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O usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006.

Reflexões críticas sobre os aspectos diferenciadores

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Agenda 05/02/2011 às 09:56

5 REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE OS DISCURSOS DO JUDICIÁRIO DE FEIRA DE SANTANA DIANTE DO USUÁRIO E DO TRAFICANTE: UM ESTUDO DE CASO

Para um melhor entendimento sobre o tema abordado, faz-se mister uma análise de três casos concretos, a fim de que se compreenda como tem sido o posicionamento do Poder Judiciário na Comarca de Feira de Santana em relação à problemática trazida pela Nova Lei de Drogas.

O objetivo desse momento metodológico é proceder a algumas reflexões críticas com relação aos discursos da magistratura quando decidiram pela condenação dos protagonistas dos casos apreciados, neste estudo.

Nesse contexto, é importante ressaltar a qualidade do que revelam esses atores do sistema criminal, através da sentença ainda que tenham silenciado a respeito de determinadas crenças ideológicas que são próprias da história de vida de cada um desses atores.

Essa importância das falas (e dos silêncios) se respalda em Orlandi (2003, p. 83), quando argumenta que "o discurso não é apenas o dito, mas também se apresenta pelo não-dito, por ‘formas de silêncio’ que atravessam as palavras, que ‘falam’ por elas, que as calam."

A análise dos discursos desses magistrados é relevante para fundamentar a hipótese aqui defendida, no sentido de que os critérios diferenciadores entre usuário e traficante, de acordo com a Lei nº 11.343/2006, não são aplicados de modo uniforme no momento da prolação das sentenças. Isso porque, ora os juízes ignoram esses aspectos e dele não se apropriam nos seus julgamentos, ora utilizam esses dados de modo incompatível com as prescrições a seu respeito.

É certo que este estudo, até mesmo por sua proposta crítica, não estaria a desconhecer o princípio da individualização da pena, portanto, não é sobre essa garantia constitucional que se está debatendo.

O que se discute é que essa aplicação da Nova Lei de Drogas, ora omissa, ora inadequada, parece se submeter às ideologias e ao modo de interpretar o mundo de cada "operador do direito". E isso, certamente, termina por desigualar os sujeitos que estão sob julgamento, e que têm suas condutas denominadas ilícitas examinadas, às vezes, à luz do "direito penal do autor" e não, do "direito penal do fato", o que prejudica a própria crença na lei e no Direito.

Por fim, analisar o discurso proveniente dos órgãos de controle social formal, no caso, dos magistrados, significa, como expressa Miaille (1994, p. 33),. compreender os fenômenos que envolve esse discurso na sua concepção de "um corpo coerente de proposições abstractas implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir, mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas próprias".

Por isso, a importância de se desvendar o que falam essas sentenças e quais as perspectivas de reprodução de seus conteúdos, que podem, sim, se constituírem graves riscos para os destinatários das leis aplicadas pelos autores de tais discursos.

Nessa perspectiva é que se passa ao exame crítico dos casos selecionados e dos discursos que os movem.

CASO 01 - Processo nº 2475626-3/2009

N.M.S., brasileiro, solteiro, pintor autônomo, natural de Feira de Santana/BA, nascido em 21/03/1972, residente nesta cidade, foi denunciado pela prática do seguinte ato delituoso:

Conforme consta do inquérito policial nº. 010/2009, no dia 2 de janeiro de 2009, por volta das 16h, prepostos da Polícia Militar prenderam em flagrante delito o denunciado, em razão de ter sido encontrado em seu poder, a quantidade de 577 (quinhentas e setenta e sete) "trouxinhas" e 485 (quatrocentos e oitenta e cinco) "dolões" (papelotes), contendo 3.280g (três mil duzentos e oitenta gramas) da substância entorpecente conhecida como "maconha", pronta para comercialização, bem como 01 (uma) balança eletrônica, 10 (dez) tesouras, 01 (um) celular, 20 (vinte) maços de papel de seda e 01 (uma) motocicleta Honda, conforme auto de exibição e apreensão de fl. 07 e Laudo Pericial de fl. 12.

O Representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra N. M. S, dando-o como incurso nas sanções do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

No caso em tela, a materialidade do fato delituoso, para o magistrado, segundo se depreende da decisão condenatória de fls. 75/79, resultou comprovado através do auto de exibição, de apreensão, dos laudos provisório de constatação e definitivo, onde se pode verificar que a substância apreendida em poder do acusado e achada numa casa nas proximidades de sua residência, se tratava de substância entorpecente vulgarmente conhecida como "maconha", de uso proscrito no país e constante na Lista F-2 da portaria 344/98 do Ministério da Saúde.

Apesar de a autoria ter sido negada pelo acusado, por ocasião dos depoimentos prestados em juízo, o fato foi efetivamente praticado por N.M.S, como fica demonstrado a partir dos depoimentos prestados em Juízo às fls. 75/79.

Ao ser interrogado, o réu negou que a droga lhe pertencesse, mas admitiu ter envolvimento com o tóxico por já ter feito uso da maconha no passado.

As testemunhas confirmaram que a droga foi apreendida na casa abandonada próximo à residência do acusado. De acordo com o depoimento da 1ª testemunha, um dos policiais que efetuou a diligência, esse imóvel foi aberto pelo próprio acusado, com uma chave que estava em seu próprio chaveiro, ou seja, na mesma penca de chaves onde estava a chave da residência do acusado. Nessa ocasião, o acusado declarou que recebia semanalmente a maconha procedente de Juazeiro.

A 2ª testemunha, também policial que efetuou a diligência, afirmou que a prisão se deu porque encontraram o acusado com certa quantidade de maconha em forma de trouxinhas não especificando essa dose, mas que na casa do acusado não foi encontrada droga.

A última testemunha, igualmente agente policial que participou da diligência, garantiu que a quantidade de droga encontrada com o acusado era pequena e que o próprio acusado assumiu como sua. Na casa do acusado não encontraram drogas, e sim um celular e uma moto estacionada na rua.

Após análise desse conjunto de provas, o juiz concluiu que o depoimento das testemunhas ouvidas na fase policial e depois em Juízo harmonizavam-se com o interrogatório do acusado, no sentido de que a droga apreendida quando da sua prisão era de pequena quantidade. Entendeu ainda que o restante da droga encontrada numa casa abandonada, não habitada, e que o interrogado afirmou não lhe pertencer e nem saber quem era o verdadeiro dono, poderia ser do acusado ou de outras pessoas, pois a prova testemunhal, em nenhum momento, afirmou que esta droga pertencia ao acusado, ainda que ele próprio tenha levado os policiais até esta casa abandonada.

Não foram arroladas testemunhas de defesa, embora tenha sido apresentada a defesa prévia pelo defensor constituído pelo réu, informando que a casa era habitada por um casal que depois da separação se mudou para outra localidade, juntando inclusive fotos tiradas da casa numa prova de que esta era habitada e não abandonada.

O exame dos autos deixou claro, para o magistrado, que a maior quantidade da droga não foi apreendida com o acusado, mas em uma casa que não lhe pertencia.

A tese da defesa, segundo o magistrado, em parte mereceu guarida, tendo em vista que a maior quantidade da droga não foi apreendida com o acusado e sim numa casa abandonada e em nenhum momento a prova testemunhal afirmou que esta droga era do acusado. Além disso, ele não vendia droga no momento de sua prisão, assim como a quantidade de droga encontrada em seu poder era pequena.

Apesar disso, o juiz apontou para o fato de que o crime de tráfico de drogas possui ação múltipla, não fazendo a Lei qualquer distinção entre o ato de trazer ou guardar drogas com o ato de vender propriamente dito.

Assim, o conjunto probatório constante dos autos levou à conclusão de que o denunciado ao ser preso trazia certa quantidade de droga consigo, o que se conclui que tenha praticado a conduta descrita na lei como tráfico de entorpecente, evidenciando o destino da droga apreendida em seu poder, desprezando-se a outra quantidade apreendida em casa abandonada.

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Esses argumentos fizeram com que fosse julgada procedente a denúncia de fl. 02, para condenar o denunciado como incurso nas penas do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006.

A análise do discurso judicial tem significativa importância dentro do contexto desse estudo de caso. Como se percebe, neste processo, o réu, apesar de ter sido encontrado com "pequena quantidade" de drogas, como diversas vezes reafirmado na sentença condenatória emanada do Juízo da Vara de Tóxicos da Comarca de Feira de Santana e ao longo de todas as peças trazidas aos autos, terminou por ser enquadrado no crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei nº. 11.343/06.

