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Estudos sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos.

De Westfália às Nações Unidas

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Agenda 03/07/2011 às 08:37

3. O Sistema das Nações Unidas

O surgimento das organizações internacionais se associa diretamente às transformações do cotidiano internacional ocorridas desde o final do século XIX.

Dentre as alterações aludidas acima merece especial atenção o reconhecimento pelos Estados da necessidade de cooperação recíproca, aumentando o nível de suas interdependências, direcionando a edificação de um novo quadro institucional destinado a facilitar as negociações e a condução das questões que ultrapassam o domínio de cada Estado. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 183).

Neste sentido a conceituação trazida pelos professores Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura (1999, p. 87), reveste-se de relevância para a compreensão do papel das organizações internacionais. Segundo os autores, "as Organizações Internacionais são associações voluntárias de Estados constituídas através de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns por intermédio de uma permanente cooperação entre seus membros".

A criação de duas organizações com amplitude internacional, em um primeiro momento a Sociedade das Nações, e, posteriormente a constituição da Organização das Nações Unidas simbolizaram os esforços para institucionalizar a sociedade internacional de forma bem mais dilatada do que se firmara na Europa no decorrer do século XIX. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 34).

É sobre o palco dos horrores da Segunda Guerra Mundial, visando quiçá não repetir os erros do início do século XX, que ganhou força a intenção de unir Estados em torno de um só corpo político ou jurídico, tendo como elemento comum, a imperiosa necessidade de buscar a colaboração interestatal de forma organizada.

Destarte, a semente plantada pela Carta do Atlântico em 1941 deu origem no ano de 1945, à Organização das Nações Unidas (ONU), que passou a existir como sucessora da SDN, obtendo desde seu início maior poder do que o gozado por sua antecessora, e, demarcando, com isso, o surgimento de uma postura de reedificação dos direitos humanos no pós-guerra.

Neste contexto, a Carta das Nações Unidas, tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas, traduzindo o anseio de seus Estados membros, em seu preâmbulo declara:

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis a humanidade e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres [...] E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais [...] Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco [...] concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, Preâmbulo, 2011)

O kantiano valor pedagógico dos horrores da guerra parecia determinar o discurso político das potências dominantes no período posterior a 1945. Estas se mostravam decididas a preservar suas próximas gerações dos horrores da guerra que por duas vezes, no breve espaço de tempo de uma vida humana, ocasionaram sofrimentos inexprimíveis à humanidade.

É justamente sobre tal panorama que se desenha o esforço de se reconstruir os direitos humanos, como paradigma referencial e ético da ordem internacional contemporânea. (PIOVESAN, 2010, p. 122).

Pode-se afirmar, ante o exposto até aqui, que a grande mudança no trato às questões de direitos humanos só veio a acontecer no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A partir dela, ou de sua herança, os direitos humanos passam a sofrer a internacionalização que, de fato, permite aos indivíduos se tornarem "cidadãos do mundo". É a partir deste marco que o processo de internacionalização recebe o fôlego decisivo à sua solidificação.

Os direitos humanos, ainda neste momento, passaram por uma multiplicação, aumentando a quantidade de bens dignos de tutela, e porque o homem começava a ser visto em sua especificidade ou na concreticidade de seus diferentes modos de atuar na sociedade.(BOBBIO, 1992, p. 68).

Nesta esteira, pode-se arrazoar que a consolidação do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos ocorre tão somente em meados do século XX, com a percepção dos males advindos do segundo conflito bélico mundial, precisamente em 1945, ao seu término.

Sobre este momento histórico, Piovesan (2010, p. 122) discorre que:

A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos.

A criação da ONU foi, neste sentido, o marco que verdadeiramente ofereceu aos direitos humanos um status internacional, digno de interesse e preocupações reais na seara global. (RODRIGUES, 2000, p. 26).

