"Daí resulta que a corrupção dos governos quase sempre começa pela dos princípios: uma vez corrompidos os princípios do governo, as melhores leis tornam-se más, voltando-se contra o Estado; sendo saudáveis os princípios, as más leis tem o efeito das boas, pois a força do princípio tudo arrasta" (Montesquieu, O Espírito das leis)
"A consciência não me acusa, As consciências calam-se mais do que deveriam, por isso é que se criaram as leis" (José Saramago, Todos os nomes)
Introdução
Antiga e conhecida é a distinção entre os marcos teóricos do Direito e da Sociologia [01]. Enquanto sociólogos debruçam-se sobre uma realidade existente, os juristas perseguem uma realidade aspirada. Dito de outra forma, a Sociologia, menos romântica, ocupa-se de relações sociais concretas, ao passo que o Direito, construindo fórmulas ideais, objetiva o desenvolvimento pacífico de tais relações.
Pesem as diferenças, tais ciências dialogam e, comumente, aceitam-se. Eventuais pontos de discórdia, mais do que tensão, geram desenvolvimento. As questões sociológicas são, em certa medida, oportunidades para o Direito, cuja missão se renova diante de cada problema.
Atualmente, a grande maioria dos Estados ocidentais constitui-se sob a forma democrática, e rege-se sob a autoridade das leis. Nas sociedades democráticas estão inseridas as ideias de que no consentimento do povo baseia-se a legitimidade governamental e de que as funções de governo, acessíveis a todos, são exercidas em nome e em benefício da coletividade.
No âmbito das ciências sociais, entretanto, o alicerce democrático, já vertido num quase-dogma jurídico [02], via-se e se vê constantemente questionado. Há os que, como Gaetano Mosca, afirmam que o poder é exercido no resguardo dos interesses dos próprios governantes; há os que, como Robert Michels, duvidem da representatividade; há os que, como Vifredo Pareto, desacreditem a possibilidade de acesso universal à cúpula do poder; há os que, como Oliveira Vianna, insurjam-se contra o voto igualitário; e há, finalmente, os que, como Carlos Mastrorilli [03], vejam o Estado de Direito como um aparatodedominação apoiado numa ilusão de justiça.
E se as vicissitudes apontadas pela Sociologia existem, ao Direito cumpre o dever de (tentar) erradicá-las.
Hodiernamente, a democracia é exercida pelas vias da representação, que se efetiva por meio de processos eleitorais, regidos e resguardados por normas jurídicas. Sem embargo, como sustenta Carlos Fayt, "hay siempre una parte de la vida o actividad política que se realiza al margen del orden" [04].
Já no século XVI, Nicolau Maquiavel alertava que a tendência natural de quem está no poder é a de querer perpetuar-se. Passados cinco séculos, a premissa se mantém. No afã de manter o poder, candidatos já nele investidos, cotidianamente, desrespeitam regras eleitorais para conservá-lo. Fazem-no, muitas vezes, praticando condutas vedadas aos agentes públicos nos períodos eleitorais. Noutras, atuam em desrespeito a princípios constitucionais que norteiam a Administração Pública, ferindo o Processo Eleitoral e, de consequência, os princípios democrático e republicano.
O Direito, como vimos, interage com a Sociologia numa relação de porosidade: ciente das mazelas por ela apontadas, há que se armar para enfrentá-las. O presente estudo dirige-se ao exame de problema afeto a ambas as ciências: o poder político. Sob a ótica jurídica, fixa premissas, estabelece distinções e analisa a tipologia, para demonstrar a existência do abuso de poder político por omissão.
2.Noções propedêuticas
1.1 Abuso de direito e abuso de poder
Não existe, no Brasil, um conceito jurídico-legal de abuso do poder político. Constituição Federal e legislação esparsa ocupam-se do instituto, entretanto, sem conceituá-lo. Anote-se que sua noção, para além de vaga, é densa. Seu correto delineamento pressupõe, portanto, a fixação de determinadas premissas conceituais, às quais rendemos o presente tópico.
