III-O Difícil Contrato Fácil
Marguerite apaixonara-se por um rapaz, o já mencionado Armand Duval. Rapaz que como o próprio autor em sua epístola à amada cortesã, não teria condições de, sozinho, agasalhar a cortesã com o luxo a qual se acostumara, mas que, no entanto, integrava uma família pequena burguesa parisiense com a sua moralidade conservadora e hipócrita. Ele não queria, com ela, celebrar quaisquer contratos de prestação de serviços sexuais ou de compra e venda de fantasias, esses já haviam sido celebrados entre a camélia e o velho duque. No entanto, a cláusula de exclusividade já havia sido excluída da avença e, licitamente, o jovem Armand poderia celebrar com Marguerite outras espécies contratuais. A própria Marguerite revelava já haver um desequilíbrio em seu contrato com o conde, uma desproporção, quase uma lesão enquanto vício da vontade: "Quando ponho de um lado da balança aquilo que ele me dá e do outro aquilo que ele me diz, concluo que concedo essas visitas por um preço baixo". (p.69) Nessas circunstâncias, e não imediatamente, sequer facilmente, a paixão entre Marguerite e Armand foi tomando forma, enlevando-os e sucumbindo-os. Marguerite chega a pedir a um de seus contratantes que alugue para ela uma casa no campo onde pudesse passar uns tempos e convida Armand a ir viver ali, com ela. Armand reluta, mas aquiesce para depois desafiá-la, pois não poderia ela deixar as frivolidades, o materialismo sórdido e apenas, com ele viver, fruírem de seu amor, construírem uma família? Mas nada seria assim tão simples, pois como nos diz o autor "...quando Deus permite um pouco de amor a uma cortesã, esse amor, que parece, em princípio, um perdão torna-se para ela, quase sempre, um castigo. Não há absolvição sem penitência". (p.97)
Assim como o autor, não se pretende aqui enaltecer a alma desinteressada e sem caprichos das camélias ao se apaixonarem. Muito pelo contrário, estão por demais apegadas a uma sorte de luxos e prazeres materiais que parecem ser estruturantes de suas personalidades, das quais dificilmente abririam mão, sob pena de perderem-se a si mesmas. Mesmo sem celebrar claramente um contrato de serviços sexuais com Marguerite, manter o romance com a cortesã era-lhe oneroso e quase o levou à falência, como nos diz, francamente, Armand:
Não pense que o amor que uma mulher da vida tem por você não custa nada, por mais desinteressado que seja. Nada é tão caro quanto os mil caprichos de flores, camarotes, jantares, bailes no campo que jamais se pode recusar à amante. (...) Compreendi, então, que, como nada no mundo teria sobre mim a influência de me fazer esquecer minha amante, era preciso encontrar um modo de sustentar as despesas que ela me fazia arcar. (p.129)
Para manter o idílio, o enredado Armand sucumbiu ao vício do jogo, além de aceitar encontrar a amada apenas entre a meia-noite e as seis horas da manhã quando dois contratos da camélia não estavam sendo executados, um com o velho duque, outro com um abastado conde. O duque que tão prontamente alugara a casa de campo, como uma forma de pagamento de sua obrigação pactuada, sem saber que a destinação da mesma era abrigar a execução "gratuita" dos mesmos serviços a ele prestados por Marguerite, prestados a um outro homem, saliente-se. O duque não apenas pagava o aluguel da casa, mas todas as despesas com festas, jantares e banquetes quase diuturnos promovidos pela camélia, tendo por companhia o jovem Armand que, aos poucos, foi perdendo os escrúpulos.
