Artigo Destaque dos editores

Os fundadores do Direito Internacional e a participação do ser humano nas relações internacionais

Exibindo página 3 de 4
27/01/2011 às 17:39
Leia nesta página:

4 O SER HUMANO NO DIREITO INTERNACIONAL

Neste último capítulo estudar-se-á o processo de transformação que houve no Direito Internacional e, mais especificamente, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, mormente a partir da metade do século XX. Essa mudança na estrutura da ciência jurídica internacional fez com que os Estados não mais fossem os únicos agentes do cenário internacional, ainda que continuem como os mais influentes. Somente a partir de então, houve a possibilidade de inserção do Ser Humano no recém criado Direito Internacional dos Direitos Humanos como sujeito de direitos e não mais como objeto, consolidando alguns dos ideais pensados pelos Fundadores do Direito Internacional ainda no século XVI.

4.1 O PENSAMENTO JURÍDICO PÓS-PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

A validade e eficácia do Direito Internacional durante os séculos XVIII e XIX foi largamente criticada pelos estudiosos modernos [121]. A integral adoção dos ideais positivistas pelos Estados nacionais em sua relação com a população interna e com os demais agentes do cenário internacional tornou quase impossível qualquer tipo de regulação externa às fronteiras nacionais. O positivismo e o voluntarismo estatal mostraram-se verdadeiros instrumentos de simples manutenção da ordem estabelecida, independente de sua natureza: justa, pacífica, democrática ou não.

Os recorrentes conflitos internacionais e desrespeitos aos Direitos Humanos ocorridos nos últimos séculos, culminando nas duas Grandes Guerras Mundiais, fizeram com que alguns conceitos do Direito Internacional fossem repensados, especialmente naquilo que tange à soberania e ao voluntarismo estatal. O sistema interestatal, dotado de total soberania por parte de cada um de seus agentes, mostrou-se completamente ineficaz no objetivo de evitar guerras e distorções na paz internacional. O professor Antônio Augusto Cançado Trindade [122], em discurso proferido no ano de 1999, demonstrou o sentimento de muitos escritores com relação ao século que terminava no âmbito jurídico internacional, ao dizer que:

Ao longo deste último século de trágicas contradições, do divórcio entre a sabedoria e o conhecimento especializado, na antinomia entre o domínio das ciências e o descontrole dos impulsos humanos, das oscilações entre avanços e retrocessos, gradualmente se transformou a função do direito internacional, como instrumental jurídico já não só de regulação como sobretudo de libertação.

Esse processo de desenvolvimento do Direito Internacional deu-se a partir de sua primeira crise, datada do período posterior à Primeira Guerra Mundial. Durante o conflito, houve um movimento de intelectuais e pacifistas, assim como diz Juan Antonio Carrillo Salcedo, no intuito de "constituir, ao fim da guerra, uma associação de Estados como meio para resolver pacificamente os conflitos internacionais e prevenir uma nova guerra" [123] (tradução nossa). Logo, as intenções de criação de um órgão internacional passaram da iniciativa privada a autoridades estatais, tornando-se o primeiro desafio dos países vencedores após o término do conflito. Assim, José Alberto Azeredo Lopes [124], em seu livro, evidencia os ideais expostos ao Congresso pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson em seu discurso dos quatorze pontos, em 8 de Janeiro de 1918, consagrando que

Deve ser formada uma associação geral de nações através de convenções específicas, tendo em vista conceder garantias mútuas de independência política e de integridade territorial tanto aos grandes como aos pequenos Estados.

Fruto desses esforços conjuntos, no seio do Tratado de Versalhes [125] nasceu a Liga das Nações, uma Organização Internacional com personalidade jurídica própria. Pode-se dizer que a movimentação jurídica, no intuito de criar uma entidade parcialmente desvinculada do voluntarismo estatal, foi importante, porém, ainda que o projeto estivesse cercado de esperança por governos e pela sociedade civil, os motivos que levaram à sua efetividade ser quase nula foram vários. Truyol y Serra [126] aborda dois fatores que, segundo ele, foram determinantes para impedir seus objetivos de garantir a paz e a segurança, sendo o primeiro

O fato de o seu pacto constitutivo figurar nos tratados de paz parecia predestiná-la a ser antes de mais um instrumento ao serviço do status quo. Por outro lado, a ausência dos Estados Unidos, cujo Senado não ratificou o Tratado de Versalhes, cerceava-lhe gravemente a autoridade.

Carrillo Salcedo, em sua obra, cita, apesar das incongruências da Liga das Nações, algumas das importantes manifestações a respeito de sua criação com relação ao sistema internacional e ao Direito Internacional. Em referência ao primeiro, o autor valoriza a institucionalização de técnicas de negociação multilateral; a criação de técnicas de cooperação internacional em matéria política, econômica, social e cultural; a cristalização de um modelo institucional, permanente e pré-estabelecido, fruto das atividades coletivas dos Estados; e a instauração de uma função pública internacional permanente e independente dos Estados. No campo do Direito Internacional, ele observa, dentre outros avanços, a limitação do recurso à guerra pelos Estados e a instituição de um sistema de segurança coletiva e de sanções [127].

Com relação à participação do ser humano no Direito Internacional, o Tratado de Versalhes trouxe um tímido e criticado sistema de reivindicação dos indivíduos frente aos Estados. No seio do Tratado, foram criados os Tribunais Arbitrais Mistos entre cada um dos Estados vencedores da guerra e a Alemanha no intuito de emitir sentenças acerca do mérito das reclamações efetuadas por cidadãos aliados, sobre seus interesses e direitos de propriedade na Alemanha. Como leciona Wolfgang Friedmann, "as decisões desses tribunais desenvolveram alguns interessantes princípios novos de direito internacional, mas sua importância principal foi permitir aos indivíduos efetuarem reivindicações contra Estados estrangeiros" [128].

Entretanto, segundo Friedmann, a posição dedicada aos indivíduos pela Convenção Germano-Polonesa da Alta Silésia, de 1922, tem ainda maior significância ao processo de emancipação do indivíduo no Direito Internacional. Isso porque, perante o Tribunal Arbitral criado na Convenção, os indivíduos, ao demandarem acerca de possíveis limitações de direitos, "gozavam de plena igualdade com os representantes dos governos, aos quais podiam processar segundo sua própria discrição" [129].

