No romance "Dom Casmurro", obra publicada em 1899, Machado de Assis narra, através do personagem principal, Bento Santiago, a desconfiança que este nutre por sua esposa, a bela Capitu.
Ponto alto da desconfiança de Bento Santiago consiste em saber se o filho que Capitu deu a luz na constância do casamento (e que fora por ele registrado, como seu, em cartório) era mesmo seu ou se era de seu melhor amigo, Escobar.
A parte mais interessante do livro, que aborda o instituto jurídico do adultério no século XIX, é que nem no final do livro o escritor dirime a dúvida do personagem principal, deixando cada um analisar, refletir e chegar à sua conclusão se Capitu perpetrou ou não o adultério.
O adultério vem da expressão latina "ad alterum torum" que quer dizer "na cama do outro". No dicionário assim é definido: "infidelidade conjugal; amantismo, prevaricação". Também pode ser definido como relacionamento com pessoa estranha à relação matrimonial.
A Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP e mestre em História Social pela PUC/SP, Andrea Borelli, no Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004, assim dissertou sobre o casamento e o adultério:
"A sacralização do casamento foi um movimento empreendido pela igreja cristã durante o período medieval; as regras centrais da conjugalidade eram a monogamia, a indissolubilidade e a união heterossexual.
Atendendo a estas regras, obedece-se o determinado por São Paulo, ou seja, o erotismo ficava restrito às paredes do casamento, estando voltado à reprodução. A retomada da moral elaborada por Santo Agostinho no período moderno, aconteceu sob uma perspectiva médica.
A luxúria, que era o pior dos pecados, tornou-se uma poderosa doença. Durante o século XIX e os anos iniciais do século XX, o amor doentio foi considerado a causa de inúmeras doenças de caráter venéreo ou não.
O casamento não era o lugar do amor carnal. Era sinônimo de vida estável e uma forma eficaz de fugir dos problemas ocasionados pelos impulsos sexuais.
Sendo assim, o adultério era visto como uma invasão destruidora do amor lascivo no universo estável do amor conjugal. Além disto, era um ataque ao direito masculino sobre o corpo de sua esposa. "
Cumpre esclarecer que o adultério masculino não trazia conseqüência nenhuma para o "marido adúltero" (vale ressaltar que essa expressão nem existia). Apenas era considerado crime (e mesmo assim sem a nomenclatura de adultério) se o marido mantivesse ou sustentasse a amásia.
No Brasil o instituto do adultério foi debatido tanto na esfera penal quanto na cível. O nosso Código Penal pátrio, de 16 de dezembro de 1830 inseriu o adultério no capítulo III "DOS CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DO ESTADO CIVIL, E DOMESTICO" . Vejamos in verbis:
"SECÇÃO III
Adulterio
Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos.
A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente.
Art. 252. A accusação deste crime não será permittida á pessoa, que não seja marido, ou mulher; e estes mesmos não terão direito de accusar, se em algum tempo tiverem consentido no adulterio.
Art. 253. A accusação por adulterio deverá ser intentada conjunctamente contra a mulher, e o homem, com quem ella tiver commettido o crime, se fôr vivo; e um não poderá ser condemnado sem o outro. "
Percebe-se que somente quem comete adultério é a mulher. O artigo 250 do CP/1830 é claro quanto a isso. O homem, segundo o artigo 251 do mesmo diploma, não comete adultério, comete algo inominável (se tiver "concubina, teúda e manteúda" caracterizando uma repetição de conduta e em termos de hoje caracterizaria sustentar a "amante" e não apenas ter um caso passageiro) que teria a mesma pena do adultério. Assim, chegamos à fácil conclusão que o homem não poderia cometer adultério.
O Código Penal de 1830 foi substituído pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, que promulgou o então novo Código Penal. Este na mesma esteira do seu antecessor, continua trazendo, em seu capítulo IV, o adultério como crime. Aperfeiçoou-se apenas os dispositivos e a tipificação. Com efeito, não houve alteração substancial no crime. Vejamos o que preceituava o título VIII do Compêndio em análise:
"TITULO VIII
Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das familias e do ultraje publico ao pudor
...
CAPITULO IV
DO ADULTERIO OU INFIDELIDADE CONJUGAL
Art. 279. A mulher casada que commetter adulterio será punida com a pena de prisão cellular por um a tres annos.