Rezek (2000, p. 210 e 211) aponta que até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não se podia afirmar com segurança que houvesse, em direito internacional, uma preocupação consciente e organizada sobre o tema dos direitos humanos, e, fazendo referência ao entendimento de Pierre-Marie Dupuy, deixa evidente que a Carta de São Francisco fez dos direitos humanos um dos axiomas da nova organização conferindo-lhes uma estrutura constitucional no ordenamento jurídico do chamado direitos das gentes.

Na mesma direção é o magistério de Fábio Comparato ao afirmar que:

A ONU difere da Sociedade das Nações, na mesma medida em que a 2ª Guerra Mundial se distingue da 1ª. Enquanto em 1919 a preocupação única era a criação de uma instância de arbitragem e regulação dos conflitos bélicos, em 1945 objetivou-se colocar a guerra definitivamente fora da lei. Por outro lado, o horror engendrado pelo surgimento dos Estados totalitários, verdadeiras máquinas de destruição de povos inteiros, suscitou em toda parte a consciência de que, sem o respeito aos direitos humanos, a convivência pacífica das nações tornava-se impossível. (COMPARATO, 2004, p. 210)

Pensamento que também é corroborado pelas palavras de Thomas Buergenthal (apud PIOVESAN, 2010, p. 121), para quem:

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse.

A Segunda Guerra Mundial, via da barbárie a que a comunidade internacional foi confrontada, convulsionou, por sua vez, a estrutura jurídica reinante, provocando, uma mudança de pensamentos jamais vista, e, desaguando no surgimento da Carta da Organização das Nações Unidas, assinada em São Francisco, nos Estados Unidos da América, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano.

Shiguenoli Miyamoto (2004, p. 43), acerca da importância das Nações Unidas, aduz que:

No clima de fim de guerra foi pensada e gestada aquela que se converteria na melhor experiência de instituição universal, envolvendo 51 governos signatários em 1945 e atingindo, ao final do século XX, a marca de quase duas centenas de membros. A Organização das Nações Unidas concretizou-se, portanto, almejando reunir os países do mundo com a finalidade, diz o preâmbulo de sua Carta, de "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra" e "manter a paz e a segurança internacionais.

É fato inegável que com o advento da Carta da ONU, os direitos humanos foram promovidos no âmbito internacional, provocando em seus Estados-membros o reconhecimento de que a proteção aos direitos humanos não podia mais se limitar à territorialidade estatal. Os direitos humanos, posteriormente a Carta, passavam a dizer respeito a toda comunidade internacional. "Se tornando cada vez menos matéria de jurisdição doméstica dos Estados".(MELLO, 2000, p. 822).

Em total consonância com o seu ideário constitutivo, o documento onusiano no afã de eliminar as incongruências e imperfeições da SDN, engendrou um novo modelo pautado na igualdade soberana dos Estados, na restrição do uso da força, na previsão de meios pacíficos para a resolução das controvérsias, no respeito aos cidadãos que vivem no interior das fronteiras nacionais e no reconhecimento da interdependência entre os Estados. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 198 e 199).

Abordando as novas preocupações onusianas, Simone Rodrigues expõe que a Carta de São Francisco:

[...] foi a peça central na proclamação de princípios e valores a serem compartilhados pela sociedade internacional, demarcando como pilares do sistema internacional a igualdade soberana, a integridade territorial, a independência política dos Estados, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção nos assuntos internos, a resolução pacífica dos conflitos, a abstenção da ameaça ou uso da força, o cumprimento das obrigações internacionais, a cooperação internacional e o respeito e a promoção dos direitos humanose liberdades fundamentais sem discriminação. (RODRIGUES, 2000, p. 45)

A Carta das Nações Unidas consolida, pelo demonstrado, o movimento de internacionalização dos direitos humanos, com o reconhecimento que as relações entre os Estados e seus nacionais superam a esfera estatal interna, tomando, a partir de então, proporções globais, sendo, com isto, objeto do direito internacional. (PIOVESAN, 2010, p. 135).

