda em sua obra que "o Direito Internacional é uma consequência necessária de toda civilização" [58]. Vinogradoff considera em sua obra que, ao estudar a história do Direito Internacional, deve-se ter em mente as "formas de organização social", como as Cidades gregas e o jus gentium.
Posicionando seu trabalho no sentido de que haveria um Direito Internacional na Antiguidade, Mello diz que não se pode negar a existência de um Direito Internacional antigo simplesmente pelo fato de esse ser distinto do existente modernamente. Para o autor, a ciência jurídica internacional regula as relações entre coletividades independentes, considerando que, já que essas existiram na Antiguidade e mantiveram constantes relações entre si, também existiu um Direito Internacional [59].
Essa coexistência de grupos sociais antigos e a verificação de que por certo havia meios de regulação de suas mais distintas relações levam à concordância de grandes autores modernos de que existiu um Direito Internacional pré-civilização moderna. Quoc Dinh, Daillier e Pellet [60] trazem em sua obra esclarecedora passagem a respeito do posicionamento tomado por este trabalho, data venia, frente às divergentes opiniões, lecionando que
Contudo, o direito internacional deve considerar-se, antes de mais, como um direito intersocial ou intergrupal. Quando se aplica aos Estados, rege-os, não enquanto tais, mas enquanto sociedades políticas distintas e independentes. Ora, não sendo Estados, tais sociedades políticas já existiam na Antiguidade e na Idade Média. Assim, o direito internacional encontra efectivamente no meio social da Antiguidade e Idade Média as condições mínimas necessária ao seu nascimento.
Dessa forma, segundo pensamento dos mesmos autores, se a Europa foi a principal responsável pela consolidação do Estado como agente central do Direito Internacional, foi também no seio de seu território e população que, séculos antes, nascia o pensamento greco-romano, consolidado como grande influência dos futuros desenvolvimentos da ciência jurídica. Carrillo Salcedo [61] brinda o pensamento histórico com a seguinte passagem, a qual se toma aqui, no intuito de unir forças ao empreendimento de compreender séculos de história em tão poucas páginas:
[...] É que, em grande parte, somos o passado, na medida em que nos levantamos sobre o sedimento de formas de vida que ficaram atrás de nós, de formas culturais que outros homens foram ensaiando em distintas etapas históricas. O que importa, por consequência, é uma perspectiva a fim de ver e observar a distância o Direito Internacional para poder apreciá-lo em seu verdadeiro valor (tradução nossa).
Ainda que de forma bastante breve, o início dessa análise histórica deve então acompanhar, com a devida vênia, o entendimento mais adequado com relação ao início do Direito Internacional, ou seja, anterior aos Estados. Já na Antiguidade se pode notar a existência de determinados traços que lembram institutos em uso ainda nos dias atuais, como se verá na sequência.
3.1 A ANTIGUIDADE
Ainda que não tenha havido evoluídos sistemas jurídicos internacionais já na Antiguidade, negá-los em virtude de seu caráter rudimentar seria tomar uma posição demasiado negativa [62]. De fato, havia uma tendência ao isolamento durante a Antiguidade, assim como uma latente estado de guerra entre as diferentes civilizações. A caracterização do desconhecido como "bárbaro" nos dá uma ideia da forma como os povos da Antiguidade enxergavam seus contemporâneos: povos passíveis de luta por conquistas.
O forte caráter religioso dado ao Direito da época caracterizava as relações entre os povos como difíceis de entendimento mútuo. As civilizações consideravam-se eleitas pelos deuses e buscavam lutar contra aqueles que possuíam divindades distintas. Entretanto, apesar de a regra ser esse estado de perigo e guerra entre os povos, a possibilidade de criação de regras de convivência era possível e, séculos mais tarde, observou-se que sistemas jurídicos internacionais bastante interessantes à época foram criados, assim como instituições muito semelhantes àquelas observadas hoje em dia [63].
Nos mais diversos continentes foram observados certos desenvolvimentos no sentido da criação de um primitivo corpo normativo internacional, como se pode verificar na sequência deste trabalho, na antiga civilização chinesa.
3.1.1 China Antiga
Apesar de incipiente e rudimentar, pode-se observar a criação de alguns conceitos muito ligados ao Direito Internacional na China Antiga. Confúcio, importante líder filosófico chinês, nascido em 551 a.C., constituiu uma "teoria geral das relações sociais à escala do universo". Segundo ele, existia uma lei fundamental, comum a todo o universo, que deveria pautar as ações humanas no intuito de mantê-las de acordo com a ordem da natureza [64].
Confúcio não a considerava importante tão somente no interior do povo chinês, mas sim uma lei que deveria regular as relações entre todos os povos. A caracterização desse discurso como ligado a um Direito Internacional se dá pelo fato de possuir traços que buscam a paz entre as diferentes sociedades coexistentes no mundo da época. Ele ainda pregava a criação de uma união dos Estados chineses em uma Associação com personalidade própria, ainda que subsistisse a personalidade de cada um dos Estados participantes. A semelhança com institutos atuais de Direito Internacional torna-se inegável.
Há que se ressaltar ainda a existência de uma instituição legal para a guerra na China Antiga, estabelecendo que essa só poderia ocorrer "entre Estados iguais e não entre um Estado feudal e seus dependentes, e nem entre os Estados chineses e os bárbaros" [65]. Vê-se ainda, a seguir, de que forma esse processo de nascimento de um corpo jurídico se deu no Egito e Oriente Próximo.