§ 1º Em igual pena incorrerá:
1º O marido que tiver concubina teuda e manteuda;
2º A concubina;
3º O co-réo adultero.
§ 2º A accusação deste crime é licita sómente aos conjuges, que ficarão privados do exercicio desse direito, si por qualquer modo houverem consentido no adulterio.
Art. 280. Contra o co-réo adultero não serão admissiveis outras provas sinão o flagrante delicto, e a resultante de documentos escriptos por elle.
Art. 281. Acção de adulterio prescreve no fim de tres mezes, contados da data do crime.
Paragrapho unico . O perdão de qualquer dos conjuges, ou sua reconciliação, extingue todos os effeitos da accusação e condemnação."
O doutrinador Almachio Diniz, à época, (citado por Andrea Borelli) considerava que a pena sugerida pelo Código Penal era inócua e que de nada adiantava como representação do poder coercitivo do Estado. Vejamos:
"Os códigos declaram o adultério como crime particular, a queixa compete exclusivamente ao cônjuge ofendido, que em qualquer tempo tem direito de perdoar, arquivando assim o processo em completo silêncio ou fazendo cessar os efeitos de condenação. Logo, a repressão do adultério não tem por fim acautelar e defender um interesse de ordem pública e sim um interesse privado, não visa o bem-estar social e sim de apenas um membro da comunhão". O legislador não deve editar disposições inúteis e ociosas. Ora o artigo do código penal que pune o adultério é letra morta, e nunca foi aplicado... O marido que recorresse a semelhante meio para punir a infidelidade da mulher incorreria no desprezo da sociedade e tornar-se-ia objeto de ridículo...
A pena contra o adultério é ineficaz, não consegue evitar o delito, que é um fato comum em todas as épocas de dissolução de costumes. Não há dúvida que certas mulheres são adúlteras pela depravação moral, por excessiva libertinagem. Mas há também um grande numero de casos em que o marido foi o principal responsável da queda de sua mulher, foi quem a impeliu para o adultério pelo abandono, maus-tratos, facilidade e imprevidência, o desregramento de conduta, baixeza de sentimentos, infidelidade manifesta, etc. "
A descriminalização do adultério foi tema que causou debates acalorados entre os eminentes juristas da época. No Brasil prevaleceu o entendimento que o adultério continuava a ser um crime. Assim, seguiu-se, então, no Código Penal de 1940. A justificativa pode ser lida e facilmente entendida na exposição de motivos do referido Código Penal, in verbis:
"77. O projeto mantém a incriminação do adultério, que passa, porém, a figurar entre os crimes contra a família, na subclasse dos crimes contra o casamento. Não há razão convincente para que se deixe tal fato à margem da lei penal. É incontestável que o adultério ofende um indeclinável interesse de ordem social, qual seja o que diz com a organização ético-jurídica da vida familiar. O exclusivismo da recíproca posse sexual dos cônjuges é condição de disciplina, harmonia e continuidade do núcleo familiar. Se deixasse impune o adultério, o projeto teria mesmo contrariado o preceito constitucional que coloca a família "sob a proteção especial do Estado". Uma notável inovação contém o projeto: para que se configure o adultério do marido, não é necessário que este tenha e mantenha concubina, bastando, tal como no adultério da mulher, a simples infidelidade conjugal.
Outra inovação apresenta o projeto, no tocante ao crime em questão: a pena é sensivelmente diminuída, passando a ser de detenção por 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses; é de 1 (um) mês, apenas, o prazo de decadência do direito de queixa (e não prescrição da ação penal), e este não pode ser exercido pelo cônjuge desquitado ou que consentiu no adultério ou o perdoou expressa ou tacitamente. Além disso, o juiz pode deixar de aplicar a pena, se havia cessado a vida em comum dos cônjuges ou se o querelante havia praticado qualquer dos atos previstos no artigo 317 do Código Civil. De par com a bigamia e o adultério, são previstas, no mesmo capítulo, entidades criminais que a lei atual ignora. Passam a constituir ilícito penal os seguintes fatos, até agora deixados impunes ou sujeitos a meras sanções civis: contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja o resultante de casamento anterior (pois, neste caso, o crime será o de bigamia); contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que acarrete sua nulidade absoluta; fingir de autoridade para celebração do casamento e simular casamento. Nestas duas últimas hipóteses, trata-se de crimes subsidiários: só serão punidos por si mesmos quando não constituam participação em crime mais grave ou elemento de outro crime. "
A grande inovação está na parte do adultério masculino. Este finalmente caracterizado e de forma clara. Não mais seria necessário manter ou sustentar a concubina/amante bastando a simples infidelidade conjugal (que antes seria adultério apenas para a mulher e atitude sem tipificação penal para o homem).