O equívoco no enquadramento da conduta praticada pelo réu com o delito de tráfico de drogas é evidente. Vejam-se as falas dos autos:

A segunda testemunha ouvida em Juízo declarou que o acusado foi encontrado com "certa quantidade" de maconha, não especificando em nenhum momento a quanto equivaleria essa "certa quantidade".

A última testemunha, por seu turno, assegurou que a quantidade de droga encontrada com o acusado "era pequena". Ora, se a "certa quantidade" de droga relatada pela segunda testemunha "era pequena", como relata a última testemunha, qual o critério objetivo do magistrado para dar a essas falas o significado que baste à classificação da conduta do acusado como tráfico de drogas?

Afinal, a interpretação dada pelo juiz à "certa quantidade" de maconha encontrada em poder do réu tem um significado que, no discurso com o qual condena esse sujeito, se traduz por uma quantidade suficientemente capaz de se prestar ao comércio, mais que ao simples uso da substância. Tanto é verdade que entendeu tratar-se de tráfico de drogas. Apesar da indefinição, os termos "certa" e "pequena", avaliados de modo subjetivo pela polícia e pelo Ministério Público, foram depois confirmados pelo juiz.

Nesse momento, poder-se-ia pensar então nas drogas encontradas na casa abandonada. Ali haveria quantidade e equipamentos suficientes para configurar-se o delito de tráfico. Observe-se, nesse sentido, que o próprio magistrado asseverou que "há de se presumir que o restante da droga encontrada na casa abandonada poderia ser do acusado ou de outras pessoas, pois a prova testemunhal em nenhum momento afirmou que esta droga pertencia ao acusado". (Grifamos)

A propósito dessa fala, fica a observação de que, a princípio, parece que o magistrado não se arriscou a condenar por mera "presunção", o que é vedado por lei e pelo entendimento jurisprudencial. Logo, o significado atribuído ao "restante da droga" encontrada no local abandonado, nenhuma repercussão teria na sentença, que optou pela "certa quantidade".

Essa análise da fala do magistrado pode ser confirmada quando, ainda na sentença, aduz que "claro restou que a quantidade maior da droga não foi apreendida com o acusado, pois a mesma estava em uma casa que não pertence ao acusado". E, para aniquilar quaisquer dúvidas quanto à questão, o magistrado, no momento de enquadrar o denunciado como traficante fez questão de esclarecer que "a certa quantidade de droga" que o acusado trazia consigo era suficiente para classificar a sua conduta como tráfico, "desprezando-se a outra quantidade apreendida em casa abandonada".(Grifamos)

No entanto, no discurso expresso na sentença, de que o denunciado, "efetivamente, ao ser preso, trazia certa quantidade de droga o que se conclui tenha praticado a conduta descrita na lei como tráfico de entorpecente" (grifamos), o Poder Judiciário decidiu com suporte em mera presunção. Isso porque em nenhum momento ficou afirmado que o acusado foi flagrado "vendendo droga", ou qualquer outro tipo do caput do art. 33.

Ora, a doutrina e jurisprudência são diametralmente opostas à tese sustentada pelo magistrado. Assim, Nucci (2009, p. 308) assegura que o agente que traz consigo pequena quantidade de droga, sendo primário e sem qualquer antecedente, permite a conclusão de se tratar de mero usuário. De modo igual se posiciona a jurisprudência pátria:

EMENTA: TRÁFICO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE -PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INAPLICABILIDADE - TRÁFICO NÃO CARACTERIZADO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não havendo prova robusta da mercancia realizada pelo agente da droga apreendida, deve ser procedida a desclassificação para o crime de posse de substância entorpecente para consumo próprio. (Grifamos)

(TJ-MG Número do processo:1.0278.06.002393-6/001(1), Número CNJ: 0023936-52.2006.8.13.0278, Relator: Alexandre Victor de Carvalho, Relator do Acórdão: Maria Celeste Porto, Data do Julgamento: 24/03/2009, Data da Publicação: 06/04/2009).