3.1.2 Egito e Oriente Próximo
A partir de meados do ano 3000 a.C. até cerca de 1000 a.C., coexistiram, em regiões muito próximas, dois grandes Impérios da Antiguidade: o Egito e a Babilônia. As necessidades econômicas da época obrigaram os dois Impérios a relacionar-se com os povos bárbaros, estabelecendo na região imensas rotas comerciais. Nesse movimento comercial, Egito e Babilônia tornaram-se centros rivais de comércio entre a Índia e o Mediterrâneo.
Assim como coloca Quoc Dinh, Daillier e Pellet, "os partidários da existência de um Direito Internacional desde a remota época dos Impérios baseiam sua tese na existência e desenvolvimento desses contatos" [66]. Os documentos da época mostram a utilização por parte desses Impérios do instituto dos Tratados, assim como a vigência da regra pacta sunt servanda a partir de juramentos religiosos. Esses tratados poderiam ter diferentes sentidos, sendo relacionados a alianças comerciais, alianças bélicas ou delimitações territoriais.
Um dos tratados mais famosos e que demonstram a utilização de institutos modernos de Direito Internacional foi o pactuado ao fim da guerra da Síria entre Ramsés II, rei do Egito, e Hattisuli, rei dos Hititas, em cerca de 1291 a.C.. Esse tratado estabelecia a paz entre os povos, a aliança contra os inimigos, a entrega de refugiados políticos e o estabelecimento de comércio entre os dois Impérios [67]. Há que se observar ainda a existência de privilégios diplomáticos nessa época, como a existência de uma língua e escrita comuns.
Como visto, o possível nascimento do Direito Internacional no berço dessas civilizações antigas se deu de forma muito rudimentar. Entretanto, no mundo helênico que se verá a seguir as transformações e avanços foram muito mais visíveis, colaborando grandemente com a ideia de um Direito Internacional anterior aos Estados nacionais.
3.1.3 Grécia
O mundo helênico pode ser considerado, assim como defendem alguns autores de Direito Internacional, como o exemplo mais evidente de utilização de institutos e sistemas semelhantes, ainda que rudimentares, àqueles evidenciados no Direito Internacional moderno.
O comportamento visto entre as cidades gregas revelava grande rivalidade entre si e com relação aos povos desconhecidos [68], além de um constante sentimento de desconfiança e isolamento, não impedindo, apesar disso, que institutos que visassem a paz e o estabelecimento de missões diplomáticas fossem instituídos e gozassem de vigência. Assim como elucidado por Quoc Dinh, Daillier e Pellet, "permanente é apenas a ameaça de guerra, mas não a guerra em si" [69].
O respeito a períodos de paz foi estabelecido, em determinadas situações, a partir de tratados legalmente estabelecidos [70]. Importante também é a própria criação de um sentimento de unidade com relação ao mundo grego, evidente em passagem de Quoc Dinh, Daillier e Pellet [71], no sentido de que
Enfim, se as Cidades são entidades politicamente organizadas, cuja independência constitui ao mesmo tempo o dial e o critério, os seus povos fazem parte de uma mesma comunidade de raça, de civilização, de cultura, o que cria, forçosamente, entre eles, afinidades particulares.
[...] É graças a esses fatores de unidade e aproximação, ausente no Oriente imenso e complexo, que a contribuição da Grécia para a formação do direito internacional é mais importante e mais substancial.
Pode-se arrolar uma série de institutos que tinham caráter muito parecido a outros atuais, como os chamados asilia, proxenia e as anfictionias [72]. Ainda assim, como sugere a doutrina, esses institutos possuíam sua essência mais ligada ao Direito dos próprios gregos do que ao Direito Internacional.
3.1.4 Roma
Há controvérsias com relação a existência de um Direito que possa ser equiparado a uma espécie de Direito Internacional em Roma. Isso porque o predomínio da mundo romano levava a uma situação de normas impostas, e não a um "ordenamento" criado entre Roma e demais sociedades igualitárias [73]. Dessa característica de unilateralidade, até mesmo a pax romana [74] foi realizada sem que houvesse consentimento de outras nações. Entretanto, algumas ideias nascidas no bojo da ciência jurídica romana não podem ser vistas completamente desconectadas de um Direito Internacional. Aqui se faz importante a análise de dois institutos romanos, o jus gentium e o jus fetiale.
O jus gentium era o direito utilizado nas relações entre os próprios cidadãos de Roma e, principalmente, nas relações desses com os estrangeiros, visando maior facilidade nos entendimentos, mormente comerciais. O processo de criação de tal sistema jurídico dá-se no fim da República e início do Império, ou seja, em um período em que Roma passaria por uma transformação e crescimento econômico e demográfico. A necessidade de criação desse sistema é visível, então, a partir da multiplicação de relações entre os cidadãos romanos e os estrangeiros que rumavam ao seu território. Segundo o pensamento romano da época, a lei deveria harmonizar-se com os princípios racionais, objetivando a edição de "leis uniformes e universalmente válidas que podiam ser reconhecidas por pessoas racionais" [75].
Do caráter comercial desse Direito surge a crítica de que esse era um Direito claramente privado, não podendo ser considerado como um precedente antigo de criação de um Direito Internacional Público. Quoc Dinh, Daillier e Pellet defendem que,
No entanto, responde à ideia fundamental de que deveria existir um direito comum da humanidade que, para valer para todos os povos, deveria fundar-se em princípios extraídos da razão universal [76].
