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Direitos fundamentais nas relações de direito privado: um caso concreto no STF

No presente trabalho busca-se fazer uma análise sobre a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso extraordinárion.º 201819, envolvendo matéria de Direito Privado, com discussão sobre a necessidade de observância dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais em seu âmbito.

O tema foi debatido profundamente pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ocasião em que os Ministros Ellen Gracie e Carlos Velloso davam provimento ao recurso interposto, enquanto os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barboza e Celso de Mello negavam provimento, utilizando-se estes três últimos do argumento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

A ementa da decisão foi prolatada nos seguintes termos, da lavra do Ministro Gilmar Mendes:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.

Na situação em tela, a União dos Compositores Brasileiros excluiu de seus quadros um sócio sem garantir-lhe qualquer possibilidade de exercício das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa defesa, assim agindo, segundo defendeu, em estrito cumprimento às regras estatutárias da instituição, o que afastaria a garantia de uma efetiva análise destes princípios no caso concreto.

Os Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie entenderam quenão houve transgressão de princípios constitucionais, já que a exclusão ocorreu nos moldes previstos no estatuto da entidade associativa privada, havendo, por esse prisma, respeito ao devido processo legal.

A Ministra Ellen Gracie, relatora, em seu voto, sustentou que "a leitura do acórdão da apelação revela que a regra acima transcrita foi integralmente obedecida, porém ela não foi afastada em homenagem ao princípio da ampla defesa...Entendo que as associações privadas têm liberdade para se estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre sócios, desde que respeitem a legislação em vigor. Cada indivíduo, ao ingressar numa sociedade, conhece suas regras e seus objetivos, aderindo a eles...Obedecido o procedimento fixado no estatuto da recorrente para a exclusão do recorrido, não há ofensa ao princípio da ampla defesa, cuja aplicação à hipótese dos autos revelou-se equivocada...".

Nesse mesmo diapasão foi o voto do Ministro Carlos Velloso, asseverando que "...é que devido processo legal se exerce na conformidade com a lei. Ora, neste caso, exerce-se de conformidade com o Estatuto do clube a que ele aderiu...".

Entretanto, em sentido diverso foram os votos dos Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barboza e Celso de Mello, os quais analisaram a questão com maior profundidade.

Em seus votos, afirmaram que os direitos fundamentais devem ter aplicação também nas relações privadas não podendo haver exclusão a priori de sua incidência.

O Ministro Gilmar Mendes, lançando o primeiro voto divergente, fez uma análise irretocável da situação, dizendo que "as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido, extrapolam, em muito, a liberdade do direito de associação, e sobretudo, o de defesa.. Conclusivamente, é imperiosa a observância das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa...O direito de associação, entretanto, não é absoluto e comporta restrições, orientadas para o prestígio de outros direitos também fundamentais. A legitimidade dessas interferências dependerá da ponderação a ser estabelecida entre os interesses constitucionais confrontantes..." (fl. 610). Referiu, ainda, haver um caráter público na entidade, já que repassadora dos valores financeiros por arrecadação pelo ECAD dos direitos autorais, o que aumentava a necessidade de incidência de normas relativas aos direitos fundamentais.

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No referido voto, observa-se expressiva fundamentação sobre a amplitude de incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, extraindo-se o entendimento de que é possível, dependendo do caso concreto, haver tal aplicação.

Seguindo essa mesma linha, o Ministro Joaquim Barboza, em seu voto, defendeu que "De fato, uma das conseqüências inelutáveis da aceitação quase universal da supremacia da Constituição e da jurisdição constitucional como instrumento destinado a assegurá-la reside no fato de que os direitos fundamentais, imperativo indeclinável de todas as democracias, não mais se concebem como limitações impostas única e exclusivamente ao Estado. Na Europa e até mesmo nos Estados Unidos, onde são feitos grande esforços hermenêuticos visando a superação da doutrina do state action, as relações privadas não mais se acham inteiramente fora do alcance das limitações impostas pelos direitos fundamentais...". (fl. 623).

Por fim, o Ministro Celso de Mello, acompanhando o voto divergente, aduziu que "isso significa, portanto, que a ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir, como a parte ora recorrente o fez, à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais.

Desse modo, vingou a tese de aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.

Sustentando essa tese, ensina Ingo Wolfgang Sarlet, na obra "A Eficácia dos Direitos Fundamentais", que "Para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídico-privada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre os particulares. Esta temática, por sua vez, tem sido versada principalmente sob os títulos eficácia privada, eficácia externa (ou eficácia em relação a terceiros) ou horizontal dos direitos fundamentais..." (pág. 399).

A Constituição Portuguesa lançou previsão expressa sobre a matéria, o que não ocorre na Constituição Federal de 1988. Porém, como lembra Sarlet, a discussão está na amplitude e intensidade da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais garantidos na Constituição.

O estatuto da entidade, em que pese norma cogente no âmbito da UBC, não preservava princípios constitucionais fundamentais, como a ampla defesa e o contraditório, para aplicação em situações como a guerreada no acórdão em questão. Embora houvesse regulamento acerca do agir da comissão imbuída de analisar o caso do sócio em processo de exclusão, simplesmente não havia a possibilidade de que este pudesse falar, discutir, apresentar a sua versão aos fatos apurados, caracterizando-se, assim, uma violação de ordem constitucional, atingindo claramente direito fundamental do associado.

Em caso similar, submetido ao Supremo Tribunal Federal através do RE 158215, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, esta Corte já havia se manifestado nos exatos termos da decisão ora examinada. Veja-se:

DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.

Como constou no voto do Ministro Gilmar Mendes, a aplicação dos direitos fundamentais em relações de particulares deve observar a situação do caso concreto. Da decisão proferida, portanto, Importa que o reconhecimento de que tal aplicação é viável, é possível.

Para tanto, segundo afirma Ingo Wolgang Sarlet, "o que se percebe, desde logo, na esteira da melhor doutrina, é a inexistência de soluções uniformes nesta seara, já que a eficácia direta ou indireta apenas pode ser aferida á luz do caso concreto, dependendo, em princípio, da existência de uma norma de direito privado e da forma como esta dispõe sobre as relações entre particulares (pág. 405).

Assim, no recurso em questão, acredita-se que foi adotada a posição mais justa e adequada, pois a previsão do Estatuto da UBC está em desacordo com as normas constitucionais ligadas a direitos fundamentais, ferindo os princípios da ampla defesa e do contraditório, ofensa esta inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Portanto, a aplicação e observância dos princípios constitucionais e a preservação dos direitos fundamentais tanto na seara do Direito Público quanto na do Direito Privado é medida que se impõe como forma de concretização da Constituição e afirmação da democracia, tornando a Magna carta texto vivo e norteador de todas as relações sociais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo. Editora Atlas, 2002.

FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo. Editora Malheiros, 2007.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Edito, 2002.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.

SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado, 2007.

Sobre os autores
Márcio Schlee Gomes

Promotor de Justiça Criminal no Rio Grande do Sul. Professor Universitário

Caroline Milano Fritzen

Procuradora Municipal/RS, Especialista em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Márcio Schlee; FRITZEN, Caroline Milano. Direitos fundamentais nas relações de direito privado: um caso concreto no STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2841, 12 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18887. Acesso em: 23 dez. 2024.

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