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Com isto pode-se inferir que a Carta fundadora da ONU, iniciou o processo de proteção internacional aos direitos humanos, despertando o seu reconhecimento como tema de preocupação mundial.

Para Thomas Buergenthal:

A Carta das Nações Unidas "internacionalizou" os direitos humanos. Ao aderir à Carta, que é um tratado multilateral, os Estados-partes reconhecem que os "direitos humanos", a que ela faz menção, são objeto de legítima preocupação internacional e, nesta medida, não mais de sua exclusiva jurisdição doméstica. (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2010, p. 137).

O exacerbado positivismo do século XIX que considerava os Estados os únicos sujeitos do direito internacional perde lugar, e, a partir de 1945, os documentos internacionais reconhecedores da qualidade de sujeito de direitos ao indivíduo ganham força, merecendo destaque o estatuto do Tribunal de Nuremberg e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 199).

Entretanto, ao lado de toda a preocupação da ONU e de sua Carta, suas disposições não trouxeram a imposição de medidas que freassem, de fato, o desrespeito aos direitos humanos, comportando em seu bojo apenas breves alusões aos direitos fundamentais, afirmando-se que estes devem ser favorecidos, desenvolvidos e encorajados. Triste e lamentável inércia se for levado a termo que se acabara de sair do holocausto. (BETTATI, 1996, p. 20).

Neste diapasão, a Carta de São Francisco em seu artigo 1º explicita suas aspirações do seguinte modo:

ARTIGO 1 - Os propósitos das Nações unidas são:

1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;

2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;

3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

(grifos nossos) (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011).

A estabilização dos princípios da proibição do uso da força e da não-intervenção no direito internacional também ocorreu neste momento, iniciando um processo de "governança global", posto em prática pelas Nações Unidas, dotado, segundo a lição de David Held, das seguintes características:

1.a comunidade internacional compõe-se de Estados soberanos unidos por denso sistema de relações institucionalizadas. Os indivíduos e coletividades são considerados sujeitos de direito internacional, mesmo que desempenhando papéis limitados;

2.as pessoas oprimidas por potências coloniais, regimes racistas e governos estrangeiros têm direito de exprimir livremente os seus interesses;

3.alastra-se a aceitação de standards e valores que se opõem ao princípio da efetividade do poder;

4.o direito internacional é renovado por novos procedimentos, regras e instituições;

5.princípios jurídicos inovadores orientam os membros da comunidade internacional permitindo o estabelecimento de direitos anteriormente inexistentes. Atenção especial é concedida ao tema dos direitos humanos, razão pela qual proliferam regras que compelem os Estados a respeitar direitos fundamentais;

6.a preservação da paz, a promoção dos direitos humanos e a busca da justiça social são prioridades da coletividade dos Estados;

7.as desigualdades interindividuais e interestatais dão origem à proposição de novas formas de governança da apropriação e distribuição dos recursos naturais e dos territórios. (HELD apud AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 200 e 201).

Com a Carta de São Francisco, resta clara a consagração diante do cenário mundial uma postura contrária ao jus ad bellum (direito à guerra), proibindo a utilização da ameaça e da força na seara internacional. Isto pode ser notado pela leitura da alínea 4 do seu segundo artigo, ao prever que:

Os membros da Organização, em suas relações internacionais, abster-se-ão de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os propósitos das Nações Unidas. (grifo nosso) (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011).

O artigo supracitado veda o recurso à força pelos membros da ONU não apenas contra os seus pares, mas sim contra qualquer outro Estado, membro ou não da Organização, vinculando, desta forma, toda a comunidade internacional, conforme a previsão do artigo 2º, alínea 6 da Carta das Nações Unidas, no qual a Organização se compromete a garantir que os Estados que não são seus membros atuem de acordo com os princípios edificados pela Carta, objetivando a manutenção da paz e segurança internacionais.