Em sentido vulgar, todo direito peja um poder: qualquer que o possua pode (ou seja, tem a prerrogativa de) exercê-lo. Em sentido jurídico, todavia, direito e poder podem encontrar-se em descompasso. Como se sabe, há diferentes formas de exercício de direito (e, pois, de poder). O modo de exercício pode, inclusive, determinar a sua anulação, já que todo direito é limitado pelo direito de outrem. Afinal, conforme Kant, aos cidadãos impõe-se um preceito jurídico geral e obrigatório, consoante o qual "[u]na acción es conforme a derecho cuando permite, o cuya máxima permite, a la libertad del arbitrio de cada uno coexistir com la libertad de todos según una ley universal". [05]Essa máxima de coexistência vê-se rompida na hipótese de abuso, ocasião em que o poder, eivando-se de ilicitude, afasta-se do direito. O mau uso faz cinde o que se cingia.
A proximidade entre direito e poder autoriza que a doutrina especializada associe o abuso de poder na seara eleitoral com a teoria do abuso de direito, elaborada na esfera privada. Presente no direito romano, conquanto desenvolvida, de fato, no direito medievo, a teoria do abuso de poder preconiza que "[q]ualquer que seja o meio de exercício de um direito, ele deve atentar-se ao ideal de harmonia social, fonte imediata e razão de ser do próprio ordenamento jurídico". Ademais, a legalidade do exercício de um direito "encontra-se condicionada à satisfação de um interesse legítimo, dissociado da vontade de causar dano ou de impedir que outrem exerça um direito que o ordenamento lhe confere" [06] Posto de forma mais simples, o abuso de direito pode dar-se por ato emulatório (i.e., com o pendor de prejudicar) ou por exacerbação no exercício do direito.
A teoria do abuso de poder no Direito Eleitoral fixa-se sob tais premissas, porém nelas não se encerra, eis que dotada de peculiaridades. Notando-as, Garcia destaca [07]:
(...) a grande massa de atos lesivos ao procedimento eletivo e que serão aleatoriamente enquadrados sob a epígrafe do "abuso de poder", em verdade, não caracteriza abuso de direito. São atos que desde o nascedouro carregam a mácula da ilegalidade, pois praticados em frontal e flagrante dissonância do ordenamento jurídico. Como não se trata de exercício irregular de um direito, pois direito nunca houve, impossível será falar-se em abuso de direito. Por tais motivos, o abuso de poder pode ser conceituado como o uso exorbitante da aptidão para a prática de um ato, que pode apresentar-se inicialmente em conformidade ou desde a origem destoar do ordenamento jurídico.
1.2 Uso e abuso de poder político
Cláudio Drewes Siqueira [08] (2008: p.25), analisando o abuso de poder econômico nas eleições, afirma que referido poder "existe, e naturalmente se aceita, tal como outras espécies de poder concorrentes." Segundo o ex-Procurador Regional Eleitoral de Goiás, o que não se tolera é o abuso. A opinião é acolhida sem ressalvas no que se refere aos poderes econômico e de mídia, porquanto aceitos como manejáveis, no processo eleitoral, em patamares até certo ponto admitidos.
Ao poder político, entretanto, o entendimento não se pode estender. Isso porque, como se sabe, um dos principais fundamentos da necessidade de coibição ao abuso do poder político é o princípio da igualdade de condições. Ademais, sua assunção fundamenta-se em princípios democráticos e republicanos que não admitem sua utilização senão em prol da coletividade. O poder político, ao contrário do econômico e do poder de mídia, não se encontra (mesmo em hipótese) nos âmbitos de aquisição e disposição de todos os candidatos [09]. Forçoso concluir, então, que o uso de poder político nas campanhas eleitorais não precisa ser desbordado para revelar-se antijurídico. Eneida Desiree Salgado reforça o entendimento:
Outro aspecto do princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos é a exigência da absoluta neutralidade dos poderes públicos na campanha eleitoral. No caso do poder político, seu uso já se configura abusivo, pois se trata de fator absolutamente irrelevante [sic - a autora, obviamente, quis dizer "relevante"] na disputa eleitoral, que não comporta sequer medidas para compensar a desigualdade entre os candidatos. [10]
Sob a mesma fundamentação é que José Jairo Gomes [11] observa que a máquina administrativa, trabalhando a serviço de candidaturas, ofende não apenas a isonomia que deve pautar as campanhas eleitorais, como também o princípio republicano, que repele qualquer forma de tratamento privilegiado.