Constata-se, assim, que o acusado terminou sendo julgado e condenado como traficante tão somente devido ao fato de ter sido encontrado com uma "pequena quantidade" de drogas, que em nenhum momento foi devidamente especificada durante o curso do processo. Se a quantidade era pequena, também de menor valor deveria ser sua acepção, para, desse modo, se distanciar do sentido de tráfico, exatamente ao revés do que fora deduzido pelo magistrado.

Além disso, não foram analisados, na sentença condenatória, quaisquer dos outros critérios determinados pelo art. 28, § 2º da Lei de Drogas para diferenciar o usuário do traficante. Essa evidência leva à conclusão de que o discurso do magistrado, quanto à conduta do réu, se revelou superficial, sem interpretar ao menos de modo mais crítico, a "certa e pequena" quantidade de maconha apreendida em poder do acusado, que foi condenado pelo delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006.

Outro registro deve ser feito a partir do exame da fala do magistrado, expressada na sentença que se estuda. Parece, no mínimo, um contra-discurso, o fato de a sentença que condena ser a mesma que reconhece ser o acusado "primário, pai de família, domicílio certo, profissão definida, ter sido pequena a quantidade de droga apreendida consigo quando de sua prisão, não registrando antecedentes criminais, não havendo nos autos indícios de que se dedique a atividade criminosa. (Grifamos)

Desse modo, a contradição do discurso do magistrado é clara não só quanto à abstração do significado da quantidade da droga que originou a condenação do acusado, como ainda quanto ao reconhecimento da história do protagonista desse caso não registrar hábitos na atividade criminosa. Ainda assim, a condenação por traficância ilícita.

CASO 02 - Processo nº 1397533-4/2007

L. D. A., brasileiro, casado, natural de Touros/RN, nascido em 30/05/1971, endereço não informado, 1º grau incompleto foi denunciado pela prática do seguinte ato delituoso.

Conforme consta do inquérito policial nº. 003/2007, no dia 11 de janeiro de 2007, por volta das 22h, na BR-324, KM-521, em frente ao Restaurante Minuano, prepostos da Polícia Rodoviária Federal prenderam em flagrante delito o denunciado acima qualificado, transportando, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ½ Kg (meio quilo) de cocaína e portando a quantia de R$ 9.400,00 (nove mil e quatrocentos reais), tudo devidamente apreendido e a droga constatada preliminarmente.

O Representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra o indiciado, dando-o como incurso nas sanções do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

Interrogado na Delegacia, o denunciado afirmou que a droga não lhe pertencia, porém confessou estar transportando a pedido de um caminhoneiro, M.S. que também forneceu o dinheiro apreendido para entregar a uma pessoa, M. C. M., que aguardaria no Largo do Tanque, em Salvador e lhe faria o pagamento de R$ 600,00 (seiscentos reais) acertado pelo transporte.

Em Juízo, o denunciado mais uma vez negou ser proprietário da droga, afirmando que não estava portando a citada substância, sendo que somente estava na posse do dinheiro encontrado. Tal dinheiro teria sido enviado por seu irmão para efetuar a compra de um carro. Declarou ainda que a droga apreendida foi encontrada em um matagal pelos policiais, não sabendo declarar a quem pertencia, mas chegando a informar que o dono do carro sabia de sua existência, mas contudo, não foi preso pelos policiais.

Informou ainda que todas as declarações prestadas na polícia decorreram de imposição das autoridades policiais e do medo da tortura que estava por sofrer tanto assim que assumiu estar transportando o entorpecente.

As testemunhas de acusação, policiais rodoviários federais, declararam em Juízo que no dia do fato efetuaram a abordagem do veículo Gol, onde estavam o acusado e mais cinco pessoas, sendo que, no assoalho do referido veículo, foi encontrada a droga apreendida. Contudo, uma vez que nenhum dos ocupantes do veiculo assumiram a posse do entorpecente, os policias inquiriram essas pessoas até que o telefone celular do acusado tocou e, um dos policiais, simulando ser o acusado, confirmou a partir das declarações prestadas pelo receptor da droga que era L., o portador do entorpecente. Nesse momento foi dado voz de prisão e L. foi conduzido à Delegacia Especializada.

O policial rodoviário federal que testemunhou, em consonância com as declarações prestadas pelos outros policiais, declarou que um dos passageiros afirmou ter sido o acusado quem colocou a droga no assoalho do carro, bem como informou que o acusado disse estar transportando a droga a pedido de um caminhoneiro, sendo que o destino do entorpecente era a cidade de Salvador.

A testemunha de defesa, J. N. C., declarou que o acusado veio até esta cidade para realizar a compra de um carro, aduzindo ainda não ter nenhum conhecimento de que o acusado estivesse envolvido com o tráfico de drogas. A segunda testemunha de defesa, J. M. S. A., também atestou a boa conduta do apenado e o total desconhecimento de que o mesmo tivesse envolvimento com o tráfico.

Diante de tais provas produzidas, conclui-se que o réu praticou o delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, em sua forma de transportar substância de uso proscrito no país, vez que as provas testemunhais produzidas não deixam margem para a dúvida no decreto condenatório. Ademais, esmiuçando as provas produzidas, em especial a prova testemunhal e pericial produzidas, verifica-se que as declarações prestadas pelo acusado durante a fase extrajudicial amoldam-se perfeitamente com as declarações prestadas pelas testemunhas de defesa, assim como o dinheiro apreendido da subsídios para entende-los de propriedade do traficante "M. S." citado pelo acusado em seu depoimento extrajudicial.

Disso registre-se ainda que o acusado informou ser operador de escavadeira, com remuneração de R$ 700,00 (setecentos reais), atualmente em gozo de benefício previdenciário no valor de R$ 280,00 (duzentos e oitenta reais), fatos que excluem a possibilidade dos valores serem do acusado oriundo de atividades lícita do acusado.

No mais, as alegações do acusado de que o proprietário do valor em dinheiro encontrado era seu irmão, somente foram atestados pelo acusado e por uma testemunha de defesa, não vindo sequer o irmão do acusado, proprietário da quantia apreendida, peticionar no feito, trazendo a comprovação da origem lícita do dinheiro, a fim de reivindicá-lo, o que, por conseguinte, extrai qualquer chance da aquisição lícita da quantia apreendida. Assim, conclui-se, também, que a quantia de R$ 9.400,00 (nove mil e quatrocentos reais) apreendidas é fruto do tráfico de drogas exercido pelo acusado.

"Diante do exposto julgo procedente a pretensão estatal e via de conseqüência condeno L. D. M., o acusado pela prática do delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, na modalidade transportar e trazer consigo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar."

Assemelha-se o evento ora em análise ao apreciado no caso antecedente, na medida em que ambos tratam de condenações atinentes à alegação de crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Não obstante, esses casos diferem em relação ao exame efetuado por cada magistrado no momento de avaliar os critérios diferenciadores estabelecidos no § 2º do art. 28 da Lei de Drogas, sobretudo no que alude à quantidade de substância ilícita encontrada com o agente quando de sua apreensão.

Enquanto no caso 01, bastou ao julgador a menção de "pequena quantidade de drogas" para enquadrar o agente como traficante, no presente caso o magistrado foi mais criterioso, buscou, em sua fundamentação, precisar especificamente a quantidade de substância psicoativa apreendida, qual seja ½ kg (meio quilo) de cocaína, sustentando, pois, de modo mais coerente o enquadramento do acusado no crime disposto no art. 33 da Lei de Drogas.

Muito embora seja mais aceitável o discurso do último magistrado ao cotejar a sua fundamentação com a disposta na ação penal alusiva ao caso 01, faz-se necessário avaliar meticulosamente se este julgador realmente valeu-se de todos os aspectos encontrados na Lei para diferenciar o usuário do traficante.

No que se refere às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente, pode-se afirmar que o magistrado olvidou de ponderar acerca de tais premissas, apenas considerando-as em momento posterior, quando da dosimetria da pena na análise dos aspectos dispostos no art. 59 do CP.

Não se pode negar que a fundamentação deste caso tem maior consistência quanto aos fundamentos do discurso do magistrado. Parece, à leitura do processo, que o juiz prolator se cerca de maiores cuidados no momento de aplicar a Lei nº 11.343/2006. No entanto, não escapa essa decisão condenatória a uma crítica no que se refere ao momento em que o magistrado faz presunções sobre o valor apreendido com o acusado e, diante da ausência de elementos que determinem a origem da quantia, resolve concluir que se trata de "fruto do tráfico de drogas exercido pelo acusado".

Dá esse magistrado, dessa forma, à posse do dinheiro o significado de resultado de uma traficância cujo flagrante não consistiu em mercancia e sim, em posse da droga, apreendida pela polícia federal.

Outra questão que também merece comentário é o fato de também estar incluído no discurso desse magistrado o critério estigmatizando do local do fato, quando expressa, na sentença, que "as circunstâncias do crime, que se resumem no lugar do crime, tempo de sua duração e outros são comuns à espécie, sendo o acusado preso em flagrante".

Indaga-se, quais seriam esses "outros" circunstâncias às ou aos quais se refere o magistrado? Seriam de caráter objetivo, expressas na Nova Lei de Drogas?

A omissão quanto a esses elementos é visível.

Também deve ser objeto de destaque o momento da individualização da pena quando o magistrado apesar de reconhecer que "a culpabilidade do réu não é acentuada", "os antecedentes são presumidamente bons", " a personalidade do agente não traz contornos concretos para que se determine que o mesmo está voltado para o crime de tráfico de drogas", ainda que atribuindo à personalidade do réu esses significados de qualidade, termina por condenar esse sujeito e ainda negar que aguarde o transito em julgado da sentença condenatória em liberdade, "por ser de alta periculosidade o delito" (Grifamos)

CASO 03- Processo nº 1690272-7/2007

O terceiro caso a ser examinado, neste estudo, trata também de condenação por trafico de drogas. Em síntese, o relatório apresentado pelo magistrado expressa o seguinte:

D. J., brasileiro, solteiro, nascido em 13/04/1985, residente e domiciliado nesta cidade, foi denunciado pelo Ministério Público como incurso nas penas do artigo 33 da Lei. 11. 343/2006.

Consta do procedimento investigativo que no dia 13 de agosto de 2007, por volta das 09:30 horas, o denunciado foi preso em flagrante delito na posse de 99 (noventa e nove) "dolões" da substância entorpecentes cannabis sativa (maconha), conforme Laudo Pericial, o que corresponde a um total aproximado de 350,0g (trezentos e cinquenta gramas); bem como a quantia de R$ 3,60 (três reais e sessenta centavos) e um isqueiro.

Autuado em flagrante, foi o acusado notificado quando apresentou defesa sem arrolar testemunhas a seu favor.

Interrogado na audiência do dia 25 de março de 2008, confessou em parte o delito, porem tentou justificar que a droga seria para consumo próprio.

Numa única assentada foi colhida a prova testemunhal da acusação já que o Réu não produziu prova em sua defesa.

Encerrada a instrução o Ministério Publico pediu a condenação do Réu nos termos da denuncia. A defesa, depois de negar a condição de traficante para o acusado, a que atribui ser usuário de drogas, concluiu pedindo a pena mínima face a primariedade do seu cliente.

A materialidade do delito imputado ao Réu, tráfico de drogas, através da maconha, substância de uso controlado e proibido por lei, foi devidamente comprovada através de laudo do exame toxicológico de fl. 40 dos autos.

No que diz respeito à autoria, esta é certa e em parte configurada pelo acusado ao tentar justificar a posse de droga em seu poder tão somente para consumo, apesar da quantidade e forma como acondicionada revelar tratar-se de tráfico.

A presente ação penal é pública incondicionada, detendo o Ministério Público a necessária legitimidade para o desenvolvimento válido e regular do processo que até aqui não apresentou.

Nenhuma nulidade a ser sanada, estando ação pronta para enfrentar o mérito, já que ficou demonstrado a autoria delitiva do tipo penal artigo 33 da citada Lei, uma vez que o acusado foi preso porque trazia consigo, pronto para o comércio, 99 (noventa e nove) dolões de maconha.

Sua informação de ser usuário de drogas e que esta quantidade era de uso pessoal não pode militar em seu favor pois tal quantidade naquele momento da prisão num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas.

Desta forma, resta devidamente configurado o delito do artigo 33, uma vez que a prova testemunhal da acusação conduz a esta conclusão, e o acusado não ilidiu tal prova, no contrário sequer arrolou testemunhas a seu favor, daí porque se falar em insuficiência de provas da conduta do acusado.

Com essas considerações e tudo mais que dos autos consta, o magistrado julgou procedente a denúncia de fls. 02/03 para condenar a acusado D. J., como infrator do artigo 33 da Lei 11.343/2006.