Ainda referente aos avanços no processo de participação dos indivíduos no cenário internacional, o Pacto que deu origem à Liga das Nações também estabelecia que o Conselho deveria preparar um projeto de Corte Permanente de Justiça Internacional. Dessa forma, na cidade de Haia, em 1920, reuniu-se um Comitê de Juristas que preparou o estatuto da Corte que entraria em vigor no ano seguinte. Porém, diante da possibilidade de estabelecer um modelo inovador em que o ser humano fosse um sujeito de direitos, o Comitê foi demasiadamente conservador aos velhos paradigmas. Com oito votos contra dois, estabeleceu-se que os indivíduos não poderiam comparecer perante a Corte enquanto partes de um processo. Em especial, quatro membros do Comitê (Ricci Busatti, Barão Descamps, Raul Fernandes e Lord Phillimore) foram duramente contrários aos dois votos vencidos, defendendo que tão-somente os Estados eram pessoas jurídicas no ordenamento internacional [130].

Assim, analisando as modificações no cenário internacional após a Primeira Guerra Mundial, Carrillo Salcedo afirma que o Direito Internacional continuou sendo, fundamentalmente, interestatal. Entretanto, como destaca, um sinal de mudança e transformação foi introduzido na ordem internacional com a criação da Liga das Nações. Esse órgão, tido como a primeira experiência histórica de cooperação permanente e institucionalizada, foi um importante fator de reforma e modernização do sistema internacional [131]. Isso porque, apesar de sua ineficiência, demonstrava, na época, uma mudança de mentalidade dos líderes mundiais, no sentido de possibilitar a criação de um organismo internacional que pudesse interferir de alguma forma na consagrada soberania dos Estados.

Não obstante, segundo Truyol y Serra, foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial que os equilíbrios existentes foram, de fato, profundamente abalados. Houve, nessa época, um "surto do processo de organização da sociedade dos Estados" [132], assim como da proteção internacional dos direitos humanos. A evidente incapacidade da Liga das Nações em evitar novos conflitos internacionais não fez com que os ânimos fossem abalados com relação às Organizações Internacionais. O que se viu, especialmente ao término da guerra, foram esperanças ainda maiores num organismo de cooperação que pudesse auxiliar os Estados nos momentos de guerra e paz.

As discussões acerca desse novo órgão foram acirradas e tinham, entre si, claras distinções quanto à estrutura, funcionamento e alcance internacional. Alguns defendiam a manutenção da antiga Liga das Nações, enquanto outros acreditavam ser necessária a criação de uma Organização completamente nova. Outra disputa se deu com relação à competência territorial que deveria ser dada ao órgão. Defendia-se a ideia de que diversas organizações internacionais regionais seriam mais interessantes do que uma única organização de vocação mundial, sendo esse o posicionamento inicialmente abraçado pelo líder britânico da época, Sir Winston Churchill. Entretanto, a ideia regionalista não obteve sucesso, consagrando-se a noção universalista defendida pelo presidente norte-americano Roosevelt [133]. Dessa forma, coloca Carrillo Salcedo [134] que

Prevaleceu, portanto, a ideia de criar uma nova Organização Internacional, ainda que desenvolvida em duas direções: de um lado, uma Organização Internacional geral, a Organização das Nações Unidas, destinada a recolocar e substituir, e não a continuar, a Liga das Nações; de outro, uma série de Organizações Internacionais, Organismos Especializados das Nações Unidas, igualmente universais, mas com competências em setores e matérias particulares em que a cooperação institucionalizada resultava imprescindível e urgente (tradução nossa).

Assim, em 25 de abril de 1945, os Estados que lutaram contra o Eixo (Estados liderados pela Alemanha nazista) durante a Segunda Guerra Mundial e que haviam sido convidados pelas quatro potências da época (Estados Unidos da América, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, China e Grã-Bretanha) reuniram-se na Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional, preparando a chamada Carta da Organização das Nações Unidas. O documento entrou em vigor em 24 de outubro de 1945, quando foi ratificado pelos países que iriam compor o Conselho de Segurança, o mais alto órgão na hierarquia daquela que seria uma das mais importantes Organizações Internacionais já existentes.

Apesar de haver dezenas de críticas a respeito do mau funcionamento e da falta de efetividade da Organização das Nações Unidas, a contribuição de seus órgãos ao desenvolvimento do Direito Internacional e as tentativas de pacificar as Relações Internacionais são quase inegáveis. Se o seu desempenho frente ao tradicional voluntarismo dos Estados não foi o esperado, não há que se falar que sua existência foi nula ao aperfeiçoamento do cenário internacional e ao bem-estar dos indivíduos. Christian Tomuschat, professor e jurista alemão, membro do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas [135], denominou, segundo Mello, o ano de 1945 como o da "transição copernicana dos direitos humanos" [136]. Sobre o período após a Segunda Guerra Mundial e a incipiente normatização dos direitos humanos no plano internacional, defende Flávia Piovesan [137] que

É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Com efeito, no momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.

Seria, então, a partir da Organização das Nações Unidas e de seus organismos especializados que surgiria o Direito Internacional dos Direitos Humanos. A formação e normatização desse novo ramo da ciência jurídica seria um processo longo e constante, permeado por uma série de encontros, declarações e tratados internacionais sobre Direitos Humanos. Esse desenvolvimento será fruto da continuidade desse estudo, buscando analisar de que forma a participação do ser humano no Direito Internacional dos Direito Humanos se consolidou.

4.2 OS DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO INTERNACIONAL

O processo de generalização da proteção aos Direitos Humanos no âmbito internacional deu-se, no âmbito da Organização das Nações Unidas, a partir da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Esse documento, como alega Lima Junior, recriou a concepção de direitos humanos, classificando-os como universais e indivisíveis. Além disso, foi a partir da Declaração que teve início o Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo como princípios basilares e norteadores de seu corpo normativo a ideia de que "os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e como tais antecedem a todas as formas de organização política; e sua proteção não se esgota - não pode se esgotar - na ação do Estado" [138].