Pela primeira vez na história ocorre a proscrição da ameaça e do uso da força de um Estado em detrimento de outro.

A guerra, frente ao exposto, tornou-se um ilícito internacional e a Carta da ONU agindo com a cabível cautela aboliu a referência nominal ao termo guerra, preferindo utilizar os vocábulos ameaça ou uso da força, algo bem mais amplo e abrangente. (REZEK, 2000, p. 364).

Os Estados não mais podem fazer o uso da força em suas relações recíprocas, evoluindo para um sistema no qual a segurança coletiva é a prioridade. Inaugura-se, assim, o sistema de segurança coletiva sob os auspícios da Organização das Nações Unidas, pautado na busca incessante pela paz e segurança internacionais.

A vedação do uso da ameaça e da força no âmbito das relações interestatais toma o lugar de preceito a ser seguida pelos Estados, cabendo a eles respeitá-lo, sendo, no entanto admitidas três exceções à nova norma: a legítima defesa individual ou coletiva, as lutas pela autodeterminação dos povos, e, os casos em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas [6] entender ser necessário o recurso ao uso da força para a consecução dos ideais onusianos.

Ao mesmo tempo em que a guerra é banida dos debates internacionais, ganha espaço o não intervencionismo, como garantia da paz e da segurança internacionais. Neste sentido, a ONU em sua Carta, acatando o Princípio da Não-Intervenção, localizado no artigo 2º, alínea 7 dispõe que:

Artigo 2 - A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:

7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011).

O princípio supra colacionado possuía, já em sua origem, o intuito primordial de conter a influência das grandes potências frente aos países mais vulneráveis, evitando interferências arbitrárias dos mais fortes no seio daqueles considerados mais fracos, talvez se pautando nos ideais de teóricos do século XVIII.

A não intervenção é considerada corolário lógico do princípio da proibição do uso da força e é conquista dos países de "Terceiro Mundo", uma vez que estes foram os alvos das grandes potências nas intervenções perpetradas. As lutas colonialistas por independência e a introdução do princípio da autodeterminação dos povos num período onde o mundo era dividido em fronteiras artificiais, desenhadas por grandes potências coloniais, concretizou a defesa do direito de não-intervenção como um fator fundamental para que se preservassem as soberanias dos Estados em nascimento. (RODRIGUES, 2000, p. 102).

O princípio da não-intervenção tinha, para os países em desenvolvimento, três funções diferentes: manifestar oposição às pressões das antigas potências coloniais, conter a influência das grandes potências, e, garantir o processo de descolonização, evitando interferências externas indesejáveis, significando exatamente a defesa dos fracos contra os fortes, com o desígnio de afastar a ingerência do antigo colonizador, considerada ilegítima após a Segunda Guerra Mundial. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 225).

Nesta linha de raciocínio o princípio da não-intervenção que fora defendido por Immanuel Kant, ainda em 1795, com a publicação de seu ensaio "À Paz Perpétua", consagrando no seu quinto artigo preliminar que: "nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado" (KANT, 1995, p. 123), revigorava-se no século XX, através do artigo 2º, alínea 7 da Carta de São Francisco.

Em decisões proferidas, a Corte Internacional de Justiça impôs importantes contornos ao princípio da não-intervenção, de maneira especial, na análise do Caso Nicarágua envolvendo as atividades militares e paramilitares dos Estados Unidos da América naquele país na década de 1980, conforme se apreende do teor da sustentação da Corte, parcialmente reproduzido abaixo:

[...] ação em apoio de forças de oposição dentro de outro Estado pode constituir intervenção, mesmo se o próprio apoio é de um tipo não-militar; se tem caráter militar se limitando a um apoio indireto como o fornecimento de armas ou apoio logístico, pode constituir não só intervenção, constituindo também uma ameaça ilícita. (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986, (Tradução nossa), 2011, p. 14.)