O jus fetiale possuía um caráter público e externo, sendo utilizado nas relações entre Roma e as demais nações estrangeiras. Entretanto, ainda que possua, à primeira vista, uma imagem clara de um incipiente Direito Internacional Público, o jus fetiale não pode ser considerado assim por ser fruto de atos unilaterais do Império Romano.
Esse direito possuía ao mesmo tempo características funcionais aparentemente distintas, ainda que essencialmente conectadas. Eram políticas, ao tempo em que regulavam as ações diplomáticas romanas, especialmente com relação à declaração de guerra [77]. Eram jurídicas ao passo em que estabeleciam regras claras a serem seguidas por Roma no trato com as demais nações. Por fim, tinham caráter religioso, levando-se em conta o fato de que as relações internacionais romanas eram sempre fundamentadas nas premissas de proteção divina.
Em Roma ainda surgiu o importante instrumento da Ratificação dos tratados, assim como se desenvolveu o instituto da inviolabilidade dos embaixadores, largamente utilizados nos dias atuais.
A contribuição romana com a criação do Direito Internacional é esclarecida elegantemente por Quoc Dinh, Daillier e Pellet [78], sendo fundamental a transcrição integral da passagem escrita pelos autores citados, ao dizerem que:
Enquanto elementos do direito romano, as instituições do jus fetiale e a noção de jus gentium sobreviveram a Roma e passam para a nova Europa constituída após a queda do Império do Ocidente. Deste modo, e só deste, pode considerar-se que a evolução não sofreu interrupção durante a época romana.
[...] A ligação que certos autores farão entre direito internacional e direito natural tem mesmo origem nas estreitas relações entre jus gentium e jus naturale. Assim, a despeito da sua política imperialista, o contributo de Roma, embora indireto, está longe de ser desprezível.
O próximo passo ao desenvolvimento do Direito Internacional se daria não mais no seio de uma sociedade, mas sim no interior de um período histórico próprio. A Idade Média, apesar de ter início como uma época sombria, com pouco espaço para desenvolvimento de qualquer ciência, propiciará a construção de importantes conceitos e institutos do Direito Internacional.
3.2 IDADE MÉDIA
No ano 476 a.C., das ruínas do Império Romano, esfacelado pela anarquia interna, invasões bárbaras e declínio econômico, emerge uma sociedade que viria a constituir características muito próprias, a Idade Média. Dado o interesse desse estudo em analisar precipuamente o desenvolvimento do Direito Internacional, o período inicial da Idade Média não traz quase que nenhuma passagem relevante. Somente após vários séculos decorridos desse período é que haverá o retorno do desenvolvimento de algumas futuras ciências, dentre elas a do Direito Internacional.
Sinteticamente, os séculos que se seguiram ao perecimento do Império Romano foram especialmente complicados para a sociedade europeia. Até o século VIII, o que se vê é uma tentativa de superar as dificuldades deixadas pela fragmentação do antigo império e da civilização greco-romana. Assim sendo, pode-se afirmar que, a sociedade que viria a ser criada durante a Idade Média tem na Igreja Católica seu núcleo gravitacional.
Essa instituição religiosa, com a queda de Roma, teve sua importância e crescimento levados a patamares nunca antes imaginados. Isso se deu pela habilidade dos participantes da Igreja Católica em possibilitar a estabilidade necessária à população da época, destroçada séculos antes. Assim como coloca Perry [79],
Servindo ainda de agente unificador e civilizador, ofereceu (a Igreja Católica) às pessoas uma concepção inteligível e significativa da vida e da morte. Num mundo agonizante, a Igreja foi a única instituição capaz de reconstruir a vida civilizada.
Com a doutrina cristã, segundo Moncada, "criou-se para a cultura do Ocidente uma nova situação espiritual que não tem paralelo na História e constitui a maior viragem ocorrida, desde o despertar do pensamento especulativo dos gregos" [80].
A ideia de criação do homem à imagem e semelhança de Deus traz uma noção inteiramente nova de humanidade. O pensamento que embasava a Antiguidade, pautado na relação entre os iguais e os bárbaros, será modificado no sentido de que todos, apesar de cultivarem diferenças importantes, trazem consigo traços que o tornam parte de uma só unidade. Dessa forma, segundo o autor, "trazia consigo o princípio da unidade do gênero humano, mas, diversamente do cosmopolitismo dos estóicos, conciliou o universalismo com um sentido mais positivo e realista das diferenças históricas (étnicas, linguísticas, religiosas, culturais) dos povos" [81].
Assim nascia a noção de uma sociedade internacional que teria como escopo a incorporação de todos os povos e, por conseguinte, a necessidade de convivência pacífica. Sob a égide de tais preceitos surge a Respublica Christiana, ou seja, a "comunidade dos povos cristãos cuja organização figura-se por uma eclipse, cujos focos, o Papa e o Imperador, agrupavam à sua volta todos os Estados" [82]. Sob a influência da doutrina cristã o Direito Internacional apoderou-se de conceitos e instituições que seriam de grande importância para seu desenvolvimento futuro.
A Paz de Deus, movimento cristão que tivera início no final do século X, foi um dos instrumentos que introduziram no Direito Internacional conceitos demasiado importantes sendo, nesse caso, a distinção entre beligerantes e não-beligerantes. Segundo essa regra, os cavaleiros comprometiam-se a não desferir ataques contra camponeses, comerciantes, peregrinos, mulheres, viajantes nem aos seus bens, especialmente àqueles relacionados às colheitas e aos instrumentos agrícolas.
Alguns historiadores não considerem a Paz de Deus um movimento que deve ser tido como de grande relevância para o estudo do Direito Internacional, dado o fato de não ter impedido o acontecimento de novas guerras. Entretanto, é passível de aceitação de que, partindo do pressuposto de que não havia um poder coercitivo, esse instrumento figura como uma tentativa de "construir um consenso cultural e social" [83].
Em 1027, durante o Concílio de Elba, houve a criação da chamada Trégua de Deus. Essa caracterizava-se por estabelecer que, das três horas de sábado até as seis horas da manhã de segunda-feira, as guerras deveriam ser paralisadas, em respeito ao "dever dominical". Esse período de abstenção dos deveres bélicos fora estendido, alguns anos mais tarde, para os dias de festas, na Quaresma, dos principais Santos.
Treze anos mais tarde, em 1040, o Concílio de Marselha estabelece que as batalhas deveriam cessar desde a tarde de quarta-feira até a manhã de segunda-feira. Isso se fazia necessário para que, "nesses quatro dias e duas noites goze todo o homem, em todas as horas, de plena segurança, e possa entregar-se tranquilamente às suas ocupações sem temor algum do inimigo, protegido por esse estado de paz" [84].
As normas que visavam regulamentar as condutas de guerra foram estendidas ainda durante o Concílio de Latrão de 1139. Nesse, ficava banido o uso de arbaletas, dado o fato de que suas setas tinham potencial para furar as armaduras dos cavaleiros. Podem-se ainda observar funções de "polícia" internacional, vigiando as estradas e punindo o banditismo. A essa função distinguiu-se a Ordem de Malta, gozando de personalidade jurídica internacional [85].
Há que se colocar o posicionamento de Celso D. de Albuquerque Mello com relação ao que, segundo ele, tenha sido a maior contribuição ao Direito Internacional durante a Era do Medievo: a noção de guerra justa. Esse conceito, desenvolvido especialmente pelos já citados Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, encontrou na figura deste último sua melhor formulação. Segundo o teórico cristão, para que uma guerra fosse considerada justa ela deveria possuir três preceitos básicos: ser declarada pela autoridade competente, na época, o Príncipe; estar diretamente ligada a uma causa justa, ou seja, a uma violação de direitos; e que "a intenção dos beligerantes seja reta", visando à promoção de um bem ou prevenção de um mal [86].
Entretanto, o Direito Internacional encontraria bases para um galopante desenvolvimento somente com a desintegração da Republica Christiana, ocasionada especialmente pela queda do poder papal frente à Reforma Protestante. Essa ruptura culminou com o fortalecimento dos Estados nacionais, "fruto de um lento e contínuo processo de concentração e secularização do poder político e de sua irradiação territorial" [87].
O pensamento religioso que permeara as relações internacionais durante toda a Idade Média seria quebrado com o desconhecido monge e teólogo alemão Martin Lutero [88], dando espaço a uma nova linha de pensamento baseada no humanismo do Renascimento. Essa mudança ocasiona efeitos benéficos à normatização do que viria a ser um Direito Internacional. As instituições diplomáticas consolidam-se por entre os países europeus e fica estabelecido o princípio de liberdade dos mares.
Esse processo histórico que viria consolidar o nascimento dos Estados nacionais tem sua primeira expressão sob o regime de Federico II, ainda no século XIII, com relação ao Reino da Sicília, desenvolvendo-se durante os séculos XVI e XVII, culminando ante as Monarquias de Castilha, Aragão, Portugal, França e Inglaterra. A hierarquia medieval criada a partir da Republica Christiana, pautada mormente na figura do Papa como chefe supremo, fora então substituída, segundo Carrillo Salcedo, por uma pluralidade de príncipes soberanos, zelosos com relação a sua independência e fortemente convencidos em não admitir superior temporal algum [89].
Porém, ainda que instituições de Direito Internacional tenham sido criadas desde os mais remotos tempos da Antiguidade, não houve, até então, um sistema que pudesse dar unidade a esses institutos e tratados. Ora, se o que lhes faltava até essa época fora um sistema unificador, baseado em pré-determinadas diretrizes principiológicas, o desenvolvimento dos Estados nacionais será o estopim para uma nova era do Direito Internacional. Assim como expresso na obra de Quoc Dinh, Daillier e Pellet [90],
É precisamente este o sistema que vai aparecer progressivamente durante este período sob o nome de interestatismo ou sistema interestatal. Ligado a esse sistema, o direito internacional adquire os seus traços característicos, completa a sua formação. Qualificado já de clássico, este sistema continua ainda, nos nossos dias, a reger as relações internacionais.
Como visto, a criação do sistema interestatal será o alicerce ao desenvolvimento do Direito Internacional moderno a partir do fim da Idade Média. Assim sendo, se as relações internacionais, a partir de então serão travadas mormente por essas entidades - os Estados nacionais - cabe avaliar os elementos mais importantes à sua existência e conservação.
Os estudiosos que buscaram fundamentar político e juridicamente o Estado foram muitos, optando esse estudo por analisar a participação daqueles que foram reconhecidamente mais importantes. A conceituação e afirmação da soberania dos Estados nacionais foram alguns dos pontos de maior relevância à consolidação dos Estados da época. Dado a forte grau de influência que elementos externos implicavam no seio dos territórios até então, essas novas entidades do cenário internacional tinham como objetivo uma autonomia jamais vista. Como será analisado a seguir, os livros escritos na época que tinham esse escopo tiveram imensa influência, sendo, ainda hoje, de grande importância.