Nesse ponto, importa fazer um esclarecimento. A chamada "Lei da Ficha Limpa" (LC 135/2010) inseriu um inciso no art. 22 da Lei das Inelegibilidades (LC 64/90), cuja redação é a que segue:
Art. 22. (...)
XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.
Como dissemos, o simples uso do poder político em favor de candidato, partido ou coligação já se revela contrário ao direito, não podendo, portanto, ser tolerado. A caracterização do abuso, entretanto, pressupõe a perquirição da intensidade (ou gravidade)do uso, além do respectivo impacto na normalidade e na legitimidade das eleições.
1.3 Abuso de poder político e condutas vedadas aos agentes públicos
Há que se diferenciar, ainda, o abuso de poder político das condutas vedadas aos agentes públicos, como fazem com acuidade Luciano Sato e Sérgio de Souza [12], a partir da análise dos diferentes bens jurídicos protegidos. Percebem os autores que as condutas constantes dos arts. 73 e ss. da lei 9.504/97 são vedadas aos agentes públicos com o objetivo de tutelar a igualdade de oportunidade entre os candidatos, ao passo que o combate a abuso do poder político, constante do art. 14, §9º, da Constituição Federal, pretende tutelar a normalidade e a legitimidade das eleições.
Costumava-se distinguir abuso de poder político e realização de condutas vedadas, também, pelos efeitos jurídicos correspondentes: em linhas gerais, ambos os institutos são passíveis de determinação de suspensão da conduta (art. 73, §4º, Lei 9.504/07) e cassação do registro da candidatura ou do diploma (o abuso segundo o art. 22, XIV, da LC 64/90; as condutas vedadas, segundo o art. 73, §5º da Lei 9.504/97), sem prejuízo de eventuais sanções penais e administrativas. Quanto à inelegibilidade, porém, existia uma diferenciação: na sistemática anterior, apenas o abuso de poder político poderia acarretá-la. Em respeito ao princípio da reserva legal, não há previsão de inelegibilidade na Lei que estabelece as condutas vedadas, já que o art. 14, §9º da Constituição Federal reserva à lei complementar a tarefa de estabelecer das hipóteses de inelegibilidade. Atualmente, entretanto, há que se atentar para o fato de que as condutas vedadas aos agentes públicos também podem pespegar inelegibilidade, quando houver condenação transitada em julgado (ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral) por condutas vedadas aos agentes públicos em campanha eleitoral que impliquem cassação do registro ou do diploma (art. 1º, "j" da LC 64 – com redação dada pela LC 135/210).
2 Abuso de poder político
2.1 Conceito
Conforme mencionado, não existe um conceito legal de abuso de poder político, tampouco um rol de atos que o consubstanciem. Dessarte, o abuso de poder político encontra na doutrina diversos e divergentes esboços. Uma correta análise do instituto requesta a desconstrução de algumas dessas posições. Fazemo-lo para, em seguida, propor o conceito que julgamos mais adequado.