Entretanto, como destaca Cançado Trindade, ainda no ano de 1947, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), um dos órgãos especializados da Organização das Nações Unidas, a título de colaboração com a redação da Declaração, realizou um estudo dos principais problemas da época que deveriam constar no documento. [139] As interpretações foram as mais variadas possíveis, de acordo com as correntes filosóficas seguidas por cada um dos estudiosos consultados. Dessa forma, segundo o mesmo autor [140],

Enquanto Teilhard de Chardin insistia na garantia da liberdade do indivíduo perante as forças da coletividade, Aldous Huxley discorria sobre os juízos de valor na sociedade industrial e Jacques Maritain defendia o fundamento jusnaturalista dos direitos consagrados. Edward Carr advertia para a necessidade de inclusão dos direitos econômicos e sociais na [futura] declaração de direitos, ao passo que Quincy Wright ressaltava não só as relações entre os direitos individuais e sociais mas também as diferenças na implementação de cada categoria de direitos.

O plano inicial da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, órgão criado simultaneamente à criação da Organização das Nações Unidas e encarregada oficialmente de elaborar a Declaração, era criar uma Carta Internacional de Direitos Humanos, tendo a Declaração como sua primeira parte, sendo complementada posteriormente por Convenções e medidas de implementação, efetivamente estabelecidas somente vários anos mais tarde. Porém, apesar da demora em se implementar medidas operacionais à Declaração de Direitos, Cançado Trindade considera que esse lapso de tempo somente aumentou o impacto da Declaração Universal de 1948. Segundo ele, isso contribuiu para que os princípios constantes na Declaração fossem incorporados ao Direito Internacional Consuetudinário e aos princípios gerais de Direito, tanto internacional quanto nacionalmente [141]. Assim, somente em 1966, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entrando em vigor tão-somente em 1976.

Porém, como defende Friedmann, a Declaração Universal dos Direitos Humanos sofria de um mal: pecava por estabelecer tão somente padrões genéricos de aceitação daquilo que buscava estabelecer, ficando delegado totalmente aos Estados o seu atendimento. A Declaração, segundo o jurista alemão [142],

Não cria obrigações legais por parte destes (os Estados) nem reconhece reivindicações exequíveis por parte dos indivíduos para cuja proteção foi concebida. É um marco orientador e uma indicação da tendência dos padrões internacionais de moralidade, no máximo preparatória da criação de padrões legais definidos e não a corporificação de tais padrões.

Pode-se dizer que a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas teve um trabalho digno de méritos ao redigir a Declaração e, nos anos seguintes, estabelecer a criação de dois Pactos de implementação dos Direitos Humanos. Isso porque, assim como dizem alguns estudiosos, conseguiu apaziguar ânimos e estabelecer consensos entre os mais diversos pensamentos e correntes políticas da época. Como diz Carrillo Salcedo, "a vida da Organização das Nações Unidas estava dominada pela Guerra Fria e o enfrentamento bipolar, ideológico, político e estratégico entre as duas superpotências, os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas" [143]. Havia, nessa época, "aqueles que torcessem para que o processo demorasse o máximo possível, devido às diversas posições conflitantes e o secreto desejo de muitos Estados de manter a sua soberania intacta" [144].

A formação de um pensamento unificado acerca da necessidade de proteção dos Direitos Humanos passa, então, a ser algo inédito nas Relações Internacionais. Sobre essa mudança, Friedmann [145] tem importante passagem em sua obra, elucidando o fato de que

A projeção das questões sociais e econômicas para o âmbito das relações internacionais tem um profundo efeito sobre a estrutura dessas relações e, consequentemente, do direito internacional. [...] Antes da Primeira Guerra Mundial, as tentativas de cooperação nesses campos estavam essencialmente confinadas a problema técnicos como a União Postal Internacional ou a Comissão Europeia do Danúbio.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Esse processo de legislação do Direito Internacional dos Direito Humanos passou, em certa medida, de uma fase de implementação dos primeiros instrumentos internacionais à efetiva proteção dos Direitos Humanos no ano de 1968, com a realização da primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Teerã. A segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos ocorreu no ano 1993, na cidade de Viena. A partir dela houve, segundo Cançado Trindade, uma "reavaliação global da aplicação de tais instrumentos e das perspectivas para o novo século, abrindo campo ao exame do processo de consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos" [146].

Não há dúvidas de que a Organização das Nações Unidas e seus Órgãos Especializados tiveram uma influência benéfica sobre a vida dos indivíduos mais necessitados ao redor do mundo. Entretanto, o que se vê, em grande parte, são medidas fortemente caracterizadas pelo voluntarismo dos Estados, ainda que as Organizações Não-Governamentais tenham adquirido um papel fundamental na proteção dos Direitos Humanos nas últimas décadas. Entretanto, a falta de efetividade dos programas de proteção dos Direitos Humanos ainda é visível, especialmente naqueles que possuem caráter universal. Com relação aos percalços à integral capacidade de ação dessas medidas globais, destaca muito bem Friedmann [147], ao dizer que

O maior obstáculo no caminho de uma carta internacional eficaz de direitos humanos é, naturalmente, a tentativa de unir as nações do mundo, com toda a sua diversidade de valores, praticas e padrões de governo, numa aceitação de princípios comuns. Onde isto foi tentado, como na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o preço a ser pago foi uma imprecisão de definições que, até certo ponto, anula seus propósitos. [...] Um pacto de direitos humanos pressupõe um grau de acordo que ainda não existe em nível universal sobre assuntos como liberdade de crença, padrões de administração judicial, santidade da propriedade privada ou controle dos recursos naturais.

Exatamente pelos motivos expostos pelo professor alemão, assim como outros que, direta ou indiretamente, tiveram influência no processo de aplicação da legislação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, essa ciência jurídica não obteve a aplicação desejada e necessária à população mundial. Se no âmbito universal os Direitos Humanos encontraram enormes obstáculos à efetivação, no âmbito regional, o sucesso na proteção da pessoa humana foi extremamente superior. As Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos mostraram-se capazes de dar um passo à frente no desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Finalmente, no seio desses Organismos internacionais, o indivíduo encontrou a oportunidade que há séculos almejava: situar-se como sujeito de direitos com capacidade processual autônoma ao Estado, ou seja, consagrar-se como titular do direito de peticionar frente ao próprio Estado. Assim como enfatiza a doutrina, a transformação da ordem internacional, desencadeada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, não tem acontecido sem dificuldades, especialmente pela necessidade de uma nova mentalidade com relação ao Direito Internacional. Porém, a conquista do direito de petição tem sido vista como uma grande vitória ao ser humano, como coloca o prof. Antônio Augusto Cançado Trindade, visto que

Já nos primórdios do exercício deste direito se enfatizou que, ainda que motivado pela busca da reparação individual, o direito de petição contribui também para assegurar o respeito pelas obrigações de caráter objetivo que vinculam os Estados Partes. Em vários casos o exercício do direito de petição tem ido mais além, ocasionando mudanças no ordenamento jurídico interno e na prática dos órgãos públicos do Estado [148].

