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Análise garantista do indiciamento no inquérito policial

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Agenda 23/05/2011 às 18:37

3 AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO NO ATUAL CENÁRIO

É Importante questionar os fundamentos de existência do indiciamento numa leitura constitucional do Processo Penal. No entanto, diante de sua insistente permanência na persecução penal brasileira, não se pode dissociá-lo da aplicação de direitos e garantias fundamentais assegurados.

Assim, não havendo previsão expressa do indiciamento na Constituição Federal de 1988, sobretudo com limites claros e específicos ao Estado, não se pode deixar de estender aos indiciados os Direitos e Garantias Fundamentais contidos no art. 5º da CF.

Necessário rememorar que o Inquérito Policial é definido na doutrina como procedimento administrativo. Neste caso, cabe discussão inclusive sobre a amplitude da aplicação das garantias previstas no inciso LV, do art. 5º, ao indiciamento, enquanto instrumento do Inquérito Policial, já que a Constituição assegura aos acusados e aos litigantes um processo justo que contemple os princípios do contraditório e da ampla defesa (BRASIL. Constituição Federal/88, [200-?], s.p.).

O Inquérito Policial é procedimento administrativo sui generis [30]caracterizado pela inquisitividade, com vistas à presteza da investigação e a busca célere de indícios e materialidade [31].

"Dispõe a autoridade policial, que comanda o inquérito policial, de discricionariedade, no sentido de escolher as medidas de investigação necessárias e pertinentes a fim de apurar o fato, que se apresenta como ilícito e típico" (SAAD, 2004, p. 155).

A constitucionalização do Processo [32] Penal impele a lançar novos olhares sobre procedimentos consagrados, confrontando-os com a Constituição e os institutos processuais, sobretudo os que impõem ao indivíduo conseqüências indesejadas. Nas palavras de Perez Nuño (2005, p. 310), "os derechos fundamentales son el parámetro de conformidad con el cual deben ser interpretadas todas las normas que componen nuestro ordenamiento".

Assim, é pertinente questionar se a inquisitividade dos atos do Inquérito Policial afasta os mandamentos constitucionais de respeito ao contraditório e ampla defesa.

Marta Saad (2004, p. 154-158) diferencia caráter inquisitivo (inquisitividade) de processo inquisitório (inquisitoriedade). No seu entender, o modelo inquisitório não permitiria "qualquer ingerência do interessado no procedimento, acumulando o inquisidor as funções de acusar, defender e julgar". Por outro lado, "o poder-dever inquisitivo não afasta a participação dos interessados, acusado ou ofendido."

Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, decidindo sobre o Inquérito Civil considera que:

Nada vale o argumento de que em tais processos e procedimentos, em razão de eventual carga inquisitiva, descabe a plenitude de defesa. Ninguém, hoje, nega a inquisitividade do juiz civil, sendo-lhe a jurisdição contenciosa. Inquisitividade e plenitude de defesa podem e devem conviver, no mesmo plano (BRASIL. TJSP. AC 130.183.5/6-00, [200-?], p.13).

O Inquérito Policial tem se mostrado impenetrável pelas garantias constitucionais consagradas nos processos administrativos em geral. A aplicabilidade do contraditório e da ampla defesa aplicável a todo processo administrativo [33] encontra resistência na construção do Inquérito Policial que continua isento desta exigência garantista. Os argumentos são pela eficácia e presteza da investigação aliadas á inexistência de litígio pendente [34], o que acaba por permitir o desencadear de atos estatais quase que absolutos.

Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 72-73) endossa estas observações ao lecionar que "vivemos numa cultura processual penal predominantemente inquisitória, que valoriza tudo aquilo que possa ser útil ao esclarecimento da chamada verdade real". [35] Entende o autor que o sistema processual penal é misto, "inquisitivo garantista", e constata que "o juiz leva em consideração muito do que é produzido durante a investigação [...], sobretudo – e lamentavelmente – a confissão extraída do indiciado." (idem)

Interessante observar que outros procedimentos administrativos, tais como procedimentos fiscais instaurados pela Receita Federal do Brasil [36], que na maioria das vezes acabam se resolvendo por meio de penalidades administrativas como perda de bens, multas etc, ainda que iniciadas ex officio, observam e aplicam os princípios do contraditório e da ampla defesa para garantia de seus efeitos.