Apresentando a seguinte conclusão:

O princípio da não intervenção envolve o direito de todo Estado soberano de conduzir os seus negócios sem interferência externa; embora exemplos de violação deste princípio não infreqüentes, a Corte considera que ele é parte e parcela do direito internacional costumeiro. [...] Entre Estados independentes, o respeito pela soberania territorial é um fundamento essencial das relações internacionais. [...] O princípio proíbe todos os Estados ou grupos de Estados de intervirem direta ou indiretamente nos assuntos internos ou externos de outros Estados. [...] A Corte considera, portanto, que o apoio dado pelos Estados Unidos [...] às atividades militares e paramilitares contra a Nicarágua, por intermédio de ajuda financeira, treinamento, fornecimento de armas, inteligência e apoio logístico, constitui uma violação clara do princípio de não intervenção. (International Legal Materials apud AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 229 e 230).

Em conformidade com a interpretação efetuada pela Corte Internacional de Justiça, nota-se que o princípio da não-intervenção desempenha fundamental função perante o sistema internacional, do que se pode retirar a máxima que se abster do uso de medidas coercitivas é componente primaz na definição do chamado dever de não-intervenção a que os Estados são obrigados pela Carta das Nações Unidas.

Ocorre que a questão não se resolve facilmente. A previsão de proibição da intervenção nos assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado sofre ressalva pela aplicação das medidas coercitivas esculpidas pelo Capítulo VII da Carta da ONU. A ingerência, portanto, só será considerada ilícita quando a força for empregada nas hipóteses não autorizadas pelo documento onusiano. Tal exceção ao princípio da não-intervenção encontra-se cercada de grande polêmica.

A dificuldade encontrada in casu reside em identificar quais assuntos são de domínio particular dos Estados, não podendo, por esta razão, sofrer a ingerência da Organização.

Sobre a interpretação deste controvertido tema:

Embora a Carta das Nações Unidas não autorize de forma expressa a intervenção relativa às matérias que se encontram essencialmente no domínio da jurisdição doméstica dos Estados, o dispositivo em questão não exclui a ação, interferência restrita, empreendida com o objetivo de executar os propósitos da Carta. (OPPENHEIM e LAUTERPACHT apud AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 226 e 227).

Desta forma, o disposto no artigo 2º, alínea 7 da Carta da ONU acaba por ruir frente à comprovação da existência de situações que ameacem à paz e a segurança internacionais, episódios que, caso ocorram, forçarão as Nações Unidas, através da atuação de seu Conselho de Segurança, a empreender ações de coerção, até mesmo armadas, em total harmonia com o disposto pelo Capítulo VII da Carta, a fim de que se mantenha ou restabeleça a ordem. O referido capítulo anuncia através de seu artigo 39 que:

O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz, ou ato de agressão e deverá fazer recomendações, ou decidir que medidas devam ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011).

Amaral Júnior esclarece que muito embora a Carta das Nações Unidas não tenha trazido qualquer menção explícita sobre o significado da expressão "medidas coercitivas", ela deixa a cargo do seu Conselho de Segurança as decisões que envolvam o uso de tais expedientes para se fazer atingir os propósitos da Organização. Faz parte da competência do Conselho de Segurança da ONU ditar os casos de ameaça aos fins onusianos, determinando as medidas capazes de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais, medidas estas, que podem estender-se às ações de natureza coercitivas, chegando-se às intervenções, pois a preservação da paz se sobrepõe aos interesses privados dos Estados. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 226).

Resta evidenciado, portanto, que a redação do artigo 2º, alínea 7, em sua primeira parte, buscou fazer uma limitação da atuação das Nações Unidas em relação aos temas que se inserem no rol de assuntos de competência privativa dos Estados, aferindo, concomitantemente, através de sua parte final, poderes ao seu Conselho de Segurança para coagir os Estados, nos casos em que ficar evidenciada a ameaça à paz e a segurança internacionais, reduzindo a questão à interpretação que o próprio Conselho realizar sobre as situações que chegarem ao seu arbítrio.

