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Do princípio da igualdade à ação afirmativa.

A trajetória do direito à inclusão social

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Agenda 09/06/2011 às 15:56

AÇÃO AFIRMATIVA COMO CONCRETIZADORA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Conceituar ação afirmativa ou discriminação positiva (denominação pela qual tais políticas são identificadas em certos países europeus) não é tarefa tão árdua se considerarmos que existe em sua essência uma conceito geral, que poderá ser utilizado genericamente para os países que a adotarem, embora não se possa ignorar que sua efetividade dependa de adaptações em cada um dos países, já que possuidores de formação cultural e política diversa.

De um modo geral, pode-se afirmar que as ações afirmativas são todas as políticas que contemplam de forma mais específica o princípio da igualdade jurídica, neutralizando os efeitos decorrentes de práticas sociais relacionadas à discriminação, seja sela de origem, de sexo, de cor ou étnicas. Joaquim B. Barbosa Gomes, com clareza solar, define as ações afirmativas:

"[...] as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, entes vinculados e até mesmo entidades puramente privadas, visam combater não somente manifestações flagrantes, mas também as manifestações de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano". [67]

Essas políticas públicas refletem o redirecionamento da posição histórica estatal e pretende não só combater a discriminação, mas sim, neutralizar todos os seus efeitos, passados, e se, possível evitar eventuais efeitos futuros. Ressalte-se que a execução das mesmas deverá abranger toda a sociedade e todo o Estado, tendo em vista que um dos seus maiores objetivos reside no caráter educativo da medida. Assim, pode-se dizer que:

"Nascidas de iniciativas do Poder Executivo Federal, as ações afirmativas se disseminaram por todo o aparato estatal nas três esferas de Governo, migraram para o setor privado e, como não poderia deixar de ser, foram adotadas pelo Poder Judiciário como instrumento de solução de litígios em que esteja em jogo a problemática constitucional da igualdade [...] são fruto de decisões políticas oriundas do Poder Executivo, com apoio, vigilância e sustentação normativa do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, que além de apôr sua chancela de legitimidade aos programas elaborados pelos outros poderes, concebe e implementa ele próprio medidas de igual natureza". [68]

E exatamente por refletirem posições de vários atores sociais é que as ações afirmativas podem ser classificadas em: 1)Políticas públicas do Poder Executivo - as quais são exemplos as cotas rígidas para acesso à educação universitária e a obrigação imposta aos que contratam com o Estado de admitir, no quadro de empregados, quantidade determinada de negros ou mulheres ou estrangeiros; 2) Ações do Poder Judiciário – decorrentes de decisões judiciais que tentam alcançar o princípio constitucional da igualdade, inserindo certos grupos sociais em setores jamais alcançados por eles; 3) Políticas privadas de ações afirmativas – são relacionadas à sociedade civil, especialmente ao terceiro setor, que realizam políticas de inclusão social, seja por meio da educação, seja por meio da cultura ou de inserção no mercado de trabalho. [69]

A ação afirmativa, portanto, não passa do reconhecimento e a legitimidade da sociedade em geral para realizar tratamento jurídico diferenciado em relação a alguns grupos sociais excluídos ou desfavorecidos, conforme seu grau de integração na sociedade que pertence, sendo a discriminação, neste caso, legitimamente autorizada pela Constituição Federal, já que justa a medida que visa equilibrar o quadro social.

O tratamento diferenciado proposto pelas ações afirmativas se justifica pelo fato de que os objetivos queridos pela sociedade no combate à discriminação não estavam sendo realizados pela maneira que vinha sendo conduzida a política de tratamento das questões raciais, que se limitava a normatizar regras puramente formais para evitar o tratamento desigual de indivíduos na sociedade.

Assim, as ações afirmativas propõem mais do que a simples proibição sobre a discriminação (regra que não manifestava efetividade no plano concreto), eis que têm como princípios a observância da diversidade e do pluralismo em todos os setores sociais, colorindo-o com a representatividade de cada um dos grupos étnicos, sexuais e que apresentam deficiências físicas. [70]

Seus objetivos, então, estão ligados à iniciativa de "transformação no comportamento e na mentalidade dos membros da sociedade, cujos ‘mores’ são fortemente condicionados pela tradição, pelos costumes, pela história." [71] Assim, a ação afirmativa reflete uma tendência de modificar valores sociais, principalmente os que dizem respeito a idéia de subordinação de uma classe em detrimento da outra, ou seja, além de evitar a discriminação presente, tende a coibir os efeitos da discriminação passada, principalmente as que estão enraizadas no imaginário popular coletivo.