A conquista desse direito tem sido relacionada, então, com o reconhecimento de que os Estados devem responder pela forma como tratam todos os indivíduos que se encontram sob sua jurisdição. Friedmann diz que, "o direito que tem um indivíduo de apresentar queixas perante uma corte supranacional, contra violações de seus direitos pelo Estado do qual é nacional, diminuiu um pouco o princípio da soberania estatal absoluta com relação aos nacionais" [149], representando, segundo analisado nesse trabalho, um retorno aos princípios dos Fundadores do Direito Internacional. Cançado Trindade ainda defende ser "da própria essência da proteção internacional dos direitos humanos a contraposição entre os indivíduos demandantes e os Estados demandados em casos de supostas violações dos direitos protegidos" [150]. Com relação à obtenção de tais direitos, em 1969, René Cassin [151], jurista, professor e juiz francês, vencedor do Prêmio Nobel da Paz por seus trabalhos durante a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, defendeu que, se na terra ainda subsistem

Grandes zonas onde milhões de homens ou mulheres, resignados a seu destino, não ousam proferir a menor reclamação ou nem mesmo a conceber que um recurso qualquer seja possível, estes territórios diminuem a cada dia. A tomada de consciência de que uma emancipação é possível, torna-se cada vez mais geral. [...] A primeira condição de toda justiça, qual seja, a possibilidade de encurralar os poderosos para sujeitar-se a [...] um controle público, satisfaz-se hoje bem mais frequentemente que outrora. [...] O fato de que a resignação sem esperança, de que o muro do silêncio e de que a ausência de todo recurso estejam em vias de redução ou de desaparecimento, abre à humanidade em marcha perspectivas encorajadoras.

Como visto, a partir das Cortes Europeia e Interamericana, o indivíduo passou a dotar-se de capacidade processual internacional, podendo demandar frente aos Estados as infrações aos Direitos Humanos. Por esse motivo, os próximos alvos de estudo serão exatamente esses Organismos Internacionais, a fim de analisar mais especificamente sua participação nesse desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, assim como a consagração dos preceitos defendidos pelos Fundadores do Direito Internacional, ainda nos séculos XV e XVI.

4.2.1 Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos

Friedmann, já citado nesse estudo, considerava a proteção dos direitos humanos no âmbito regional muito mais interessante e viável, dada a possível homogeneidade dos Estados envolvidos e a facilidade nos entendimentos acerca da criação de mecanismos de proteção dos indivíduos. Seu pensamento é corroborado por outros autores atuais, dentre eles Flávia Piovesan, ao afirmar que, a partir do momento em que há menos Estados envolvidos, o consenso político é facilitado. Assim, citando Rhona K. M. Smith, a autora relembra que a cultura, língua e tradições semelhantes apresentam-se como vantagens no desenvolvimento de textos e mecanismos nessa área do Direito [152].

Nesse aspecto, a realidade mostrou-se também condizente com o pensamento de Friedmann, ao passo que os maiores avanços obtidos no âmbito internacional acerca da participação dos indivíduos no Direito Internacional dos Direitos Humanos ocorreram exatamente dentro dos Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos. Assim sendo, o objeto desse estudo em sua sequência será a participação que as Cortes Europeia e Interamericana tiveram no desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, em especial, no aumento da participação dos próprios indivíduos como sujeitos, e não mais como objetos de direito.

Importante, ainda, citar a existência do Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos. Ainda que visivelmente menos desenvolvido do que os sistemas europeu e interamericano e, infelizmente, criado sobre bases jurídicas e democráticas menos sólidas, esse não deixa de ser considerado uma mudança no pensamento jurídico internacional daquela região. O presente estudo, não tendo objetivo de abraçar todos os sistemas existentes, não se aprofundará no sistema Africano, ainda que a menção à sua existência e relevância se faça necessária.

4.2.1.1 O sistema europeu de proteção dos direitos humanos

Os acontecimentos ligados à Segunda Guerra Mundial fizeram com que, em 1949, dez Estados europeus [153] se reunissem em Londres a fim de estabelecer um Conselho da Europa [154]. A falta de objetividade com relação aos assuntos ligados aos Direitos Humanos fez com que um movimento europeu pressionasse o Conselho para a adoção de uma Convenção Regional sobre o tema. O Movimento estava motivado especialmente pela aparência de pouca efetividade que a recém criada Declaração Universal de Direito Humanos continha, assim como a baixa expectativa pelos futuros Pactos que se prometia criar [155]. Contrariamente à pluralidade de pensamentos e crenças que se via ao redor do mundo na época do fim da Segunda Guerra Mundial, "elas (as partes do Conselho da Europa) partilham de uma cultura ocidental comum, tradições comuns e, em geral, da crença no sistema democrático de governo e do valor do indivíduo como constituindo mais que uma pequena peça na maquinaria do governo" [156].

Desde logo consagrou-se a ideia de que seria criada uma Corte Europeia, assim como uma Comissão Europeia, no intuito de analisar os casos previamente à Corte. O direito de petição inicial ainda não tinha sido implantado cabalmente, permanecendo inserido em uma clásula facultativa do tratado. Os direitos que se buscava defender eram muitos e variados, assim como destaca Friedmann [157],

A Convenção abrange os direitos à vida, à liberdade da tortura ou escravidão, à liberdade e à segurança da pessoa, ao processo justo e à proteção contra a aplicação das leis penais a infrações cometidas antes da vigência dessas leis. Ela protege a liberdade de pensamento, consciência e expressão e o direito à associação pacífica. Inclui também uma proteção limitada da propriedade privada, da qual o indivíduo só pode ser despojado apenas no interesse público e sujeito às condições estabelecidas pela lei e pelos princíprios gerais do direito internacional.