Vejamos, exatamente como estava disposta a tipificação deste crime no Código Penal de 1940:
"Art. 240. Cometer adultério:
Pena – detenção, de quinze dias a seis meses.
§ 1.º Incorre na mesma pena o co-réu.
§ 2.º A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato.
§ 3.º A ação penal não pode ser intentada:
I – pelo cônjuge desquitado;
II – pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o perdoou, expressa ou tacitamente.
§ 4.º O juiz pode deixar de aplicar a pena:
I – se havia cessado a vida em comum dos cônjuges;
II – se o querelante havia praticado qualquer dos atos previstos no art. 317 do Código Civil".
É bem de ver que o eminente jurista Clovis Bevilacqua, autor do projeto do Código Civil brasileiro em 1899,(citado por Andrea Borelli) em um posicionamento muito questionado, já defendia essa igualdade do crime de adultério entre homens e mulheres, trazida no CP/1940, in verbis:
"Alguns escritores, ainda imbuídos do preconceito da superioridade do homem, a quem se permite abusos e desregramento, como o senhor das posições sociais, insistem em mostrar que o adultério da mulher é indício de depravação maior, e que produz conseqüência as mais graves, porque pode introduzir na família filhos estranhos. A primeira observação é falsa, porque se a sociedade exige da mulher o maior recato, deve, igualmente, exigir do homem que não quiser ser tule com o espetáculo de sua imoralidade, porque o dever da fidelidade é recíproco. Se, ao casar-se, um homem fizesse a declaração de que não aceitava para si a obrigação de manter fiel, não encontraria pai honesto que lhe confiasse a filha. A segunda observação não é mais convincente do que a primeira. O adultério da mulher pode introduzir na família um estranho; mas, em regra, e são a facilidade do marido que incitam a mulher aos desvios, e a questão não deve ser posta nesses termos. Não se trata de medir a conseqüência da infidelidade....E, encarados os fatos do ponto de vista ético, não são menos imorais as ribaldarias amorosos do marido do que a desonestidade da mulher."
Por fim, a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, descriminalizou o adultério. O seu artigo 5º revogou clara e expressamente o artigo 240 do Código Penal Pátrio em vigor.
"Art. 5º Ficam revogados os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3º do art. 231 e o art. 240 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal."
Assim, a conduta de cometer adultério passou apenas a ser, após 29 de março de 2005, ilícito civil na República Federativa do Brasil.
Diante das considerações acima, concluímos que em vista da sociedade do século XIX, a conduta do personagem principal da obra ora analisada era justificável pelo temor da época e pela repercussão das atitudes de sua esposa perante a corte, família e amigos.
A sociedade vive em constante evolução e, assim, não seria diferente com o direito. Percebemos o contexto social, cultural e econômico do século XIX com todas suas nuances.
Hoje, no século XXI, percebemos que a sociedade evoluiu e possuímos muito mais igualdade e oportunidade, tanto em termos de relação de trabalho, como também, na seara familiar.
Temos uma sociedade mais justa onde não existe mais a figura do senhor de terras nem a do marido supremo em detrimento da mulher submissa. Estamos na era dos direitos iguais entre homens e mulheres, bem como, respeito mútuo da humanidade.
Por fim, salientamos que a análise das alterações legislativas sobre do tema central da obra, qual seja, o adultério, findando em sua descriminalização, nos faz refletir acerca da evolução da sociedade e do direito, fazendo com que a história do direito e da própria humanidade não possa ser, jamais, estudada de forma dissociada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
GOMES, Eugenio. O enigma de Capitu: Ensaio e interpretação. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
GRAHAM, Richard. 1997. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 542 pp.
DINIZ, Almachio. Do divórcio. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro Editor, 1916.
BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1937.
BORELLI, Andrea. Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004