Inicialmente, analisamos opinião oferecida por Luciano Sato e Sérgio de Souza. Embora destaquem a diferença entre condutas vedadas e abuso de poder político, afirmam "ser imprescindível à configuração do ‘abuso de poder político’ a ocorrência das condutas tipificadas no artigo 73 da lei das Eleições" [13]. Os autores limitam a abrangência do abuso de poder político às hipóteses de condutas vedadas, sob o argumento de que, assim, confere-se "maior segurança jurídica consistente na previsibilidade das hipóteses configuradoras do ‘abuso’, bem como evita[-se] o casuísmo na aplicação do Direito" [14]. A afirmação nos parece equivocada. A segurança jurídica é, obviamente, um valor a ser considerado – e protegido – num Estado Democrático de Direito. Todavia, não há "democracia de direito" sem eleições normais e legítimas. Os valores ora ponderados – segurança jurídica de um lado, normalidade e legitimidade das eleições do outro - orbitam em torno do Estado, entretanto, em perspectivas diferentes, de antecedência e consequência: eleições normais e legítimas garantem a existência do Estado Democrático de Direito que, por sua vez, admite como um de seus valores a segurança jurídica. [15]
Em suma: se o processo de transmissão de poder é viciado, não existe Estado Democrático de Direito nem ordem jurídica (que se pretenda) segura. Ademais, não se pode afirmar que a segurança jurídica demanda um rol fechado de proibições. A ampla maioria da doutrina, inclusive, entende o art. 73 como um rol exemplificativo de condutas que podem, em tese, recair em abuso. A posição é marcada por Caramuru Afonso Francisco [16]:
Não existe um rol único dos atos de abuso do poder político(...).
O rol mais extenso é o constante do art. 73, da Lei 9.504/97, que tipifica condutas que são vedadas aos agentes públicos em época de campanha eleitoral, bem como condutas previstas nos arts. 75 e 77 da mesma lei, regras, entretanto, que não esgotam a matéria" (grito nosso).
Parece-nos claro que a legislação existente comporta características bastantes para um reconhecimento juridicamente seguro das hipóteses de abuso de poder político.
Outrossim, convém analisar o entendimento de Djalma Pinto, para quem o abuso de poder político"consiste na utilização de bens do Poder Público ou na prática de ações, no exercício da função pública, visando ao favorecimento de candidato" [17]. Trata-se de definição, a nosso ver, insatisfatória.
Em primeiro lugar, o autor parece vislumbrar, na caracterização do abuso de poder político, a necessidade de um especial fim de agir [18], o que nos parece equivocado. No tópico referente aos abusos de direito e de poder, mencionamos que a teoria do abuso de poder nas eleições baseia-se na teoria geral do abuso de direito, comportando, todavia, peculiaridades. Eis uma delas. Conforme José Jairo Gomes [19], a responsabilidade no Direito Eleitoral volta-se à proteção da liberdade do eleitor, da lisura e da normalidade das eleições e da legitimidade dos resultados, pouco importando a investigação de aspectos psicológicos dos infratores. Até porque, conforme observa Dalmo Dallari [20] "pode ocorrer desvio de poder mesmo que não haja uma vontade de burlar a lei". Para o celebrado constitucionalista, a intenção de burla, quando evidenciada, presta-se apenas ao incremento do juízo de reprovação da conduta, proveniente do vício moral, do "embuste".
Por isso estamos com Gomes, quando afirma que o que importa é a demonstração objetiva da existência de abuso que comprometa de modo indelével as eleições. Além da especial importância dos bens jurídicos tutelados, nota o autor que tal responsabilização, além da aplicação de sanção, tem o sentido de prevenção geral, objetivando a defesa da ordem jurídico-eleitoral e a intimidação social, para desestimular a realização de condutas ilícitas. Reconhece-se que, como disse José Saramago, "o melhor guarda da vinha é o medo de que o guarda venha". [21] Nada que Foucault já não houvesse identificado.
Em segundo lugar, a definição peca ao pressupor o favorecimento. Sendo inerente ao abuso o desvirtuamento da normalidade do pleito, cediço reconhecer que se o pode manejar não apenas para favorecer, senão também para desfavorecer aqueles que tomem parte na disputa. [22] Basta imaginar a hipótese de Chefe do Executivo impedido de disputar a reeleição que deseje que a sucessão do mandato se dê para qualquer candidato que não aquele do principal partido rival.