O Inquérito Policial, como já afirmado, embora muito se assemelhe a procedimentos administrativos de órgãos estatais [37] como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, Receita Federal do Brasil, Banco Central, dentre outros, recebe tratamento diferenciado da legislação, doutrina e jurisprudência, que o blindam de tais "inconvenientes":

Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio (BRASIL. STF. HC 82354/PR, [200-?], s.p.)

A investigação policial, em razão de sua própria natureza, não se efetiva sob o crivo do contraditório, eis que e somente em juízo que se torna plenamente exigível o dever estatal de observância do postulado da bilateralidade dos atos processuais e da instrução criminal. A inaplicabilidade da garantia do contraditório ao inquérito policial tem sido reconhecida pela jurisprudência do STF (BRASIL. STF. HC 69372/SP, [...], s.p.).

A existência de jurisprudências restritivas de garantias constitucionais não pode impedir a ampliação da leitura garantista do preceito, perscrutando, por exemplo, a essencialidade do indiciamento, figura proeminente no Inquérito Policial.

Aury Lopes Júnior resume a necessidade de mudança no tratamento do Inquérito Policial (e indiciamento) frente às exigências constitucionais, da seguinte forma:

Em linhas gerais, devemos caminhar para uma maior eficácia do direito de defesa e contradição contido no art. 5º, LV, da Constituição. Tal dispositivo, no que se refere a sua aplicação no inquérito policial, tem sido objeto de interpretações absurdamente restritivas. Esse é um ponto básico a ser revisto. É incrível a resistência no âmbito policial em respeitar os direitos constitucionalmente assegurados, negando que o CPP deva adequar-se à Constituição e não o contrário (2008, p. 311).


4 REPERCUSSÕES DO INDICIAMENTO

O indiciamento traz consigo mudanças na situação jurídica do indivíduo apontado pela autoridade policial como provável autor da ação criminosa. Nas palavras de Aury Lopes Júnior (2008, p. 298), "o próprio indiciamento supõe um fumus commissi delicti mínimo, derivado da imputação", e, neste sentido "gera um maior grau de sujeição à investigação preliminar."

Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 90), por sua vez, alerta que ser indiciado "implica em um constrangimento natural, pois a folha de antecedentes receberá a informação, tornando-se permanente, ainda que o inquérito seja, posteriormente, arquivado"

Grande parte da doutrina e também da jurisprudência reconhece e anota as conseqüências negativas do indiciamento. É firme a posição do Desembargador Federal Cândido Ribeiro, nos autos do Recurso em Sentindo Estrito no. 2009.34.00.018964-4/DF, corroborando que:

O indiciamento criminal é uma verdadeira mácula na vida de qualquer pessoa, haja vista que passa a ser mencionado nos históricos de antecedentes criminais, além de condicionar a liberdade de ir e vir, na medida em que toda mudança de endereço tem de ser comunicada à autoridade policial, conforme destacado no "Auto de Qualificação e Interrogatório" (BRASIL, TRF1, REn. 2009.34.00.018964-4/ano, [...], s.p).

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A decisão trazida a lume deixa claro que o indiciamento carrega consigo conseqüências negativas à esfera privada do indivíduo.

Comumente, o instituto do indiciamento é tratado de forma fria pela doutrina e jurisprudência, sem um questionamento efetivo de seus efeitos e proporcionalidade de sua aplicação. São poucos os que se dispõem a enfrentar o tema e suas repercussões para além da análise estritamente jurídica [38]. Fauzi Hassan Chouke (1995, p. 144) não tem receito de afirmar que "o indiciamento sempre assumirá um papel de constrangimento que, se não é propriamente ilegal, é muitas vezes inócuo, pois apenas encontra-se a serviço daquele que tem, no dia-a-dia, a formalização da medida em suas mãos".