Entretanto, como aponta Cançado Trindade, já em seus primeiros casos contenciosos se insurgiram críticas à artificialidade da mediação feita pela Comissão Europeia, impedindo o indivíduo de peticionar diretamente à Corte. No caso Lawless vs Irlanda (1960), "a Corte Europeia passou a receber, por meio dos delegados da Comissão Europeia, argumentos escritos dos próprios demandantes, que frequentemente se mostravam bastante críticos no tocante à própria Comissão" [158]. Ele ainda lembra que, uma década depois, em 1960, no caso Vagrancy vs Bélgica, no momento em que o advogado de uma das partes pôde falar perante a Corte, ele criticou o relatório da Comissão com relação ao seu caso.

O desenvolvimento da participação dos indivíduos frente à Corte Europeia deu-se, de forma mais interessante, a partir do Protocolo nº 9, adotado em 1990. Este consagrava, para os Estados que o ratificaram, o direito de acesso direto à Corte, após considerados pela Comissão. A cristalização do locus standi aos indivíduos, ou seja, o direito de falar e justificar seu pedido frente à Corte deve ser enxergado, segundo defende Cançado Trindade, como um "passo significativo para o fortalecimento da posição do indivíduo no contencioso internacional dos direitos humanos" [159]. Porém, ainda que o Protocolo nº 9 tenha sido adotado em 1990, assim como alega Cançado Trindade, o Comitê de Peritos em Direitos Humanos do Conselho da Europa já estava consciente das mudanças necessárias à eficiência do órgão quatorze anos antes, em 1976. Durante esse período em que se construiu a ideia de modificações na forma de atuação dos órgãos de proteção aos direitos humanos, os mais diversos argumentos foram se cristalizando, formando um corpo de ideias que possibilitaram os avanços na participação dos indivíduos frente à Corte.

Assim, da época da adoção do Protocolo nº 9, os argumentos que sustentavam uma maior participação efetiva do ser humano no órgão eram os seguintes: esse representava o desenvolvimento lógico do sistema de controle da Convenção de Direitos Humanos; seriam evitados tratamentos desiguais entre Estados e indivíduos, considerados partes iguais frente ao órgão decisório; daria liberdade aos indivíduos de decidir se havia ou não interesse em peticionar frente à Corte e, por fim, a estrutura existente seria aperfeiçoada ao conceder maior capacidade processual aos indivíduos, possibilitando seu acesso direto ao tribunal de direitos humanos [160].

Entretanto, foi a partir da adoção do Protocolo nº 11 que o direito de petição por parte dos indivíduos configurou-se como uma verdadeira emancipação com relação ao Estado na qual se é nacional. Esse protocolo, adotado em 1998, modificou o posicionamento normativo do direito de petição dos indivíduos, não mais colocando-o dentro de uma cláusula facultativa a ser ratificada pelos Estados, mas sim uma cláusula de conteúdo mandatário, impedindo que os Estados não consentissem ou dificultassem o acesso dos seres humanos autonomamente à Corte. Além disso, o Protocolo nº 11 entrou em vigor com o objetivo de substituir a Comissão e a Corte Europeia, órgãos com funcionamento em tempo parcial, por uma Corte Europeia de Direitos Humanos de caráter permanente, juridicamente vinculante e com decisões de natureza declaratória, "reforçando o caráter jurisdicional do sistema" [161] e estendendo os direitos de petição também às Organizações Não-Governamentais [162].

Dessa forma, o locus standi concedido aos indivíduos a partir do Protocolo nº 9 passou a figurar como um jus standi, ou seja, um avanço no sentido de garantir ao ser humano a posição de verdadeiro sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dotados de plena capacidade jurídica processual internacional. Assim, Cançado Trindade [163] diz que

O aperfeiçoamento institucional da Convenção Europeia, mediante a entrada em vigor do Protocolo nº 11, reflete, em última análise, o reconhecimento inequívoco de que a via judicial constitui a modalidade mais aperfeiçoada de salvaguarda internacional dos direitos humanos. [...] Os direitos humanos devem ser protegidos no plano internacional por um órgão judicial, operando em base permanente e tempo integral, com jurisdição compulsória em matéria contenciosa, ao qual os indivíduos têm o direito de acesso direito (independentemente da aceitação de uma cláusula facultativa pelo Estado em que se encontram).

A jurisprudência que a Corte Europeia de Direitos Humanos vem criando é considerada pelos estudiosos como de grande importância. Os motivos pelos quais os Estados cumprem as determinações da Corte, apesar de meramente declaratórias, variam de: pressões diplomáticas no seio do Conselho da Europa, interesses em integrar a União Europeia e o chamado power of shame ou power of embarrassment, ou seja, a possibilidade de ser considerado um Estado violador dos Direitos Humanos. As penas mais utilizadas pela Corte com relação aos Estados condenados são de natureza pecuniária em favorecimento das vítimas, não excluindo a possibilidade, assim como estipulado no Estatuto do Conselho, de exclusão do Estado infrator do Conselho da Europa, em especial nos casos em que há descumprimento das determinações iniciais da Corte.

Flávia Piovesan conecta o alto grau de cumprimento das decisões da Corte a várias possibilidades. Dentre elas, enumera-se a tradicional observância aos princípios de Estado de Direito pelos Estados-parte do Conselho da Europa, o compartilhamento dos valores democráticos e de direitos humanos, assim como a busca pela integração política e, por último, a credibilidade alcançada pela própria Corte ao longo dos anos, "por atuar com justiça, equilíbrio e rigor intelectual" [164].

A jurisprudência da Corte também tem auxiliado o fortalecimento da noção de indivíduo como sujeito de direitos dentro do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Cançado Trindade defende que a Corte tem realizado uma gradual ampliação do conceito de "vítima" sob o âmbito da Convenção, o fortalecimento dos indivíduos enquanto sujeitos perante a Corte, a flexibilização do esgotamento dos recursos jurídicos internos como condição de admissibilidade das demandas perante a Corte Europeia e a própria noção de obrigatoriedade de cumprimento das decisões da Corte por parte dos Estados tem ganhado corpo. Assim, no caso Hornsby vs Grécia, de 1997, a Corte defendeu que o direito a um julgamento justo e imparcial "seria ilusório se se referisse tão só à formulação das garantias processuais e à conduta das partes litigantes, sem abarcar também a implementação das decisões judiciais, o que dificilmente se conformaria com a própria noção de Estado de Direito" [165].