Até que o duque tudo descobriu e exigiu que Marguerite deixasse Armand. Ela enfrentou o duque e disse que não deixaria o amante e que ele poderia ficar para si com todo o seu dinheiro, a despeito dos conselhos de uma amiga:
Pense, minha querida, na posição que você perde e que Armand jamais poderá lhe fornecer. Ele a ama de todo o coração, mas não tem fortuna suficiente para financiar todas as suas necessidades, e um dia precisará deixá-la, quando será tarde demais e o duque não poderá fazer mais nada por você. (p.139)
Ou seja, Marguerite teria que escolher entre manter a vigência de seus contratos de prestação de serviços sexuais que subsidiavam o seu modo de viver ou extingui-los e aventurar-se em uma vida despojada de luxos, mas com a promessa da plenitude do amor, tendo assim respondido à amiga "Não deixarei Armand e não me esconderei para viver com ele. Talvez seja uma loucura, mas o amo, o que quer? (...) Além disso, não tenho tanto tempo de vida para ser infeliz (...)". (p.140) A camélia rescindiu todos os seus contratos de prestação de serviços sexuais, sem pagar indenização aos seus contratantes e entregou-se integralmente a Armand em uma vida cândida, simples e singela no campo. O duque pensou que negando-se à rescisão contratual e, em seu lugar, aplicando a regra da exceção do contrato não cumprido, fechando os bolsos para Marguerite, ela retornaria à normal execução da avença. Não foi o que ocorreu. Marguerite estava irredutível em sua decisão e nem cartas do duque suplicando-lhe reiteradamente que ela o permitisse de volta, "quaisquer que fossem as condições impostas a esse retorno" a demoveram. Ou seja, quaisquer renovações contratuais, peremptoriamente, não a interessavam:
Nosso amor não é comum, meu querido Armand. Você me ama como se eu jamais tivesse pertencido a alguém, e tremo à idéia de que mais tarde, se arrependendo do seu amor e vendo o meu passado como um crime, você me force a me jogar, novamente, na existência em meio à qual você me resgatou. Pense: agora que experimentei uma nova vida, eu morreria ao retomar àquela outra. (pp.143-144)
Viveram intensamente e profundamente os seus amores nesses recônditos até que um dia Marguerite desapareceu, deixando-lhe uma carta que assim se iniciava "À hora em que você estiver lendo esta carta, Armand, já serei amante de outro homem"(p.175). Leviandade? Força do vício? Não, nada disso, Marguerite entregara-se fielmente e com sinceridade a Armand e resolvera todos os antigos contratos. Ocorre que o pai de Armand, sabendo do absurdo no qual estava vivendo o seu filho, enfeitiçado por uma dama da vida, foi ter-se com ela aproveitando-se de um momento de ausência do filho e suplicou-lhe por todos os céus e pelo bem que ela tivesse à família de seu amante, que ela se afastasse de Armand. Disse-lhe que tinha uma bela filha, um anjo de castidade e candura que estava prometida em casamento com um homem que amava, que estava para entrar em uma família honrada e que esta, desafortunadamente, tivera notícias sobre a quantas andava o irmão da noiva e que voltariam atrás em sua palavra se o jovem continuasse com aquela vida. O pai de Armand pediu sofregamente que Marguerite, com o seu passado maculado, não impedisse a felicidade de sua filha pura e límpida que nenhum mal lhe fizera. Foi aí que Marguerite abandonou Armand e o seu direito de amar, escreveu-lhe aquela carta e voltou a celebrar contratos de prestação de serviços sexuais ou de compra e venda de fantasias como preferirem, para que a irmã de seu amado pudesse celebrar o contrato do sagrado matrimônio com o homem que amava e mantivesse a sua família honrada e digna. Com a alma minguante e depauperada, Marguerite, claudicante em seguir com as suas obrigações contratuais como outrora, foi fenecendo pouco a pouco, foi murchando pouco a pouco, e ao ir perdendo a graça e a beleza, os usuários de seus serviços foram desaparecendo, abandonando as avenças e as suas cláusulas, sem fazerem qualquer questão de nada, sem lhe pedirem ou lhe darem nada, sequer um consolo. Até que após longa e tenebrosa agonia, Marguerite, a dama das camélias, celebrou a avença maior, aquela que devora todas as outras, a avença com a morte, a dama branca [01] que põe fim definitivo a todos os contratos. Restava, tão apenas, fazer-se o leilão de seus pertences, os pertences que ficaram, os que não partiram, para sempre, com a vida e o amor.
Assim, despetalou-se para a eternidade a camélia. Sofrido, o seu amado logo reconciliou-se com o seu pai e a sua irmã, retornando ao aconchego de sua família feliz.
Referências Bibliográficas:
Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
Dumas Filho, Alexandre. A Dama das Camélias. Porto Alegre: L & PM Editores, 2004.
Freud, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
Notas
01 Designação através da qual o poeta pernambucano Manuel Bandeira referia-se à morte.