3.3 A SOBERANIA DOS ESTADOS
O conceito de soberania data exatamente da época que se vem analisando, ou seja, o período da criação dos Estados. Assim como representado modernamente, o termo busca garantir o poder supremo do Estado frente à população interna e com relação à sua independência frente aos demais Estados.
Não por coincidência seu nascimento está relacionado ao nascimento dos Estados nacionais. Os territórios medievais encontravam no ambiente social e político da época grandes entraves à consolidação de um poder unificado. A fragmentação interna devida ao feudalismo era tão inoportuna quanto o poder supremo do Papa no momento da concretização dos Estados nacionais. A partir da quebra do poder da cristandade e o crescente desejo dos monarcas em centralizar o poder nas mãos do Estado, a conceituação da soberania passou a ser um fator decisivo ao suporte jurídico desse movimento nacionalista. Com uma lenta evolução conceitual, a soberania deixaria de ser relacionada à posse da terra, passando à figura do rei. "Portanto, soberano era o monarca, soberania era atributo real, era a autoridade do rei" [91].
Talvez o primeiro a tratar do tema, o italiano Maquiavel, ainda nos fins do século XV e início do século XVI, em sua obra O Príncipe, defendia a concentração de todo o poder do Estado nas mãos do rei tão-somente. As motivações do príncipe seriam, dessa maneira, as razões do Estado. Maquiavel buscava aconselhar Lorenzo de Médici no intuito de possibilitar a unificação da Itália em um Estado, defendendo que "o Estado unificado e a soberania nacional eram necessidades que se justificam historicamente, para colocar um fim à desagregação característica do sistema político feudal" [92].
Mais tarde, já na segunda metade do século XVI, surge a figura de Jean Bodin, monárquico francês militante da criação do Estado nacional [93]. Foi somente a partir de seus estudos que a soberania e o Estado moderno ganharam uma doutrina científica, tornando-se ela, a soberania, inclusive um dos elementos essenciais ao Estado. A soberania apresentava para Bodin [94] as seguintes características fundamentais:
O poder de impor lei a todos em geral e a cada um em particular, o der de decretar a guerra ou de fazer a paz, o de instituir os principais cargos, o de resolver em última instância, e enfim, o de outorgar graças aos condenados.
Colocava ao lado desses cinco poderes principais, outro que são corolários como: cunhar moeda, arrecadas impostos, confiscar os bens dos condenados, etc.
Alguns dos pensamentos do pensador eram extremamente ligados aqueles que haviam sido pregados anteriormente por Maquiavel. No que tange às relações internacionais, dizia Bodin [95] que
Parece não existir melhor meio de manter o próprio Estado em sua grandeza do que vendo seus vizinhos se arruinarem uns aos outros. Pois a grandeza de um Príncipe, resumidamente, não é nada mais do que a ruína ou redução da importância de seus vizinhos; e seu poder não é nada mais do que a fraqueza dos outros.
Por fim, também a partir da obra de Bodin seria criada a noção de Soberania que daria suporte jurídico à criação dos Estados nacionais, especialmente o Francês. O autor pregava a existência de dois aspectos da soberania dos Estados, um interno (soberania no Estado) e outro externo (soberania do Estado). Assim, "legitima juridicamente a dupla luta do rei de França contra o papado e o Império, no exterior, contra a feudalidade, no interior" [96]. Dalmo de Abreu Dallari [97] lembra de um importante ponto da obra de Bodin com relação à soberania dos Estados, redigindo que:
Embora não tenha mencionado a inalienabilidade como característica da soberania, o que outros autores fariam depois, escreve Bodin que, seja qual for o poder e a autoridade que o soberano concede a outrem, ele não concede tanto que não retenha sempre mais. Dessa forma, a soberania coloca o seu titular, permanentemente, acima do direito interno e o deixa livre para acolher ou não o direito internacional, só desaparecendo o poder soberano quando se extinguir o próprio Estado.
Durante o século XVII surgiu a obra de Thomas Hobbes e o seu ideário de Contrato Social. Segundo ele, o Estado forma-se a partir da renúncia da liberdade inata aos indivíduos quando em seu estado natural em troca da segurança que lhes é assegurada pelo Estado. Assim sendo, é a partir desse pacto, ou contrato, que surge e se fundamenta a legitimidade do poder supremo. Azevedo leciona, com relação ao tema, o fato de que
O Estado é considerado como um homem artificial de maior força e tamanho que o natural, sendo o caráter de seus poder incondicionado, irresistível, inapelável e ilimitado. [...] é o máximo guarda da paz e a autoridade suprema em matéria de fé, legislador, juiz supremo, tem o direito de premiar e castigar prater legem e de outorgar toda as honras e dignidades [98].
Válido ressaltar, ainda, o pertinente comentário de José Reinaldo de Lima Lopes [99] sobre o assunto, no sentido de que:
Além disso, em Hobbes o voluntarismo e a autoridade do direito positivo tornam-se exemplares: o Estado assume o direito e não restam direitos aos súditos, senão aqueles reconhecidos pelo soberano.
Assim como Bodin buscou fundamentar a criação do Estado nacional francês, Hobbes trabalhou nesse mesmo sentido com relação ao Estado inglês, possibilitando sua formação e libertação frente aos demais poderes instituídos no Antigo Regime. Assim como os citados Estados Francês e Inglês, vários seguiram seu exemplo e transformaram-se em Estados nacionais, consolidando os ideais de soberania desvinculada dos poderes externos. Foram esses agentes que, assim como será visto nas próximas páginas, viriam a formar a sociedade internacional, resistindo até hoje como os principais entes mundiais.