Além das decisões constantes no intuito de garantir ao ser humano sua posição de destaque dentro do aparato processual do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial na Corte Europeia de Direitos Humanos, a jurisprudência também caminha no sentido de garantir os direitos materiais, e não somente formais, aos indivíduos. A partir de uma série de casos, os juízes da Corte Europeia têm defendido os direitos à justiça no processo civil e penal, as garantias essenciais aos indivíduos encarcerados, a liberdade de expressão, credo e opção sexual, assim como os direitos de imigração e expulsão. Além disso, como escreve Cançado Trindade, outro ponto de grande relevância é a jurisprudência da Corte no âmbito da hermenêutica. A Corte Europeia não se limita a estender a obrigatoriedade de suas decisões aos Estados que integram os pólos passivos ou ativos de uma demanda, mas garantem efeito erga omnes à decisão, podendo ser defendida pelas partes perante qualquer Estado parte da Convenção Europeia [166].

Apesar da necessidade de continuar avançando no sentido de garantir ao ser humano a proteção de seus direitos mais efetivamente, o Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos vem se mostrando um grande aliado dos indivíduos no cenário internacional. Muitos dos ideais pensados pelos Fundadores do Direito Internacional e subjugados durante séculos vêm sendo finalmente aplicados graças à contribuição da Corte ao Direito Internacional. A capacidade processual dos indivíduos é algo pensado há séculos, ainda por Hugo Grotius, e que, pelos mais diversos motivos mostrados, permaneceu à margem da realidade internacional.

Se a Corte Europeia trouxe avanços na proteção aos Direitos Humanos, há que se destacar também, em menor medida, provavelmente, a participação da Corte Interamericana nesse processo. O órgão situado em território americano não possui, como o Sistema Europeu, o acesso direto e autônomo dos indivíduos à Corte de Direitos Humanos. Porém, apesar de menos evoluído e, consequentemente, menos efetivo, a observância de sua participação no desenvolvimento do ser humano como sujeito de direitos é, em última análise, válida. Sua criação e evolução serão, de forma concisa, fruto de análise na sequência do estudo, assim como a verificação de sua participação no intuito de cristalizar os pensamentos dos antigos F. de Vitoria, F. de Suárez e Hugo Grotius.

4.2.1.2 O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos

O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, como será visto com maior precisão na sequência, ainda não alcançou alguns dos significantes avanços percorridos pelo Sistema Europeu. Entretanto, como a análise histórica dos sistemas sugere, o Sistema Interamericano segue numa linha de evolução semelhante àquela europeia. Dessa forma, há que se pensar que, se os desenvolvimentos em solo americano que se têm visto no início deste século XXI são relacionados com aqueles adotados pelo Sistema Europeu na década de oitenta do século passado, os cidadãos americanos hão que aguardar vitórias semelhantes.

A década de 50, como já visto, observou um importante desenvolvimento normativo no âmbito dos Direitos Humanos, com a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, instrumento que viria ser a pedra angular do Direito Internacional dos Direitos Humanos. No continente americano, esse período também foi de grande importância para esse ramo da ciência jurídica internacional. A IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, foi o evento que propiciou a adoção da Carta da Organização dos Estados Americanos, criando a Organização que abarca os 35 Estados das Américas (incluindo o Caribe). Na mesma ocasião, foi redigida a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, representando o marco inicial do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos [167].

Essa declaração, tão importante ao futuro desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos na América, consagrou alguns dos princípios que vinham tomando corpo também naquela década, na Europa, com sua materialização na futura Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, a Declaração Americana veio cristalizar: a concepção de direitos humanos inerentes à pessoa humana, a reunião dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais como fundamentais à vida humana, a base normativa vis-à-vis Estados não-Partes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a correlação entre direitos e deveres [168]. O posicionamento que deveria ser adotado pelos Estados-parte da Organização dos Estados Americanos fica claro no preâmbulo da Declaração, trazido pela obra de Lima Junior [169], no sentido de

Que, em repetidas ocasiões, os Estados Americanos reconhecem que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele cidadão de determinado Estado, mas sim do fato de os direitos terem como base os atributos da pessoa humana; Que a proteção internacional dos direitos do homem deve ser a orientação principal do direito americano em evolução; Que a consagração americana dos direitos essenciais do homem, unida às garantias oferecidas pelo regime interno dos Estados, estabelece o sistema inicial de proteção que os Estados americanos consideram adequado às atuais circunstâncias sociais e jurídicas, não deixando de reconhecer, porém, que deverão fortalecê-lo cada vez mais no terreno internacional, à medida que essas circunstâncias se tornem mais propícias.

Assim, em 1959, em Santiago, Chile, durante a V Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores, foi criada, a partir de uma resolução, e não de um tratado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Segundo seu estatuto, tinha a Comissão, assim como coloca Cançado Trindade, um mandato limitado à promoção dos direitos humanos. Não obstante, já em seus primeiros anos de atuação, a Comissão passou a atuar de forma mais incisiva, lutando por ampliações de seu rol de trabalhos. Dessa forma, durante a II Conferência Interamericana Extraordinária, no Rio de Janeiro, em 1965, a Comissão teve seus poderes ampliados, podendo receber petições ou comunicações sobre violações de direitos humanos [170].

Em 1970, com a entrada em vigor do primeiro Protocolo de Reformas da Carta da Organização dos Estados Americanos, foi reconhecida "a necessidade de dotar de bases jurídicas tanto a Declaração Americana como a Carta da OEA" [171]. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos passou a ter seu posicionamento jurídico muito fortalecido, combatendo as indagações sobre sua competência. Seu caráter de mera promoção dos direitos humanos foi finalmente extinto, passando a controlar e supervisionar a proteção dos Direitos Humanos.

A Comissão passou a incitar os Estados na harmonização de suas Constituições internas com os preceitos de direitos humanos defendidos pelos tratados de direitos humanos. Cançado Trindade expõe o caráter fortemente participativo que a Comissão adquiriu a partir de então. O autor cita como exemplo o caso chileno, em que a Comissão "se engajou na coleta de dados relevantes sobre a situação, realizou missões in loco, e elaborou recomendações e uma série de relatórios a partir de 1973" [172].