Sobre os participantes da disputa, inclusive, versa a terceira impropriedade vislumbrada na afirmativa do autor. Com efeito, o conceito demonstra-se demasiado restritivo no que tange à delimitação subjetiva dos favorecidos: o abuso de poder político pode ocorrer em favor (ou desfavor, como dissemos) não apenas de candidatos, mas também de partidos e coligações.
Cabe, ainda, uma quarta observação: Djalma Pinto parece ignorar a existência de formas outras de abuso de poder político, além daquelas evidenciadas pelo uso de bens públicos ou prática de ações no exercício da função pública. E o abuso no direito eleitoral pode se dar de formas tão variadas que Eduardo Fortunato Bim chega a afirmar "que ele tem o dom de Proteu: pode se revestir de qualquer forma" [23] Uma delas, objeto principal do presente trabalho, é o abuso de poder político por omissão, que será alhures.
Caramuru Francisco não se olvida da modalidade omissiva. Sua definição, porém, não está isenta de críticas. Segundo o autor:
"[o] abuso do poder político é a ação ou omissão que é realizada por uma autoridade e cuja prática infringe proibição prevista em lei.
(...) Vê-se, portanto, que o abuso do poder político é o exercício de autoridade fora dos limites traçados pela legislação eleitoral, limites estes que fazem exsurgir uma presunção jure et de jure de que o exercício do poder estará influenciando indevidamente o processo eleitoral, estará fazendo com que a Administração Pública esteja sendo direcionada para o benefício de candidato ou de partido político". [24]
Embora bem construída, a definição é deveras restrita, já que, em verdade, o poder político não afronta apenas os limites da legislação eleitoral. Seu abuso constitui, também,acinte à principiologia constitucional da Administração Pública, à democracia e, portanto, à própria República. Trata-se de ilícito (co)medido por normas, não por regras. Disso não descura Emerson Garcia, que observa que a identificação dos atos que configuram abuso de poder político "será analisada a partir de princípios legais e constitucionais que regem a matéria". [25]
Uma definição adequada do instituto deve levar em conta as observações anotadas, sem olvidar-se da novidade trazida pela LC 135/210, alhures mencionada. Desse modo, eis a nossa definição: consubstancia abuso de poder político toda ação ou omissão realizada, num contexto eleitoral, por agente público, em desrespeito a comando jurídico normativo, idônea a, por sua gravidade, ofender a normalidade e/ou a legitimidade das eleições, em benefício ou prejuízo de determinada candidatura.
2.2.Tipologia
2.2.1.Abuso de poder político por ação
A estrutura do ilícito eleitoral por abuso de poder não apresenta grandes diferenças em relação aos ilícitos encontrados em outros ramos do Direito. Por esse motivo é que José Jairo Gomes entende plenamente aplicável, no particular, a tipologia geral dos atos jurídicos. Segundo o autor, "[n]o aspecto estrutural, o ilícito eleitoral apresenta os seguintes elementos: a) conduta abusiva; b) resultado; c) relação causal; d) ilicitude ou antijuridicidade" [26]. A ilicitude restou explicada quando da formulação de um conceito de abuso: refere-se aconduta que ofenda não apenas alei, mas também os princípios jurídicos. Conduta, resultado e nexo causal, todavia, demandam reflexão. A necessidade de exame surge da já mencionada alteração operada pela LC 135 na LC 64/90, cuja repetição faz-se oportuna:
Art. 22. (...)
XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.
Há que se entender que a inovação legislativa implica alterações axiológicas na estrutura do ilícito eleitoral do abuso de poder. O dispositivo em destaque teve como motor a superação de entendimento pacificado no Tribunal Superior Eleitoral [27], segundo o qual, para configuração de abuso de poder, em qualquer de suas modalidades, seria necessária a demonstração da potencialidade de o fato desequilibrar o resultado do pleito (o que, sem sombra de dúvidas, dificultava a punição pela prática do ilícito). Como se vê, o reconhecimento do abuso, antes da LC 135/10, reclamava a valoração do elemento resultado. Após a edição de referida Lei, nota-se que a análise valorativa recairá, também, sobre a conduta, que, agora, há de ser grave. A diferença prática é de fácil visualização. Suponha-se que o Prefeito de um município com um milhão de eleitores, concorrendo à reeleição, contrate, às vésperas do período eleitoral, dez mil funcionários sem concurso público. Poder-se-ia alegar que o número de votos auferidos em virtude do ato abusivo não seria capaz de afetar o resultado das eleições; mas nunca deixar-se de considerá-lo grave.