3.4 A SOCIEDADE INTERESTATAL EUROPEIA
A partir da quebra da unidade cristã durante a Idade Média e a ascensão dos Estados nacionais como os principais agentes do cenário internacional, desvinculados, sob a égide da teoria da soberania, de qualquer poder que lhes fosse estranho, verificar-se-ia a formulação das relações internacionais com um caráter completamente novo. Durante o século XVII, mais precisamente no ano de 1648, pôde-se observar a criação dos Tratados de Osnabrük e de Münster, constituindo esses os chamados Tratados de Vestfália. Esses tratados puseram fim à guerra dos Trinta Anos e foram firmados entre os Estados vencedores, mormente França e Suécia, e o lado perdedor, caracterizado principalmente pela Alemanha.
Sua importância é claramente evidenciada pelo fato de que o direito convencional anterior fora revogado, dando lugar a um novo direito que, pela primeira vez, fora deliberado pelos Estados europeus em conjunto [100]. Os Tratados foram qualificados como uma Carta Constitucional da Europa, estabelecendo definitivamente a derrota do Imperador e do Papa, formalizando assim o nascimento daqueles Estados que viriam formar a nova ordem europeia [101]. Além disso, essa ordem, criada a partir de então, colocaria os Estados soberanos como o centro de gravidade de regulação das relações internacionais.
Os princípios fundamentais estabelecidos a partir dos Tratados de Vestfália foram: o respeito aos limites territoriais de cada um dos Estados nacionais; a prevalência do princípio territorial sobre o pessoal em matéria de legislação e administração da justiça, ou seja, a exclusividade de jurisdição; a igualdade soberana dos Estados; e a não-intervenção em assuntos internos dos Estados.
Além disso, houve uma tentativa de estabelecer um sistema de garantias e manutenção da paz e do status quo a partir de alguns pressupostos, sendo eles: a observância ao princípio de que os tratados devem ser cumpridos pelos Estados (pacta sunt servanda); os conflitos relativos à ordem de paz deveriam ser resolvidos por meios pacíficos, dando preferência às discussões político-diplomáticas; o Estado vítima de uma violação da ordem estabelecida poderia recorrer à guerra contra seu transgressor e deveria contar com o apoio dos outros Estados-parte dos tratados de paz; e uma guerra iniciada sem justa causa seria contrária ao Direito, sendo que os Estados-parte dos tratados de paz deveriam ir contra o perturbador da ordem estabelecida de forma conjunta [102].
Garantido aos Estados, a partir desses tratados, que não haveria sobre eles qualquer poder superior, dando-lhes completa autonomia e soberania ilimitada, o que se verificou a partir de então, assim como defende Cunha e Pereira, foi um cenário internacional regido sob o princípio do equilíbrio das forças, do equilíbrio político ou da balança do poder. Antes de possuírem, assim como mostra a história, qualquer intenção de salvaguardar a paz, esse sistema de equilíbrio do poder buscava salvaguardar a onipotência dos Estados frente entes externos [103]. Traduziu-se esse sistema num jogo de intrigas e negociações diplomáticas no intuito de evitar a formação de Estados demasiadamente poderosos. As movimentações para isso foram feitas no sentido de formulação de alianças, sempre na tentativa de quebrar qualquer latente sentimento hegemônico. Cunha e Pereira [104] ainda elucidam de que forma o cenário internacional viria a se comportar nos séculos seguintes, ao escreverem que
A história das guerras europeia nos séculos XVII e XVIII traduz, em grande parte, as vicissitudes do sistema. O Direito Internacional que se desenvolveu nesta época baseava-se no princípio da soberania ilimitada ou absoluta dos Estados que agiam movidos apenas pelos seus interesses egoístas e desprendidos de quaisquer considerações de ordem moral.
Carrillo Salcedo defende que não se pode estranhar que o Direito Internacional da época fosse, antes de qualquer outra coisa, um direito que buscasse regular a guerra, dada a sequência de combates entre as Monarquias absolutas. Segundo ele, o recurso à guerra configurou-se a partir de então, como um direito discricionário dos soberanos, levando a Europa a um estado de guerra perpétua. A preocupação jusnaturalista e ética a respeito das causas justas à guerra, iniciadas na Antiguidade e arraigadas na Idade Média, cederam espaço a uma concepção completamente diferente. A justiça material perdeu importância frente às qualidade formais da guerra jurídico-público, ou seja, aquelas que são deflagradas por e entre soberanos. Carrillo Salcedo [105] demonstra claramente essa característica da época, de forma que
Ainda que as formulações tradicionais sigam sendo utilizadas e se continue falando de bellum iustum e de iusta causa belli, o sentido destas noções terá mudado por completo já que por guerra justa se entenderá aquela que tem lugar entre iustes hostes, ou seja, entre Estados soberanos, titulares da faculdade discricionária de recorrer a guerra em seus conflitos com outros Estados (tradução nossa).