A Comissão ainda se mostrou sensível no tocante à hipossuficiência dos reclamantes sobre direitos humanos, flexibilizando algumas questões de admissibilidade, como o esgotamento dos recursos internos. O caráter preventivo da Comissão também teve grande importância, como defende Aguilar, "foram derrogados ou modificados leis, decretos e outros dispositivos que afetavam negativamente a vigência dos direitos humanos, [além de que] se estabeleceram ou aperfeiçoaram recursos e procedimentos para a melhor tutela" dos direitos humanos" [173].

Em 1978, com a ratificação do décimo primeiro Estado, finalmente entrou em vigor a Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada quase dez anos antes. Ficou, dessa forma, estabelecido um novo "aparato de monitoramento e implementação dos direitos que enuncia [humanos]" [174], integrado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana.

O desenvolvimento procedimental das petições ficou da seguinte maneira: a Comissão tem a competência de receber a petição e decidir acerca de sua admissibilidade, pautado no prévio esgotamento dos recursos internos, salvo injustificada demora processual, e solicitar informações ao governo denunciado. Se, após recebimento dos documentos estatais, verificar-se que existem, de fato, fundamentos à petição, a Comissão realiza um exame da matéria, investigando os fatos quando considerar necessário. O próximo passo da Comissão é buscar uma solução pacífica e, caso não o consiga, encaminhar um relatório ao Estado, dando um prazo de três meses ao cumprimento das recomendações. Decorrido o prazo, a Comissão pode dar parecer próprio sobre o caso, caso tenha decisão fundamentada de maioria absoluta de seu colegiado, publicando-o no relatório anual de suas atividades, ou encaminhar o caso à Corte, de forma compulsória se verificado o não-cumprimento das recomendações por parte do Estado, sendo esse o órgão jurisdicional do sistema interamericano. Quando enviado à Corte, diversamente do sistema europeu, a competência de pleitear frente aos juízes é da Comissão, e não diretamente dos indivíduos, em grupo ou individualmente, e da Organizações Não-Governamentais [175].

Evidente que, assim como observado no desenrolar procedimental do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a participação do ser humano é muito mais limitada do que no Sistema Europeu. A falta de legitimidade no comparecimento frente à Corte mostra-se como um cerceamento de uma efetiva participação dos indivíduos como sujeitos de direito no Sistema Interamericano. Entretanto, como já colocado anteriormente nesse estudo, a agenda atual do Sistema Interamericano apresenta problemas de desenvolvimento semelhantes àqueles vistos no Sistema Europeu em fins da década de oitenta e que, felizmente, são hoje consagrados. A locus standi, ou seja, a representação legal do indivíduo frente à Corte Interamericana ocupa posição central na preocupação dos juristas com relação ao futuro do Sistema Interamericano [176].

Outro ponto que urge um necessário desenvolvimento referente à Convenção Americana sobre Direitos Humanos se configura no plano contencioso da Corte, ao passo que a competência dessa é limitada aos Estados-parte da Convenção que "reconheçam tal jurisdição expressamente; [...] esse dispositivo constitui um anacronismo histórico, que deve ser superado a fim de que se consagre o automatismo da jurisdição obrigatória da Corte para todos os Estados-parte da Convenção" [177]. Cançado Trindade [178] expressa sua preocupação com relação à falta de obrigatoriedade quando defende que

Sob as cláusulas da jurisdição obrigatória e do dirieto de petição individual se ergue todo o mecanismo de salvaguarda internacional do ser humano, razão pela qual me permito designá-las verdadeiras cláusulas pétreas de proteção internacional dos direitos da pessoa humana.

Um verdadeiro "divisor de águas" nesse processo necessário de jurisdicionalização da Corte Interamericana de Direitos Humanos, representado pela concessão de locus standi aos indivíduos, foi o caso El Amparo, em meados dos anos noventa. Durante a audiência pública do processo, realizada em 1996, um dos magistrados da Corte manifestou expressamente que, ao menos naquela etapa do processo, "não podia haver dúvida de que os representantes das vítimas eram a verdadeira parte demandante ante a Corte" [179] e, a partir de então, passou a fazer perguntas diretas a eles e não aos delegados da Comissão.

A importância desse caso foi tamanha que, no ano seguinte, com a vigência do terceiro Regulamento da Corte, ficou estabelecido que, assim como constante no artigo 23 do documento, na etapa de reparações, "os representantes das vítimas ou de seus familiares poderão apresentar seus próprios argumentos e provas de forma autônoma". Porém, somente no ano 2000, com a adoção do quarto Regulamento da Corte, o locus standi aos indivíduos foi finalmente cristalizado no corpo normativo do Sistema Interamericano, estabelecendo que os indivíduos demandantes teriam direito de argumentar perante à Corte em todas as etapas do procedimento contencioso.

As vitórias acerca da participação dos indivíduos no Direito Internacional dos Direitos Humanos, além de terem dado ânimo àqueles descrentes perante o consagrado voluntarismo estatal, não apaziguou os clamores dos juristas, inclusive daqueles que formam o corpo de magistrados da Corte Interamericana. Cançado Trindade, autor citado por diversas vezes nesse estudo, dado seu consagrado saber jurídico, também cresce em importância teórica por ser um desses magistrados. Sem medo, pode-se afirmar que o jurista brasileiro é um dos juristas, dentre aqueles que compõem a Corte, que mais tem dado vida à luta no reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito no âmbito americano e mundial. Reflexo desse reconhecimento encontra-se em seus diversos votos diante da Corte americana, sempre reiterando a importância da colocação do ser humano em um lugar de destaque dentro dos processos e, em maior medida, do Direito. Durante o caso Castillo Petruzzi vs Peru, o jurista brasileiro [180] defendeu em seu voto que

é pelo livre e pleno exercício do direito de petição individual que os direitos consagrados na Convenção [americana sobre direitos humanos] se tornam efetivos. O direito de petição individual abriga, com efeito, a última esperança dos que não encontraram justiça em nível nacional. Não me omitiria nem hesitaria em acrescentar,- permitindo-me a metáfora, que o direito de petição individual é indubitavelmente a estrela mais luminosa no firmamento dos direitos humanos.

Após verificar a forma como tem trabalhado o Sistema Interamericano de Proteção dos Dirietos Humanos, há que se falar numa constante necessidade de desenvolvimento, visto que o ser humano ainda não adquiriu, no âmbito americano, total emancipação perante o Estado no que tange à proteção de seus direitos essenciais. Entretanto, seria equivocado não considerar tamanha evolução em tão pouco tempo. Os séculos em que o ser humano foi marginalizado nos assuntos jurídicos internacionais foram muitos e, não por acaso, configuraram-se como extremamente danosos à proteção da pessoa humana.