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Tais objetivos seriam alcançados levando-se em conta que as ações realizadas, tanto pelo Estado, quanto pela iniciativa privada ou terceiro setor seriam uma espécie de exemplo a ser seguido pelo restante da população, que, pouco a pouco, se aperceberiam da necessidade urgente de modificação do contexto discriminatório que existe em vários países no mundo.

Segundo a teoria da justiça distributiva, a qual teve como representantes Richard Wasserstrom e Mary Segers, as ações afirmativas seriam uma espécie de instrumento hábil a redistribuir os ônus e bônus entre os membros da sociedade, com a forte intenção de permitir que grupos sociais historicamente discriminados e em franca posição inferior fossem devidamente representados em espaços sociais de maior prestígio, onde, conseqüentemente alcançariam postos inatingíveis, sobretudo em vista do fenômeno da discriminação.

Guilherme Peña de Moraes, ao citar Wasserstrom comunica que a justificativa das ações afirmativas teriam o condão de alterar as estruturas sociais, no que diz respeito à viabilização do acesso de minorias aos grupos sociais de determinada posição. Vejamos:

"As ações afirmativas alteram diretamente a composição das instituições. Isto é desejável em si mesmo, por configurar uma redistribuição de posições, com o escopo de criar uma nova realidade social, na qual, em grau substancialmente superior ao observado no presente, as posições de relevância serão ocupadas por minorias ou grupos sociais". [72]

A noção de justiça distributiva, assim, se caracteriza por objetivar a distribuição equânime de "ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros bens e benefícios entre os membros da sociedade". [73]

Sabe-se que ao se tratar desigualmente certos grupos marginalizados, para que se igualem os grupos da sociedade, estar-se-á, direta ou indiretamente, reestruturando a sociedade na base do princípio igualitário, concedendo iguais oportunidades para todos os grupos sociais, inclusive os discriminados, que, em virtude de sua história de discriminação, terão maiores oportunidades sociais que os demais, corroborando a essência do princípio. Ou seja:

"a tese distributivivista propõe a adoção de ações afirmativas, que nada mais seriam do que a outorga aos grupos marginalizados, de maneira equitativa e rigorosamente proporcional, daquilo que eles normalmente obteriam caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no obstáculo instransponível da discriminação. Portanto, sob essa ótica, a ação afirmativa define-se como um mecanismo de redistribuição de bens, benefícios, vantagens e oportunidades que foram indevidamente monopolizadas por um grupo em detrimento de outros, por intermédio de um artifício moralmente ou juridicamente condenável - a discriminação, seja ela racial, sexual, religiosa ou de origem nacional". [74]

Compete-nos, agora, tão-somente, averiguar se a relação entre efetividade do princípio constitucional da igualdade e a prática das ações afirmativas será sempre uma positiva, no sentido de que a prática de tais ações corresponderem de modo unívoco ao princípio da igualdade.

Com efeito, cumpre ressaltar, que, a despeito das ações afirmativas constituírem uma das mais relevantes conquistas do direito contemporâneo, bem como representarem um dos mais novos instrumentos constitucionais de realização da igualdade, "seu equacionamento jurídico pode envolver grandes dificuldades". [75] Aliás, como qualquer política nova que pretende revolucionar estruturas sociais, já que o Direito quase sempre é um modo de preservação legítimo do status quo.

Porém, com um olho ético sobre a justiça, não se pode permitir que a desigualação torne-se um paradoxo, permissivo de favoritismos. Ao contrário, a implementação da política deve sempre ser feita de acordo com as premissas do princípio da igualdade, já que sempre tenta efetivá-lo no respeito ao princípio da igualdade formal, tornando-o mais próximo do princípio da igualdade material. As ações afirmativas envolvem e identificam na práxis o mais completo princípio de igualdade material.

Portanto, sob a bandeira das ações afirmativas, não se pode jamais justificar uma desigualação desproporcional, injusta e que atinja o bom-senso jurídico. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as condições jurídicas das ações afirmativas deverão sempre ser analisadas de maneira profunda, já que "no plano jurídico, tais políticas importam em estabelecer tratamento normativo diferente – desigual – a tais grupos, sem violar o princípio da igualdade. Trata-se, pois, de uma tarefa que, além de difícil, é extremamente delicada". [76]

Para que seja efetiva, deve observar o senso de justiça, o princípio da igualdade e da proporcionalidade e não evitá-los. A fim de que essa condição fique mais palpável, o autor indigitado procura encontrar critérios válidos para evitar que as ações afirmativas justifiquem experimentos injustos, desproporcionais, inconstitucionais.