São muitos os atos e degradation cerimonies a que se submete o indiciado a partir do novo status. Aury Lopes Júnior (2008) cita o seguinte rol: a) maior possibilidade de ver-se compelido a comparecer frente à autoridade policial sempre que chamado, b) ser alvo de medidas cautelares de segregação da liberdade e assecuratórias de bem, c) sujeitar-se a interrogatórios, acareações, reconhecimentos e atos de averiguação de sua identidade civil etc.

Ademais, embora não haja previsão no ordenamento pátrio de prisão cautelar com fundamento exclusivo no indiciamento, o simples fato de ser indiciado já pode contribuir para que ocorra a segregação (LOPES JÚNIOR, 2008).

Algumas legislações especiais, inclusive, prevêem conseqüências mais severas aos investigados que se encontrarem sob a situação jurídica do indiciamento. É assim com a Lei n° 9034/95, que "dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas" (BRASIL. LEI 9.034/95. [200-?], s.p.)

Referido diploma legal prevê, em seu art. 5º., que será efetivada a identificação criminal [39] de pessoas envolvidas "(leia-se, indiciados ou acusados)" (NUCCI, 2009, p. 287, grifo nosso) com a ação praticada por organizações criminosas ainda que identificadas civilmente [40].

Corroborando a visão de que o indiciamento traz irrefutável peso adverso, vale citar Ronaldo João Roth, Juiz de Direito da 1ª Auditoria Militar do Estado de São Paulo, em artigo sobre o indiciamento no inquérito policial militar:

Todos nós sabemos as variadas conseqüências negativas que decorrem do fato de alguém ser indiciado no IPM, ou até mesmo no inquérito policial (IP) na Polícia Civil, havendo reflexos daquele ato não somente em matéria penal e processual penal, mas também em matéria administrativa, trabalhista, social e até mesmo na própria carreira militar (2005, p. 06-11).

Necessário anotar que há jurisprudência com entendimento diverso, de ser o indiciamento o corolário da conclusão da autoridade policial pela provável incriminação do investigado, não causando sequer constrangimento quando devidamente realizado. É esta a conclusão a que chegou a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n. 85.491/SP, conforme ementa que segue:

HABEAS CORPUS. INDICIAMENTO EM INQUÉRITO POLICIAL. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. Havendo elementos que justifiquem o indiciamento em inquérito policial, não procede a alegação de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (BRASIL. STF. HC 85.491/SP, [200-], s.p.).

Não se deve confundir o ato do indiciamento (anotação pela autoridade policial para quem apontam os indícios coligidos) com os atos de sua formalização (qualificação do indiciado, preenchimento de prontuário de identificação criminal e vida pregressa, identificação criminal etc); no entanto, pode-se entender que nas duas situações (que se completam) há efetiva admoestação injustificada na esfera individual.

É essa também a certeza de Fauzi Hassan Chouke:

O ato de indiciar, juntamente com a identificação criminal, que a ele se liga numa postura simbiótica, não guarda qualquer função endoprocessual, sendo, entretanto, de grande repercussão social, notadamente pela atuação dos meios de informação (1995, p. 145).

Sylvia Helena de Figueiredo Steiner lembra que:

O indiciamento formal tem conseqüências que vão muito além do eventual abalo moral que pudessem vir a sofrer os investigados, eis que estes terão o registro do indiciamento nos Institutos de Identificação, tornando assim público o ato de investigação. Sempre com a devida vênia, não nos parece que a inserção de ocorrências nas folhas de antecedentes comumente solicitadas para a prática dos mais diversos atos da vida civil seja fato irrelevante. E o chamado abalo moral diz, à evidência, com o ferimento à dignidade daquele que, a partir do indiciamento, está sujeito à publicidade do ato (1998, p. 307).