Se ainda existe uma flagrante fragilidade do Sistema Interamericano, isso se dá pela fragilidade dos próprios regimes internos de cada país, especialmente na América Central e do Sul. A proteção dos indivíduos no âmbito interno ainda se caracteriza por ser incipiente, assim como a democracia não se encontra cristalizada em alguns Estados. Um sistema de proteção que busque abarcar uma série de Estados fica, invariavelmente, ligada à tradição interna dos próprios Estados. Piovesan coloca que, "tendo o desafio de romper com as práticas do legado autoritário ditatorial, é que se delineiam na região, gradativamente, espaços institucionais de cooperação intergovernamental vocacionados à defesa dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito" [181].

Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos foram e são de grande importância ao indivíduo no cenário internacional, devendo ser protegidos quanto à sua funcionalidade e desenvolvidos quanto à participação do ser humano. Assim como visto no início deste estudo, os pensadores intitulados como Fundadores do Direito Internacional, apesar de renegados durante muitos séculos, têm recebido a devida importância nesse início de século. O processo que teve início com o fim da Segunda Guerra Mundial vem tentando recolocar o ser humano na posição que lhe é devida: como fim último do Direito.

4.4 A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

Após a verificação de uma série de teorias acerca dos fundamentos do Direito Internacional, enfatizando as concepções jusnaturalistas dos Fundadores do Direito Internacional, chega-se ao momento em que se pode considerar sua validade no cenário atual. Evidente que não há que se falar na possibilidade de aplicação de tais conceitos nos últimos séculos, marcados pelo voluntarismo estatal ilimitado.

Assim, a partir da metade do século XX, como defende Cançado Trindade, a doutrina mais esclarecida passou a distanciar-se dos ideais de Estado impregnados no Direito Internacional até então. A noção de que o Estado é um fim em si mesmo, não existindo para servir aos indivíduos, seus verdadeiros componentes, passou a ser abandonada por alguns. Ainda que o mundo contemporâneo seja completamente diferente daquele em que viveram os Fundadores do Direito Internacional, a inspiração humana é a mesma: "a construção de um ordenamento internacional aplicável tanto aos Estados quanto aos seres humanos, em conformidade com certos estandartes universais de justiça" [182].

Conforme defendido por F. de Vitoria ainda no século XVI, o Direito Internacional, construído segundo as necessidades das Relações Internacionais e reduzido a uma mera "dimensão relacional", fato que realmente se consagrou durante vários séculos, "esvaziaria o que tem de mais precioso, embora nem sempre positivado - o conjunto de princípios, de parâmetros, de paradigmas, que norteiem a ordenação teleologicamente humana do mundo" [183].

A própria noção de direitos humanos inerentes à pessoa humana é considerada um retorno às origens dos Fundadores do Direito Internacional, exatamente por ser fortemente pautada nos ideais do Direito Natural defendidos por aqueles autores séculos atrás. Os seres humanos têm direitos tão-somente pelo fatos de serem considerados como tal, não podendo restringí-los, assim como prevê a doutrina positivista predominante durante largo período, àqueles que o Estado "concede" aos indivíduos.

A proteção dos direitos humanos vem ganhando corpo gradativamente no âmbito universal e regional, como foi visto, e sua efetividade vem sendo aprimorada ao longo das últimas décadas. Entretanto, apesar de ser uma construção normativa recente, a necessidade de proteção dos seres humanos no âmbito internacional foi idealizada por Hugo Grotius, durante o século XVII. O autor holandês já defendia a ideia, ainda que não tenha sido aplicada durante vários séculos, em decorrência do já citado positivismo.

Entretanto, pode-se dizer que, o incipiente aumento da participação do ser humano como sujeito do Direito Internacional é o ponto crucial desse movimento de proteção aos direitos humanos. Um corpo normativo sem as ferramentas necessárias à sua proteção e sem a possibilidade de petição frente às infrações torna-se letra morta. Por esses motivos, a colocação do indivíduo em posição central no Direito Internacional dos Direitos Humanos é, muito provavelmente, o principal legado jurídico-internacional do último século. A humanidade está, sob a ótica de Cançado Trindade, testemunhando um processo de humanização do Direito Internacional, caracterizado precipuamente pela "identificação e realização de valores e metas superiores" [184]. O mesmo autor [185], em sua obra, afirma que

Desde a obra clássica de Hugo Grotius no século XVII, tem se desenvolvido uma influente corrente de pensamento jusinternacionalista que concebe o Direito Internacional como um ordenamento jurídico dotado de valor próprio ou intrínseco (e, portanto, superior a um direito simplesmente voluntário), derivando sua autoridade de certos princíprios da razão.

Os Fundadores do Direito Internacional, apesar de não haverem tido aplicação em sua época ou nos séculos que se seguiram, têm alcançado êxito, finalmente. Seus ideais revolucionários à época parecem, quase cinco séculos depois, completamente originais e condizentes com a necessidade da realidade internacional. Partindo do princípio de que nenhum Estado pode considerar-se acima do Direito, retornamos à origem conceitual tanto do Estado como do Direito Internacional. Enquanto o primeiro não pode se esquecer de que foi originalmente concebido à realização do bem comum e que existe para o ser humano, e não ao contrário, o segundo não pode se esquecer de que não tem suas origens em um direito estritamente interestatal, mas sim no antigo direito das gentes [186].

O Direito Internacional, após séculos de negação aos preceitos jusnaturalistas e, por conseguinte, de correntes afrontas aos Direitos Humanos, finalmente tem se preocupado com aqueles ideais preconizados pelos Fundadores do Direito Internacional. A amplitude que esse desenvolvimento terá está guardado na história futura, porém, como consolo àqueles ávidos por mudanças, o Direito Internacional, após aceitar parte daquilo que foi pregado pelos antigos, já tem se mostrado um instrumento muito mais condizente com seu fim último: o ser humano.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Thiago Luis Reinert

Graduado em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba; e estudante de Direito, também pelo Centro Universitário Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINERT, Thiago Luis. Os fundadores do Direito Internacional e a participação do ser humano nas relações internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2766, 27 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18343. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos