6 REMUNERAÇÃO E SALÁRIO
Um dos requisitos essenciais de qualquer vínculo de emprego é a onerosidade. Isto é, a relação entre as partes nasce com o intuito do empregado em ser economicamente contraprestado pelos seus serviços. Ao conjunto de parcelas que retribuem o trabalho desenvolvido dá-se o nome de remuneração ou de salário (DELGADO, 2008).
As expressões remuneração e salário corresponderiam, assim, ao conjunto de parcelas contraprestativas recebidas pelo empregado, no contexto da relação de emprego, denunciadoras do caráter oneroso do contrato de trabalho pactuado (DELGADO, 2008, p. 683).
O artigo 457 da CLT prevê que:
Art. 457. Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.
O salário, pois, é a retribuição dos serviços prestados pelo empregado, por força do contrato de trabalho, devido e pago diretamente pelo empregador. A remuneração, por sua vez, é resultante da soma do salário percebido e dos proventos auferidos de terceiros, habitualmente, pelos serviços executados por força do mesmo contrato (SUSSEKIND, 1996).
Contudo, nos contratos dos atletas profissionais de futebol, além do salário regularmente estipulado, são devidas outras verbas inerentes a este liame contratual e, por isso, clamam por estudo neste trabalho.
Vale ressaltar que o artigo 24 da Lei n. 6.354/76 veda ao clube o pagamento, como incentivo, em cada partida, prêmio ou gratificação superior à remuneração mensal. Mas essa regra é de difícil controle, já que o pagamento pode provir de outro clube interessado no resultado ou até de um torcedor fanático ou qualquer outra pessoa (BARROS, 2002, p. 79).
Há, ainda, a possibilidade de o jogador se recusar a trabalhar quando seus salários estiverem atrasados, incluindo-se no conceito de salário, para este fim, as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho, nos termos do artigo 31, § 1º, da Lei n. 9.605/98.
Neste capítulo estudaremos as luvas, o bicho e o direito de arena e o direito de imagem, que são pagamentos normalmente realizados aos atletas profissionais.
6.1 Luvas
O artigo 12 da Lei n. 6.354/76 estabelece que "entende-se por luvas a importância paga pelo empregador ao atleta, na forma do que for convencionado, pela assinatura do contrato".
As luvas traduzem importância paga ao atleta pelo seu empregador, "na forma convencionada, pela assinatura do contrato"; compõem a sua remuneração para todos os efeitos legais. Elas podem ser em dinheiro, títulos ou bens, como automóveis. Seu valor é fixado tendo em vista a eficiência do atleta antes de ser contratado pela entidade desportiva. (BARROS, 2002, p. 80).
As luvas são, assim, uma espécie de fundo de trabalho, muito semelhante ao "ponto", no direito comercial. É um valor pago para que determinado jogador assine o contrato com o clube. Assemelha-se, também, ao "ágil" do mercado automobilístico do fim dos anos de 1990. Quando um determinado produto (ou profissional) é difícil de se conseguir, o interessado acaba sendo obrigado a desembolsar uma quantia extra para a obtenção do negócio.
O artigo 31, §1º, da Lei n. 9.605/98, ao definir salário para fins de rescisão indireta, referiu expressamente que é considerado salário as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho.
Assim, o valor estipulado a título de luvas integra o salário para todos os fins e o seu não pagamento dá azo à rescisão do contrato por culpa do empregador.
A jurisprudência se manifestou sobre o assunto:
CONTRATO DESPORTIVO. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. LUVAS. NATUREZA JURÍDICA. As luvas, cujo termo em sentido figurado não é exclusivo do direito desportivo, mas também do Direito Comercial - locação comercial -, instituto com o qual também guarda semelhança inclusive no tocante à sua finalidade, pois nesta o valor do 'ponto' (fundo de comércio) aproxima-se do valor da propriedade do imóvel, implica em dizer que "em certo sentido, as luvas desportivas importam reconhecimento de um fundo de trabalho, isto é, o valor do trabalho desportivo já demonstrado pelo atleta que determinada associação contratar" , tudo consoante lição do mestre José Martins Catharino. A verba luvas, portanto, não se reveste de natureza indenizatória, porquanto é sabido que a indenização tem como pressuposto básico o ressarcimento, a reparação ou a compensação de um direito lesado, em síntese, compensa uma perda, de que na hipótese não se trata, na medida em que a verba recebida a título de luvas tem origem justamente na aquisição de um direito em face do desempenho personalíssimo do atleta, ou seja, o seu valor é previamente convencionado na assinatura do contrato, tendo por base a atuação do atleta na sua modalidade desportiva. Recurso de Revista conhecido e provido. (TST. PROCESSO: RR 418392 1998. PUBLICAÇÃO: DJ - 09/08/2002. Relator: JUIZ CONVOCADO VIEIRA DE MELLO FILHO.
Não há como, portanto, considerar os valores alcançados a título de luvas como de natureza indenizatória, pois sua natureza remuneratória é patente.
6.2 Bicho
O bicho é aquela remuneração paga ao atleta pelo desempenho em um jogo ou em uma competição específica. Ela se assemelha muito à gorjeta e não tem valor pré-determinado.
Sustenta-se que a nomenclatura "bicho" surgiu com as primeiras apostas sobre o futebol profissional quando este iniciava e guarda uma correção com o chamado jogo do bicho.
A importância intitulada "bicho", pela linguagem futebolística, é paga ao atleta, em geral, por ocasião das vitórias ou empates, possuindo natureza de prêmio individual, resultante de trabalho coletivo, pois visa não só compensar os atletas, mas também estimulá-los; essa verba funda-se em uma valorização objetiva, conseqüentemente, dado o seu pagamento habitual e periódico tem feição retributiva. (inteligência do art. 31, § 1º, da Lei n. 9.615, de 24.3.98). Os bichos são fixos e variáveis, podendo, excepcionalmente, ser pagos até mesmo em caso de derrotas, quando verificado o bom desempenho da equipe. (BARROS, 2002, p. 80).
MARTINS (2008) ensina que:
Bicho é a importância paga pelo clube ao jogador por vitórias ou empates. Normalmente, é pago aos atletas que participaram da partida, mas pode ser paga a todos os atletas. Visa estimular os atletas pelo resultado positivo na partida. Pode representar salário-condição, pois depende do atingimento do objetivo determinado pelo clube. Pode representar gratificação, por ser liberalidade do empregador ou espécie de prêmio pelo desempenho coletivo da equipe. É uma espécie de gratificação ajustada. Se o bicho é pago com habitualidade, tem natureza salarial, devendo compor a remuneração do empregado e sofrer a incidência do FGTS.
O "bicho" pode ser alcançado à equipe tanto pelo próprio clube como por terceiros (torcedor, outro clube interessado em algum resultado, patrocinador) e, por esse motivo, é equivalente às gorjetas do empregado comum.
Considerando que as gorjetas integram a remuneração, nos termos do artigo 457 da CLT, o "bicho" forma, pela média, base para FGTS, horas extras, 13º salário e férias, sendo que o seu não pagamento por três meses importa na rescisão indireta do contrato de trabalho, nos termos do art. 31, § 1º, da Lei Pelé.
6.3 Direito de Arena e Direito de Imagem
Já colocaram dúvidas acerca da existência dos direitos da personalidade, as quais acabaram sendo superados com a evolução da doutrina.
Os direitos da personalidade são direitos que decorrem da proteção da dignidade da pessoa humana e estão intimamente ligados à própria condição humana. Embora a violação a esses direitos possa ter repercussões patrimoniais, são direitos que se distinguem dos direitos patrimoniais, porque estão ligados à pessoa humana de maneira perpétua. (SCHIAVI, 2007).
Na seara do contrato de trabalho dos atletas profissionais de futebol, a exploração da imagem dos jogadores se dá de duas formas. A primeira, chamada de direito de arena, é inerente ao próprio contrato de trabalho por disposição legal, que se refere à transmissão das imagens de jogos de que participem. Esta exposição da imagem do atleta não há como evitar, pois a atividade é equiparada a do artista e voltada à exibição aos torcedores.
A segunda forma de exploração da imagem dos jogadores é pela cessão do uso da imagem para fins comerciais. Isto se dá mediante contrato específico entre o clube (ou outro interessado) e o atleta para a promoção comercial de camisetas, bonés e até para atrair mais torcedores ao estádio.
Note-se que o direito de arena está ligado à exibição do atleta em partidas e a segunda pela simples utilização da imagem do atleta na promoção comercial que foi contratada e independe da realização de partidas. Assim, o direito de arena e o direito de imagem (ou de uso da imagem), embora ambos se refiram à exploração da imagem do atleta, não se confundem.
Com efeito, o direito de arena vem previsto no artigo 42 da Lei Pelé:
Art. 42. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculos ou eventos desportivos de que participem.
§ 1º Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total autorizado, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento.
Segundo ZAINAGHI (1998, p. 148), "arena é palavra que significa areia. O termo é usado nos meios esportivos, tendo em vista que, na antiguidade, no local onde os gladiadores se enfrentavam, entre si ou como animais ferozes, o piso era coberto de areia".
O direito de arena decorre, assim, da transmissão ou retransmissão da imagem do atleta em eventos desportivos, cuja negociação é feita pelo clube com as emissoras de rádio e TV, pertencendo aos atletas 20%, pelo menos, do que for aferido no negócio.
Em conseqüência, a exploração econômica das imagens do esporte modificou sobremaneira as relações entre os protagonistas do espetáculo desportista e os meios audiovisuais. O "desportista profissional" é o ator do espetáculo e sua imagem é essencial e inevitável. Surge em função dessa atuação o direito do desportista participar do preço, da autorização, da fixação, transmissão ou retransmissão do espetáculo esportivo público com entrada paga, ao qual se denomina direito de arena. (BARROS, 2002, p. 85).
Manifestando-se sobre o direito à imagem, ensina BITTAR (1995, p. 87):
Consiste no direito que a pessoa tem sobre a sua forma plástica e respectivos componentes, distintos (rosto, olhos, perfil, busto) que a individualizam no seio da coletividade. Incide, pois, sobre a conformação física da pessoa, compreendendo esse direito um conjunto de caracteres que a identifica no meio social. Por outras palavras, é o vinculo que une uma pessoa à sua expressão externa, tomada no conjunto, ou em parte significativas (como boca, os olhos, as pernas, enquanto individualizadores da pessoa).
O direito da imagem é personalíssimo, mas o uso da imagem pode ser cedido mediante contrato civil. O direito ao uso da imagem pode ser livremente negociado pelo atleta com o clube ou com qualquer patrocinador ou entidade, que, mediante determinado pagamento, poderá utilizar a imagem do atleta para promoções de produtos ou de marcas. Exemplo claro disso é o contrato que o jogador Ronaldinho Gaúcho possui com a Nike. Em suma, é um contrato de publicidade.
Questão controversa surge acerca da natureza jurídica deste contrato de cessão de uso da imagem do atleta.
ZAINAGHI (2004, p. 36) entende que:
A cessão do direito de imagem, só existe em virtude da profissão de atleta, isto, é, os clubes celebram com o jogador (uma pessoa jurídica por este constituída), um contrato pelo qual irão ‘trabalhar’ a imagem do atleta, ou seja, vão divulgá-la, inclusive ligando-a à venda de produtos. Ora, se o ferido contrato é celebrado entre clube e atleta em virtude da relação de trabalho, parece-nos evidente a fraude e conseqüente nulidade de tais pactos (...)Não temos qualquer dúvida de que o pagamento efetuado em razão do direito de imagem tem natureza jurídica salarial.
A matéria é complexa, pois o direito de imagem tem natureza diferente das obrigações das partes do contrato de trabalho, uma vez que integra um direito da personalidade do atleta que pode ou não ser cedido. Não há contraprestação laboral pelo atleta ao ceder a utilização de sua imagem ao empregador. Desse modo, não há como um contrato de cessão de imagem (desde que regularmente firmado e não com o objetivo de fraudar os direitos trabalhistas) ter natureza salarial.
Salário é a contraprestação devida ao empregado paga diretamente pelo empregador em razão da prestação de serviços. Nos termos do artigo 457, da CLT: "compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber".
Na definição clássica de CATHARINO (1997, p. 90), salário é "contraprestação devida a quem põe seu esforço pessoal à disposição de outrem em virtude do vínculo jurídico de trabalho, contratual ou instituído."
Dos conceitos acima referidos, a cessão do direito de imagem não se confunde com o salário. Mas é bem verdade que se não há o contrato de trabalho, também não há o contrato de cessão de imagem. Vale lembrar, todavia, que o contrato de cessão do uso da imagem necessariamente não precisa ser feito com o próprio empregador, sendo comum vermos contratos de jogadores com terceiros, como Nike, Reebok etc.
É de se registrar, todavia, que os contratos para exploração da imagem vêm sendo utilizados por clubes para burlar a legislação trabalhista, anotando-se pequeno valor no contrato de trabalho do atleta e o restando da remuneração em um contrato fajuto de imagem (ZAINAGHI, 2003). A Justiça do Trabalho tem nulificado estes contratos nitidamente fraudados, pela aplicação do artigo 9º da CLT.
Por oportuno, colaciono as seguintes ementas de jurisprudência:
DIREITO DE IMAGEM. INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO. O pagamento de quantia fixa mensal a título de direito de imagem, independentemente do uso efetivo da imagem constitui salário disfarçado e integra a remuneração do atleta (TRT/5. ACÓRDÃO Nº 1767/08. 4ª. TURMA. RECURSO ORDINÁRIO Nº 01522-2006-035-05-00-9-RO. RELATOR: Desembargador VALTÉRCIO DE OLIVEIRA.
DIREITO DE IMAGEM EMPRESA DE FACHADA FRAUDE - ÔNUS DA PROVA PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO DO JUIZ ARTIGOS 131 E 333 DO CPC DIFERENÇA. Quando o magistrado decide com base no contexto da prova, atento à sua quantidade e/ou qualidade, por certo que sua decisão está diretamente ligada ao princípio do livre convencimento consagrado no artigo 131 do CPC e não no princípio distributivo do onus probandi . No caso em exame, o Regional reconheceu a natureza salarial dos valores pagos pelo uso da imagem do reclamante, ao concluir que se constitui fraude à legislação do trabalho a conduta da reclamada que impôs ao reclamante a participação em empresa de prestação de serviços de fachada, para recebimento de quantias, que originalmente lhe eram pagas diretamente e em igual montante, após análise da prova produzida pelas partes e não sob o fundamento de quem deveria produzi-la e não o fez. Agravo de instrumento não provido. (TST. NÚMERO ÚNICO PROC: AIRR - 50622/2002-900-03-00. PUBLICAÇÃO: DJ - 07/03/2003. Relator: MILTON DE MOURA FRANÇA).
Sublinho que não há vedação de se firmar com o atleta um contrato para exploração comercial da sua imagem. O que é ilícito é utilizar um pretenso contrato civil para fraudar a relação de emprego.
De qualquer forma, foi possível definir as diferenças entre o direito de arena e o direito de imagem, que não se confundem e podem subsistir numa mesma relação.