Saber-se culpado na fase pré-processual, sem possibilidade de contraditar ou alçar a seu favor os benefícios da ampla defesa, é o mesmo que ser obrigado a aceitar passivamente uma decisão ilegítima. A ilegitimidade de tal decisão administrativa reside na impossibilidade de contestação, e sem essa possibilidade depara-se com a arbitrariedade do Estado.

Alguns justificam a antecipação precária da imputação estatal comparando o indiciamento a um "rascunho de eventual acusação; do mesmo modo que as denúncias e queixas também se manifestam quais esboços da sentença" (PITOMBO, 1986, p. 38).

A comparação tenta inocentar o instituto sem a devida fundamentação e parece inconsistente ao nomear como "esboço de acusação" situação que efetivamente traz prejuízos ao indiciado. Para a regular acusação é necessário o crivo rigoroso do Ministério Público e sua fundamentada opinião sobre a existência do delito e sua autoria [41], com a baliza essencial do Judiciário no recebimento da denúncia [42].

A precariedade que traz malefícios ao investigado não pode ser suportada pelo sistema constitucional.

Aceita a denúncia, também não se vê comparação com esboço de sentença, senão um caminho crítico e garantista a ser percorrido, legitimando o jus puniendi estatal.

A acusação e a sentença no Processo Penal exigem o filtro dos direitos e garantias constitucionais, sobretudo a ampla defesa e o contraditório. Não há que se comparar o indiciamento com tais institutos, simplesmente porque o primeiro não admite a bilateralidade e não possui respaldo constitucional.

É de bom alvedrio lembrar a norma garantista do Direito Processual, "o Direito existe para tutelar os direitos fundamentais" (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 09).

O indiciamento constrange e altera o estado do sujeito frente ao Processo Penal, com conseqüências negativas e exigências legais que defluem desta nova situação jurídica. O constrangimento para ser considerado legítimo deve ser balizado pela Constituição Federal, que não se coaduna com a invasão pela autoridade estatal sem a ponderação razoável.

Importante ainda observar que a norma processual que possa trazer repercussões negativas à esfera individual, alcançando o patrimônio moral do sujeito, deve ficar livre da "incerteza e da imprevisibilidade de sua intervenção", ou seja, deve-se ater "a um ideal de racionalidade, condicionado. exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da liberdade do cidadão contra o arbítrio punitivo" (FERRAJOLI, 2006, p. 81 apud GOMES, 2009, p. 05) [43].

4.1 Submissão ao preenchimento do boletim de vida pregressa

A formalização do indiciamento envolve a qualificação pormenorizada do indiciado, inclusive com o preenchimento do atávico boletim de vida pregressa [44]. O dissabor enfrentado em tal ato é muitas vezes proporcional à idoneidade moral do infringido, que se vê vítima de uma formalização inútil, eternizada em regramentos ultrapassados e esquecidos nos corredores das instruções normativas policiais.

O boletim de vida pregressa atende à previsão legal constante no art. 6º, inciso IX, do Código de Processo Penal [45]. Nele são consignados os dados relevantes acerca do passado do indiciado (NUCCI, 2008) no contexto individual (profissão, endereço residencial e comercial), familiar (estado civil, dependentes etc), social (sua inserção na vida comunitária) e econômico (propriedade de bens, salário, rendas etc). Ainda é perscrutado o estado de ânimo do indiciado antes, durante e após o crime imputado [46]. Há também no boletim de vida pregressa o questionamento sobre a manutenção da família do indiciado caso haja a condenação pelo crime que lhe é imputado.

O escopo do boletim de vida pregressa é coletar dados para auxiliar o juiz na fixação da pena, quando da valoração da conduta social e personalidade do agente. "A disposição legal é absurda", uma vez que o magistrado não é antropólogo ou sociólogo, e, ainda que o fosse, os elementos coletados seriam insuficientes para tal fim (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 27).