Assim, entendemos que, atualmente, a estrutura do ilícito eleitoral abusivo pressupõe: a) conduta abusiva grave; b) resultado; c) nexo de causalidade; d) ilicitude.
2.2.2.Abuso de poder político por omissão
O abuso de poder político encontra menção expressa em qualquer manual de direito eleitoral. A forma omissiva, por outro lado, raramente é lembrada [28]; e arrostada, quase nunca. Sem embargo, o tema foi enfrentado por Emerson Garcia [29]:
A unidade e a harmonia característica do sistema jurídico bem indicam que, a exemplo do abuso de direito na esfera privada, o abuso de poder pode estar presente tanto na ação quanto na omissão. O facere e o non facere, como é intuitivo, consubstanciam unidades existenciais norteadas pela ideia de dever jurídico, afastando qualquer possibilidade de disposição do agente público.
O abuso de poder político por omissão realiza-se por meio de grave abstenção de agente político, que, deixando de fazer algo a que estava juridicamente obrigado, compromete a normalidade ou a legitimidade das eleições, em benefício ou prejuízo de candidato, partido ou coligação.
Não obstante a desatenção doutrinária, há previsão expressa de pelo menos uma hipótesede ilícito eleitoral omissivo de poder político no ordenamento jurídico-eleitoral brasileiro. Trata-se de conduta vedada constante do inciso IV do art. 73 da Lei 9.504/97, que se configurará abuso quando, pela gravidade, ofenda a normalidade ou a legitimidade das eleições:
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: (...)
IV – fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público; (grifo nosso).
Afora a hipótese legalmente prevista, pode-se vislumbrar inúmeros outros expedientes configuradores, em tese, deabuso de poder político por omissão. Para demonstrá-lo devemos, antes, analisar a estrutura do abuso omissivo, que, a nosso ver, apresenta-se assim: a) omissão grave; b) resultado; c) nexo de causalidade; d)ilicitude.
É crucial que se entenda a estreita relação existente entre a conduta e a ilicitude. Afinal, se, como ensina René Ariel Dotti [30], a omissão "é a abstenção de atividade juridicamente exigida, [constituindo] uma atitude psicológica e física de não-atendimento da ação esperada, que devia e podia ser praticada", conclui-se que só se pune o não-fazer ilícito, e não qualquer absenteísmo.
Qualquer norma jurídica pode servir de parâmetro para o reconhecimento do dever jurídico de atuação. Na análise do abuso de poder político por omissão, avultam de importância os princípios constitucionais de direito administrativo, em especial o da legalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal. A ordem que dele se extrai é a de que nenhum agente público pode abster-se diante de comando normativo, legal ou principiológico que exija sua atuação, a fim de evitar prejuízos ao serviço ou patrimônio público, às necessidades da comunidade e de seus membros ou a qualquer outro valor erigido pelo ordenamento jurídico.
Elencamos alguns exemplos de atos que poderiam, em tese, configurar de abuso de poder político por omissão.
O art. 236 do Código Eleitoral estabelece que, desde cinco dias antes, até 48 horas depois do encerramento da votação, nenhuma autoridade poderá prender qualquer eleitor, salvo em decorrência de flagrante delito, sentença condenatória por crime inafiançável ou desrespeito a salvo-conduto. Imagine-se que, em apoio a um candidato, o delegado de um município desrespeite a garantia eleitoral mencionada, efetuando a prisão de eleitores adeptos do candidato rival. Se o Juiz responsável pelo julgamento dos habeas corpus impetrados, simpatizando com a "causa" do delegado, omitir-se, deixando para julgá-los apenas após as eleições, teremos um caso de abuso de poder político por omissão.