Este caso também apresenta sintomas de uma prática do Judiciário da Comarca de Feira de Santana, quanto aos critérios estabelecidos pelo novo diploma legal sobre drogas, onde, mais uma vez, o magistrado classificou como tráfico a conduta efetuada pelo indivíduo surpreendido pelos agentes policiais.

Nesse sentido, vale comentar o processo de avaliação do julgador a partir dos significados que imprimiu ao seu discurso, no momento de condenar o acusado.

Neste, como no outro episódio, o magistrado se pautou na quantidade e na forma de acondicionamento da substância apreendida para classificar o comportamento do réu como de traficante de entorpecentes, na medida em que este se encontrava na posse de 99 (noventa e nove) "dolões" de maconha.

Ao discorrer acerca do local e das condições em que se desenvolveu a ação, o magistrado destacou o espaço onde o denunciado foi surpreendido pelos prepostos da polícia militar, salientando que a sua alegação de ser usuário de drogas e de que a quantidade de droga apreendida destinava-se ao uso pessoal "não pode militar em seu favor, pois tal quantidade naquele momento da prisão num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas" conduziria a evidenciar exatamente o contrário. (Grifamos)

Importa, nesse caso, proceder à análise do significado atribuído pelo juiz ao bairro onde o fato narrado aconteceu que, por puro estigma, foi por esse julgador apontado como um local "já bastante identificado como ponto de venda de drogas". Esse elemento isolado, no entanto, não pode ser entendido como um dado objetivo e apto a condenar alguém por tráfico de drogas, apenas porque esse local seria, na interpretação do magistrado, uma evidência desfavorável a esse sujeito.

Registre-se que a doutrina pátria critica essa forma de entendimento à qual se alinha o juiz, na medida em que o fato de o indivíduo se encontrar em local conhecido popularmente pelo mercado de substâncias ilícitas não pode, per si, conduzir à premissa de tratar-se o cidadão de um traficante.

Nessa linha de pensamento leciona Vilar Lins (2007, p. 251):

A doutrina fala, por exemplo, em locais em que, normalmente, são vendidas drogas, zona típica de tráfico. É conveniente ressaltar, entretanto, que, se existem essas zonas é porque também existem os usuários que lá transitam; assim, a presença de indivíduos neste loco não é razão suficiente para enquadrá-lo no tráfico.

Outro comentário a ressaltar é o que alude aos demais critérios, circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente, tal como ocorreu no Caso 2. Aqui, como ali, pode-se assegurar que o juiz "esqueceu" de ponderar a respeito de tais aspectos, apenas considerando-os em instante ulterior, ao cuidar da dosimetria da pena, valendo-se, para tanto, dos critérios estabelecidos no art. 59 do CP.

A diferença entre um e outro discurso reside em que neste caso, pelo menos, a quantidade de droga apreendida foi certa e especificada, ou seja, 99 "dolões" de maconha, o que se compara a 350 gramas da substância. Ainda assim, não se pode entender como robustas as razões que determinaram o magistrado a condenar o réu por tráfico de drogas, fundamentando sua decisão "na quantidade e forma como acondicionada" a droga.

Outro momento do discurso expresso na sentença condenatória que confirma a aplicação inadequada dos critérios da Nova Lei de Drogas nos julgamentos desses ilícitos se evidencia quando o magistrado, ao individualizar a pena, afirma que "o Réu é primário", "tem domicílio certo", "não é residente no mundo das drogas" (Grifamos), "confessado inclusive a posse da droga apreendida, o que o leva a ter conduta social desviada pela prática do delito de tráfico".

O que se pode constatar a partir desse discurso é a contradição que traz nele próprio quando condena o réu por ter sido preso "num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas", e, na mesma decisão afirma que o condenado "não é residente no mundo das drogas" (Grifamos).

Essas contradições advindas de modos diversos de significar a traficância certamente, terminam por causar sérios riscos aos destinatários, que não são julgados por parâmetros minimamente hegemônicos, pelo menos quanto aos critérios objetivos das regras que disciplinam esses delitos.

Sobre a autora
Daniela Araújo dos Santos Nascimento

Advogada em Feira de Santana (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Daniela Araújo Santos. O usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006.: Reflexões críticas sobre os aspectos diferenciadores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2775, 5 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18435. Acesso em: 23 dez. 2024.

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