Argumentando sobre inexistência de valor jurídico do considerado arcaico boletim de vida pregressa, Aury Lopes Júnior é categórico:

O diagnóstico da personalidade é extremamente complexo e envolve histórico familiar, entrevistas, avaliações, testes de percepção temática e até exames neurológicos e não se tem notícias de que a polícia ou juízes tenham feito isso [...]. Não podemos admitir um juízo negativo sem fundamentação e base conceitual e metodológica (2008, p. 27).

Apesar das racionais críticas que recebe da doutrina, que o considera como mais um ato desnecessário e constrangedor dos muitos que cercam e decorrem da figura do indiciamento, o boletim de vida pregressa sobrevive e persiste.

4.2 Inclusão no banco de dados policiais – folha de antecedentes criminais

Importante notar que com a formalização do indiciamento nasce também a inclusão no banco de dados policiais, e embora seja expressamente proibida a divulgação do indiciamento (art. 20 do Código de Processo Penal) [47], inclusive no atestado de antecedentes, a inclusão do indiciamento no sistema policial marca pejorativamente o histórico do indivíduo.

Neste sentido ementa de decisão do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REGISTROS PROCESSUAIS PENAIS. LIVRE ACESSO. ILEGALIDADE. – Conquanto nas certidões expedidas em nome do recorrente nada conste em relação à ação penal a que respondeu ou o inquérito policial arquivado, o livre acesso a esses registros, por meio de terminais de computador do I.I.R.G.D. (Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Dantas –SP), constitui uma ilegalidade, tendo em conta que somente mediante requisição do Poder Judiciário essas informações poderiam ser obtidas. Há, porém, necessidade de manutenção dos registros, sendo inviável, portanto, o total cancelamento destes. O que se deve impedir é, tão somente, a divulgação da existência dessas informações para qualquer outra finalidade que não seja por determinação judicial. – Precedentes. – Recurso parcialmente provido. (BRASIL. STJ. RMS n. 10.151/SP. [200-?], s.p.).

Não são raras as vezes em que, após a sentença penal absolutória, permanece na folha de antecedentes criminais do indivíduo o registro do indiciamento. O ato de natureza precária, que no entender de alguns também cumpre função assecuratória de garantias, acaba se tornando uma violação perpétua de direitos constitucionais consagrados.

Antônio Scarance Fernandes (2002, p. 128-9) reconhece, em consonância com este entendimento, que "tem sido árdua a luta de pessoas indiciadas para cancelar tais registros em casos de arquivamento de inquérito policial, absolvição, cumprimento de pena, reabilitação."

Trecho da ementa proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, neste sentido: "Inexiste direito líquido e certo no pedido de cancelamento de indiciamento unicamente por ter sido arquivado o inquérito policial em virtude de falta de provas acerca da materialidade do ilícito" (BRASIL. STJ. RMS n. 9.684/SP, [200-?], s.p).

Oportuno citar o art. 7°. da Lei no. 12.037, de 01 de outubro de 2009: 

No caso de não oferecimento da denúncia, ou sua rejeição, ou absolvição, é facultado ao indiciado ou ao réu, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil (BRASIL. Lei 12.037/09, [200-?], s.p.).

Verifica-se que o caminho para o indiciado se livrar desse rótulo não é facilitado pelo Estado. Muito embora, a exclusão do indiciamento em casos de absolvição, não oferecimento da denúncia (arquivamento do inquérito policial) ou sua rejeição, cumprimento de pena, reabilitação, dentre outros casos semelhantes, sejam dever e não faculdade do Estado. A exclusão do registro inócuo é corolário direto do princípio constitucional da presunção de inocência, na função básica de "critério de tratamento extraprocessual em todos os seus aspectos (inocente)" (MORAES, 2002, p. 385).

Se não há condenação em sentença transitada em julgado, após o due process of law, não perdura a validade de qualquer registro. Mas é o contrário o que ocorre na prática, onde se constata a negação do princípio da presunção de inocência no ato do registro precário do indiciamento nos bancos de dados policiais.

O basilar princípio da presunção de inocência exige a adoção de "critério condicionador das interpretações das normas vigentes" em seu favor, interpretando as normas em busca de sua máxima aplicação (MORAES, 2002, p. 385).