Ora, dada as características já mencionadas a respeito do novo Direito Internacional Interestatal, pode-se afirmar que as relações internacionais se basearam precipuamente nas ações dos monarcas que, desde o Tratado de Vestfália, passaram a se comportar como soberanos absolutos. Como dizem Quoc Dinh, Daillier e Pellet, estes consideravam-se integralmente donos do Estado. O pensamento político da época já observado neste estudo, especialmente relacionado às figuras de Maquiavel e Hobbes, não só encorajava os reis como fundamentava suas ações. O absolutismo monárquico conduzira as relações internacionais a uma constante afirmação da superioridade da vontade do Estado soberano, sendo incompatível essa atitude individualista e nacionalista com qualquer pretensão de criação de uma ordem comum que ultrapasse e transcenda os Estados. Por fim, ainda o mesmo autor afirma que, "produto do absolutismo, o direito interestatal, nascido desta prática, só pode, evidentemente, ratificar outro produto do mesmo absolutismo: a guerra" [106]. Corroborando esse pensamento, Truyol y Serra [107] afirma que:
A sociedade internacional era concebida como a viver em estado de inimizade natural entre os Estados e como resultante de laços contratuais livremente assumidos por estes [...] Efectivamente, a instalação do princípio do equilíbrio irá conduzir a uma série ininterrupta de guerras no decorrer das quais s gabinetes europeus patentearão o seu virtuosismo diplomático, e a inversão das alianças não será fenômeno insólito.
Assim como foi colocado ao fim do primeiro capítulo deste estudo, os teóricos que buscaram fundamentar o Direito Internacional no Direito Natural, especialmente Hugo Grotius, criando um Direito acima do voluntarismo intrínseco à ordem interestatal europeia da época, não obtiveram sucesso na contraposição de suas teorias à realidade internacional. Ainda que tenha contribuído com a afirmação de um Direito Internacional, quando da efetiva criação do sistema jurídico internacional seu pensamento teve pouca, senão nenhuma influência.
Naturalmente, houve, da época da criação do sistema europeu interestatal, aqueles que buscaram dar sustentação jurídica e teórica a essa concepção da realidade internacional. Partindo das premissas fundadas em grande medida pelos espanhóis Vitoria e Suárez e sustentadas pelo holandês Grotius, alguns pensadores modificaram conceitos e pensaram um Direito Internacional quase que reduzido completamente à soberania estatal. Dessa necessidade surgira o positivismo como uma corrente teórica que buscava sustentar o status quo da época. Se os jusnaturalistas não obtiveram o sucesso sonhado na realidade jurídica, os positivistas veem ainda hoje seus preceitos arraigados no Direito Internacional.
3.5 O POSITIVISMO NO DIREITO INTERNACIONAL
Cornelio Van Bynkershock [108], nascido em 1673, é, segundo Mello, o iniciador pensamento positivista do Direito Internacional, abandonando a noção de direito natural de Grotius e reduzindo o Direito Internacional ao direito positivo [109]. Estudou precipuamente em suas obras jurídicas a dimensão dos mares territoriais dos Estados e os privilégios e imunidades dos agentes diplomáticos. Outro autor que contribuiu à criação do pensamento positivista no Direito Internacional foi o renomado filósofo alemão Christian Wolff, contemporâneo de Bynkershock, cuja obra busca instituir que, nas palavras de Truyol y Serra [110],
Os povos e as nações integram-se numa comunidade universal, a que Wolff chama a civitas maxima, expressão de ressonância estóica. A civitas maxima é fundada sobre um consentimento tácito, um quase-pacto; procura a promoção do bem comum dos Estados graças às regras dela emanadas para esse fim. Wolff distingue ainda um Direito das Gentes necessário, próprio do estado de natureza, de um Direito das Gentes voluntário, que emana da civitas maxima.
Assim, no início do século XVIII surge a figura de Emmerich de Vattel, entitulando-se discípulo de Wolff. Esse voltou a sustentar a distinção da existência de um Direito Natural e outro Voluntário indo, porém, mais longe ao extrapolar a soberania dos Estados e reduzir a interferência do Direito Natural a patamares quase nulos, ainda que em seu estudo o classifique como compulsório aos Estados. Como coloca Vattel [111],
Usamos o termo Direito das gentes necessário para aquele direito das gentes que consiste na aplicação do direito natural às Nações. Ele é necessário porque as Nações são absolutamente obrigadas a respeitá-lo.
Em verdade, o direito necessário apresentado por Vattel passa a subordinar-se a vontade e a interpretação do próprio Estado, modificando-o de acordo com os juízos de conveniência e oportunidade. Assim, segundo Vattel, "a lei natural nada decide de Estado a Estado, como decidiria de particular a particular. É partidário, como os monarcas, do voluntarismo integral" [112].
Sua principal obra, Droit des gens ou principes de la loi naturelle appliqués à la conduite et aux affaires des nations et des souverains [113], publicada em 1758, alcançou enorme difusão entre os Estados da época. Vattel vai então classificar a sociedade internacional como intrinsecamente a "grande sociedade das nações", ou seja, uma sociedade na qual tão-somente os Estados são membros. Assim, acrescenta, "cabe a qualquer Estado livre julgar em consciência o que os seus deveres exigem, o que pode fazer ou não com justiça.Se os outros tentarem julgá-lo, atentarão contra a sua liberdade e ferirão os seus direitos mais preciosos" [114].
A partir desse conceito, chega-se à noção de que a sociedade internacional difere claramente da sociedade política habitada pelos indivíduos. Esses, ao escolherem viver em sociedade e usufruir da segurança por ela dada, aceitam abdicar de parcela de sua soberania, fazendo-o por extrema necessidade de sobrevivência. Já a sociedade internacional, habitada pelos Estados soberanos, constitui-se como um ambiente em que seus participantes não necessitariam uns dos outros, não se fazendo necessária qualquer abdicação de poder. Destarte, a partir da segunda metade do século XVIII, o positivismo começaria a introduzir-se nas ciências sociais, enraizando-se por conseguinte na ciência do Direito Internacional.