Portanto, inicialmente, sob a ótica do autor, uma primeira condição para o resguardo do princípio constitucional diante das ações afirmativas seria a utilização do critério de objetividade. Assim, faz-se necessária a identificação do grupo desfavorecido - dos sujeitos de direito dos programas de ação afirmativa – que deve ser objetivamente determinado e não arbitrariamente definido, pela imprecisão de conceitos ou meros conceitos políticos. [77]

Em outras palavras, o sujeito beneficiário das ações afirmativas deve pertencer, necessariamente, a uma minoria. Ressalte-se que não se trata aqui de confundir as ações genéricas - relativas à igualdade entre todos, como assistência à saúde, à educação, à cultura e outros bens insubstituíveis, que refletem a tendência dos direitos humanos e garantem os direitos básicos mínimos à sobrevivência – com as ações afirmativas, que são políticas especiais, específicas para determinado grupo se desenvolver em determinado espaço e tempo da história social.

Uma segunda condição para se resguardar o princípio da igualdade, relacionando-o de modo positivo com a adoção das ações afirmativas é a utilização do critério da regra de medida. Segundo o autor indigitado, o avantajamento deve ser proporcional à desigualdade a reparar. É a denominada Regra de medida/proporcionalidade. Impõe-se a utilização dessa regra, sob pena de se ver violado o princípio da igualdade, já que, no entendimento de Manoel G. Ferreira Filho "haverá um grupo beneficiado em relação aos demais grupos e à sociedade como um todo". [78]

Assim, se há discriminação e os efeitos da mesma acabam por impedir a inclusão social e a ascenção entre classes sociais de determinado grupo específico, cumpre ao Estado reestabelecer certo equilíbrio, de forma a reservar lugares sociais de prestígio para o grupo que tem gigantescas dificuldades de chegar lá por seus próprios pés. Justificada a medida, no caso dos negros e das ações afirmativas direcionadas aos mesmos.

A terceira condição está atrelada ao entendimento da segunda, pois também as normas de avantajamento devem ser adequadas à correção da desigualdade. Assim, a compensação pela discriminação deve ser proporcionalmente relacionada com a desigualação causada. O autor a denomina Regra de Razoabilidade ou de Adequação. [79]

Procura-se, aqui, justificar o nexo de causalidade entre o desequilíbrio social causado e a medida de compensação que o Estado visa realizar. A proporcionalidade deve se dar à medida que os critérios erigidos e as compensações são justas, aos olhos sociais. Pode-se encontrar justificativa para o critério no próprio conceito de justiça social desenvolvido por Aristóteles, na época clássica e Rawls, na época moderna.

Pegoraro, sintetizando a questão sob a ótica de Aristóteles e de Rawls conclui que o valor da justiça social permite que a "organização da sociedade crie estruturas que garantam a todos os cidadãos a oportunidade de desenvolver suas capacidades e de evoluir suas condições históricas". [80] Ora, essa idéia justifica a promoção de pessoas, que é o objetivo mais elevado das ações afirmativas, que aqui foram tratadas.

A quarta condição diz respeito à finalidade da norma. Em outras palavras: não se pode permitir qualquer compensação se não for com o objetivo explícito de igualar os sujeitos beneficiários com os demais, tendo em vista o marco teórico da justiça distributiva e compensatória como justificativas para a adoção de tais medidas. [81]

Devem-se rechaçar, nesse sentido, todas as formas de favoritismos exclusivistas. As ações afirmativas devem ser dirigidas para um público específico, historicamente desigual, para igualá-los com os demais. Qualquer ação que não permita esse desiderato - seja porque foi utilizada para desigualar e não igualar, seja porque foi utilizada por público que já estava incluído socialmente – não coaduna com a Constituição, com o ordenamento e com o conceito de justiça social.

Já a quinta condição está presente nas determinações expressas na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. Trata-se do critério da temporalidade. Efetivamente, considerando as características de caráter compensatório das medidas aqui estudadas, não se pode permitir que as ações sejam perenes no tempo.

Entende-se, assim, que terminados os efeitos da discriminação combatida, devem as ações findarem, pois não existiria mais razão de permanecerem, tendo alcançado seu objetivo. Nesse sentido, esse critério une-se principalmente à inteligência de um outro, qual seja: o da finalidade.

Sobre a autora
Carolina Reis Jatobá Coêlho

Advogada. Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília , pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional pelo IDP e pós-graduação lato sensu em Ordem Jurídica e Ministério Público, pela FESMPDF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COÊLHO, Carolina Reis Jatobá. Do princípio da igualdade à ação afirmativa.: A trajetória do direito à inclusão social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2899, 9 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19298. Acesso em: 23 nov. 2024.

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