A contrario sensu o artigo de lei trazido a baila (art. 7º. da Lei 12.037/09) nem mesmo prevê a exclusão do indiciamento, mas somente a retirada (condicionada) da fotografia identificadora dos autos do inquérito/processo.

A tendência garantista que areja o Supremo Tribunal Federal [48] não compactua com preceitos conservadores como o citado. No entanto, imaginar que o indivíduo tenha que enfrentar a engrenagem de força do sistema jurídico brasileiro para ao final ver reconhecida uma garantia constitucional legítima, não pode ser o caminho correto para um Estado Democrático e Constitucional de Direito.

A já mencionada Lei n. 12.037/09, que dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, em seu art. 6º., reitera os termos do art. 20 do Código de Processo Penal. O referido diploma legal veda menção em certidões criminal do indiciado em atestados de antecedentes ou informações não destinadas ao juízo criminal, desde que anteriormente ao trânsito em julgado da sentença condenatória (BRASIL. LEI. 12.037/09, [200-?], s.p.).

Ainda que o sigilo exigido pela lei fosse efetivo, sua utilização por membros do Ministério Público e por juízes na avaliação dos antecedentes (art. 59 do CPB) violaria o princípio da não culpabilidade. Neste sentido, decisão do Supremo Tribunal Federal, comprovando a efetiva utilização das folhas de antecedentes, repositório de indiciamentos policiais, na fundamentação para fixação da penal:

EMENTA: Habeas corpus. - A pena agravada em função da reincidência não representa "bis in idem". - A presunçãodeinocência não impede que a existência de inquéritos policiais e de processos penais possam ser levados à conta de maus antecedentes. Habeas corpus indeferido (BRASIL. STF. HC 73.394/SP).

Com efeito, o indiciamento, ato administrativo unilateral [49] e pré-processual, que no cenário processual brasileiro não permite discussão de acerto no procedimento administrativo do Inquérito Policial, efetivamente transcende para o processo penal suas conseqüências negativas, influenciando de fato na fixação da pena.

Há no Supremo Tribunal Federal crescente corrente constitucionalista que inadmite os registros na folha de antecedentes como parâmetro para a caracterização de maus antecedentes, justamente por violação frontal ao princípio da presunção de inocência. Decisões no sentido de negar carga valorativa ao indiciamento policial para análise dos maus antecedentes do indivíduo demonstram a inutilidade do instituto que, sob a ótica constitucional, não se sustenta. O indiciamento constrange o indivíduo a uma situação jurídica desfavorável por decisão incontestável, sem finalidade legítima.

A seguir, ementa de decisão da 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Eros Grau, nos autos do Habeas Corpus n°. 96.618/SP, corroborando as alegações aqui apresentadas.

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL. AUSÊNCIA DE BASE FÁTICA. GRAVIDADE DO CRIME. INIDONEIDADE. EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS E DE AÇÕES PENAIS EM ANDAMENTO. MAUS ANTECEDENTES. OFENSA AO ARTIGO 5º, INCISO LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Prisão cautelar para garantia de eficácia da aplicação da lei penal fundada em simples afirmação de sua necessidade, sem indicação de elementos fáticos que a ampare. Inidoneidade. 2. A invocação da gravidade abstrata do crime não justifica a prisão preventiva para garantia da ordem pública. Precedentes. 3. A existência de inquérito e de ações penais em andamento não caracteriza a existência de maus antecedentes, pena de violação do princípio da presunção de inocência. Precedentes. Ordem concedida a fim de que o paciente seja posto em liberdade, se por al não estiver preso (BRASIL. STF. HC n. 96.618/SP, [200-?], s.p.).

A proteção moral do eleito pela autoridade policial ao posto de indiciado não se encontra presente. Não são raros os casos em que a folha de antecedentes positiva não é emitida, no entanto, pela rede mundial de computadores a condição de indiciado é estampada aos quatro ventos. Ver-se incluso num banco de dados policial, por medida unilateral e de impossível resistência, traz uma carga negativa difícil de suportar. O constrangimento atinge a honra subjetiva do sujeito, tanto mais que não aceita que a indignação dê nascimento à crítica racional do ato estatal.