Dessa época data o trabalho de Johann Jakob Moser, autor de Principes du droit des gens actuel e considerado por alguns autores modernos como o fundador propriamente dito da Escola Positivista do Direito Internacional, o qual exprime seu ideário com as seguintes palavras, parafraseado por Quoc Dinh, Daillier e Pellet:
Não escrevo um direito das gentes ecolástico baseado na aplicação da jurisprudência natural; não escrevo um direito das gentes filosófico construído segundo algumas noções bizarras da história e da natureza humana; enfim, também não escrevo um direito das gentes político no qual visionários como o abade de Saint-Pierre plasmavam a seu talante o sistema da Europa, mas descrevo o direito das gentes que existe na realidade, com o qual os Estados soberanos regularmente se conformam [115].
Assim como leciona Carrillo Salcedo em sua obra, três características basilares formavam aquele incipiente Direito das Gentes enquanto sistema jurídico regulador das relações entre entidades políticas soberanas e independentes: o voluntarismo, no sentido de que suas normas emanam expressa ou tacitamente da vontade dos Estados, sendo que estes são, ao mesmo tempo, destinatários e criadores do direito das gentes; a neutralidade, no sentido da desvinculação do direito com qualquer inspiração religiosa ou ideológica; e, por fim, o positivismo, no sentido de que o direito das gentes deveria ser um conjunto de normas jurídicas em vigor e não de regras morais [116]. Igualmente pertencentes às noções básicas acerca do Direito Internacional que se desenvolvera a partir de então, a soberania dos Estados fora levada a patamares extremos, assim como ficara consolidada a ideia de que a sociedade internacional permeia-se tão-somente pelos Estados como seus participantes. Assim, Vattel [117] diz que
Para dar, desde agora, esclarecimento geral sobre a distinção entre direito necessário e direito voluntário, observemos que o direito necessário, sendo sempre obrigatório na consciência, uma Nação não deve jamais perdê-lo de vista, quando deliberar sobre decisão a tomar em consonância com seu dever; mas quando examinar o que ela pode exigir dos demais Estados, ela deve consultar o direito voluntário cujos princípios são consagrados à preservação e conveniência da sociedade universal.
Essas teorias acerca do fundamento do Direito Internacional tiveram sua origem nas teorias do Direito Natural, entretanto, como claramente perceptível, tomaram rumos completamente diversos naquilo que pretendiam ser. A recepção dos Estados aos seus ensinamentos foi tamanha que ainda hoje se verifica a sobrevivência de seus conceitos principais. A partir de então, o Direito Internacional passaria a desenvolver-se a largos passos, adquirindo novas ideias e, o mais importante, definindo as bases para sua definitiva cognição entre os Estados. Se o corolário positivista obteve sucesso entre os Estados da época, isso se dá pela conveniência encontrada em aceitá-los. Neles os soberanos encontraram terreno para firmar-se no poder e utilizar-se dos meios possíveis à manutenção desse status quo. Umberto Campagnolo [118], em escritos conjuntos com Kelsen [119], afirma
Não poder existir nenhuma norma em contraste com o Estado: o Estado assim como foi definido é, na sua essência, absoluto [...] Existiram certamente também outras normas, além das normas jurídicas do Estado, e também outras sociedades além da sociedade política por excelência, mas tais normas seriam válidas somente como normas admitidas pelo Estado, e estas sociedades poderiam existir somente no interior e com a autorização do Estado. As outras normas (morais, religiosas, de civilização etc) representam ainda um modo regular segundo o qual a sociedade reage às ações dos seus membros. Mas essa ração não pode ter lugar acima e para além do contexto do Estado. Pelo contrário, essa reação deve conformar-e ao Estado: o Estado admite a reação moral, religiosa, etc.
O Direito Internacional, a partir de então, fora completamente tomado pelos ideais positivistas da época, permanecendo enraizados na ciência jurídica internacional durante os próximos séculos. Assim, o voluntarismo estatal na criação das normas internacionais e a soberania dos Estados permaneceu quase que intacta até metade do século XX. Dado que o foco desse trabalho é a participação do ser humano no cenário internacional e a influência dos Fundadores do Direito Internacional, os séculos em que observou-se a proeminência da sociedade interestatal não serão fruto de detalhada análise. Antônio Augusto Cançado Trindade [120], fervoroso crítico do positivismo no Direito Internacional, coloca de forma bastante clara seu pensamento, dizendo que:
A ideia de soberania estatal absoluta, que levou à irresponsabilidade e à pretensa onipotência do Estado, não impedindo as sucessivas atrocidades por este cometidas contra os seres humanos, mostrou-se com o passar do tempo inteiramente descabido. [...] Criado pelos próprios seres humanos, por eles composto, para eles existe, para a realização de seu bem comum. Em caso de violação dos direitos humanos, justifica-se assim plenamente o acesso direto do indivíduo à jurisdição internacional, para fazer valer tais direitos, inclusive contra o próprio Estado.
A sequência do trabalho buscará os primórdios da transformação do Direito Internacional, analisando as causas e consequências das modificações da ciência jurídica internacional, especialmente no que tange ao ser humano e sua participação no cenário internacional. Juntamente, buscar-se-á verificar de que forma se dá a aplicação das diferentes Teorias acerca do fundamento do Direito Internacional, primordialmente as Teorias do Direito Natural e o Positivismo.