Também pode ocorrer abuso de poder político por omissão quandoChefe de Executivo, para não sofrer o impacto eleitoral negativo advindo de exoneração massiva, deixe de realizá-la, em descumprimento a parâmetro constitucional de limite de despesas com pessoal.
Outrossim, praticará abuso por omissão a autoridade que deixe de promover uma educação baseada no pluralismo de ideias (art. 206 da constituição Federal), permitindo que se perpetue, nas escolas, a divulgação de informações tendenciosas e viciadas, no que Arno Wehing chamou de uso político da história [31]. Basta imaginar um governo de direita que, em época de abertura, pretenda anular as pretensões políticas da esquerda, deixando de rever cartilhas escolares em que se divulgam mitos de legitimação, consistentes em inverdades históricas como a da ameaça vermelha. Não se duvide de que tal aconteça, pois, como alerta o mencionado historiador:
[...] depreende-se que a história possui, ao contrário do que supunham os defensores cientificistas da neutralidade científica, um ‘pecado original’; gerada muitas vezes em função do poder, para legitimar seus detentores ou justificar seus aspirantes, ela seria uma forma de conhecimento irremediavelmente comprometida com a luta política, não no sentido amplo e humano de Aristóteles, mas na acepção de partido, grupo ou facção. [32]
Cabe, ainda, registrar um exemplo histórico: em 1985, a inflação monetária no Brasil ultrapassava o patamar de 200% ao ano [33]. O Estado encontrava-se tão endividado que se viu obrigado a declarar a moratória da dívida externa. No ano seguinte, pese a crise existente, o governo gozava de enorme aprovação popular, em virtude do Plano Cruzado que, entre outras medidas, determinou o congelamento de preços, mas não o de salários, reajustáveis segundo uma política de concessão de abonos. [34] Em abril daquele ano, porém, lembra Maria Sílvia Bastos Marques que setores do governo já enxergavam problemas no plano, entre eles a pressão na demanda causada pelo consumo desenfreado. Observa a autora (1988: p. 121):
(...) apenas no final do mês foi tomada a primeira medida de restrição ao consumo, que consistiu na redução do crédito direto ao consumidor. Técnicos do Banco Central argumentaram que teria sido mais eficaz a execução de uma política monetária mais ativa, que ajustasse a taxa de juros. Isso denotava que a preocupação com a condução política monetária, ausente na formulação do plano, começava a manifestar-se. [35]
Obviamente, as medidas consideradas mais adequadas pelo Banco Central não teriam um bom impacto no eleitorado. Assim é que optou o governo por omitir-se até que se realizassem as eleições. De acordo com Marques:
Entre agosto e novembro, a questão político-eleitoral teve prioridade em relação à questão econômica. Durante este período foram tomadas apenas medidas paliativas, para minimizar a situação até a realização das eleições para governadores e para a Assembléia Constituinte. Logo após as eleições, no dia 21 de novembro,as autoridades econômicas apresentaram um programa de ajuste ao Plano Cruzado, denominado Cruzado II.
O cenário ilusivo sustentado pela omissão do governo rendeu, ao partido do então presente, a eleição de 21 dos 22 governadores de Estado. [36]
Para finalizar, apresentamos um caso concreto: em 2008, o Prefeito da cidade de Maués/AM teve seu mandato cassado em representação em que se reconheceu a existência de ilícito omissivo. Naquele caso, o Ministério Público Eleitoral demonstrou que o Chefe do Executivo, na intenção de angariar os votos de dezenas de famílias que haviam invadido uma área de preservação municipal, deixou de aplicar medidas de proteção previstas tanto na Lei Orgânica Municipal quanto na legislação ambiental. Na decisão restou consignado que o administrador que ignora determinações legais em detrimento de sentimentos pessoais também pratica abuso de poder político.