Vale lembrar que a situação do indivíduo reaparece a cada impressão de folha de antecedentes criminais.

O registro nas folhas de antecedentes criminais - FACs é um registro conciso que não permite a quem o analisa antever o grau de precisão ou correção do indiciamento. O indiciamento é ato administrativo sem previsão legal de questionamento ou revisão no Inquérito Policial, assim o status de indiciado perdurará na vida pregressa do indivíduo, pouco importando a justiça ou injustiça do ato.

Já se observou que é de praxe o indiciamento perdurar na folha de antecedentes do indivíduo ainda que apenas para fins de registro no histórico policial. Raras são as decisões judiciais que determinam a exclusão, como a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Recurso em Sentido Estrito no. 2009.34.00.018964-4/DF, in verbis:

A Turma, por maioria, deu provimento ao recurso em sentido estrito para decretar a anulação do indiciamento de JOSÉ REGINALDO REIS, mas observando que as investigações devem prosseguir. Processo Penal. Inquérito. Indiciamento. Anulação. 1. Indiciamento é a imputação a alguém da prática de um crime. 2. O indiciamento criminal é uma verdadeira mácula na vida de qualquer pessoa, haja vista que passa ser mencionado nos históricos de antecedentes criminais, além de condicionar a liberdade de ir e vir, na medida em que toda a mudança de endereço tem de ser comunicada à autoridade policial. O indiciamento constitui verdadeiro abalo moral.
3. Inexistência de indícios, meras suspeitas que devem ser investigadas. Não havendo indícios não há como haver indiciamento (BRASIL. TRF1. RSE n. 2009.34.00.018964-4/DF, [200-?], s.p.).

Também adotando viés garantista, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão datada de 20/11/97, 5ª Câmara de Direito Criminal, Recurso em Habeas Corpus no. 241.114-3/SP – Rel. Des. Celso Limongi:

Possibilidade, entretanto, que o registro do inquérito não conste da folha de antecedentes. Inteligência do art. 5º, LVII, da CF [...] Impossibilidade de se deixar alguém em constante situação de constrangimento. Expedição da folha sem o registro. Recurso parcialmente provido para esse fim. Não é justo, ante o princípio constitucional da presunção de inocência, que seja divulgada a terceiros a distribuição de processo criminal ou inquérito policial, considerando-se, principalmente, que este último é procedimento destinado a apurar os fatos e sua autoria, não tendo o agente oportunidade de apresentar defesa. (BRASIL. TJSP. HC n. 241.114-3/SP, [200-?], s.p.).

É tranqüilo o entendimento de que o indiciamento possui "significativa magnitude social" e por vez "tem mais repercussão junto à comunidade do que a confirmação de uma sentença condenatória pelo Supremo Tribunal Federal" (Chouke, 1995, p. 143).

Fruto da convicção da autoridade policial, o indiciamento traz, como demonstrado, conseqüências indesejadas ao indivíduo.

Já se argumentou que as repercussões trazidas pelo ordenamento jurídico à esfera privada somente se sustentam se baseadas na razoabilidade e ponderação de valores. Também é cediço que o indiciamento traz efetiva mudança no status quo do indivíduo após a sua eleição ao posto de indiciado. Resta discorrer criticamente sobre a sustentabilidade desta decisão no parâmetro e no modelo existente.

Sobre o autor
Johnny Wilson Batista Guimarães

Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, bacharel em Direito pela mesma Faculdade, especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, com extensão universitária em formação para o magistério superior. Habilitado pela OAB/MG. Escrivão de Polícia Federal, classe especial, com ingresso na carreira em 1997, atualmente lotado e em exercício na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG na Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. Análise garantista do indiciamento no inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2882, 23 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19166. Acesso em: 19 nov. 2024.

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