Verifica-se que, de fato, a ONU se ocupou da reconstrução das relações interestatais após os abalos sofridos nesta arena com os conflitos que permearam a primeira metade do século passado, inserindo em sua Carta princípios basilares que regeriam os diálogos em uma "nova" sociedade internacional, visando com isto a proteção dos direitos humanos por meio da manutenção da paz e da segurança internacionais.

No entanto, cabe advertir que os desejos imperiosos da igualdade soberana e da não-intervenção, algumas das forças motrizes dos criadores da Carta da ONU, voltariam a acometer os representantes de seus Estados associados em fins do século XX, demandando, pois, uma (re)interpretação de seus significados em um panorama bastante diferenciado do que se tinha há aproximadamente setenta anos.

Todavia, voltando ao problema que se estabelecia na década de 1940, a grande dificuldade encontrada pelas Nações Unidas concernia em oferecer credibilidade aos seus preceitos, notadamente em um solo pouco respeitado pelos Estados na ocasião de sua criação, qual seja o terreno dos direitos humanos.

Sob este prisma, no intuito de consolidar a novata organização que acabara de surgir, diversos aparelhos internacionais de proteção e promoção dos direitos iniciaram suas atividades no campo das relações jurídicas internacionais. Para o escopo desta investigação, destacam-se dois elementos de extrema relevância no cenário inicial de desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos, o Tribunal de Nuremberg e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Neste sentido, o Tribunal de Nuremberg, instituído pelo Acordo de Londres, de 1945, tinha por função precípua o julgamento dos criminosos de guerra pelos bárbaros abusos cometidos na Segunda Guerra Mundial, tendo competência para examinar os fatos cometidos ao longo do nazismo. Aplicou fundamentalmente o costume internacional em suas condenações à crimes reconhecidamente contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade, argumentando que o Direito da Guerra deve ser encontrado não apenas nos Tratados, mas nos costumes e nas práticas dos Estados, que gradualmente obtêm reconhecimento universal e ainda os princípios gerais de justiça aplicados por juristas e pelas Cortes Militares. Ressaltando que este direito aplicável encontra-se em contínua adaptação às necessidades de um mundo em mutação. (PIOVESAN, 2010, p. 124-127).

A importância do referido tribunal encontra-se intimamente unida ao valor que se passou a oferecer a aplicação dos costumes no direito internacional, especialmente em matéria da internacionalização dos direitos humanos, uma vez que em Nuremberg ocorreu, pela primeira vez na história, a condenação de um Estado no âmbito internacional, responsabilizando-o legalmente e politicamente, pelos fatos ocorridos dentro de seu território com os seus próprios nacionais, tomando de alicerce para tal decisão, a violação do direito costumeiro internacional pela Alemanha. (STEINER apud PIOVESAN, 2010, p. 128 e 129).

Há, via das contribuições de Nuremberg, uma alteração expressiva nas relações interestatais, sinalizando mudanças na compreensão dos direitos humanos, que, a partir das decisões do tribunal em comento, não mais poderiam ficar sujeitos exclusivamente à jurisdição doméstica dos Estados. (PIOVESAN, 2010, p. 129).

Igualmente, objetivando aumentar a eficácia da Carta de São Francisco, entre os anos de 1946 a 1948 a Assembleia das Nações Unidas desenvolveu trabalhos com o desígnio de consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. (PIOVESAN, 2010, p. 141).

Surge assim, após cerca de três anos de trabalho, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, considerada o marco de criação do chamado "Direito Internacional dos Direitos Humanos".

A este respeito o comentário de Fábio Comparato (2004, p. 225) é emblemático ao sublinhar que:

Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Também em uma esteira de reconhecimento do papel de destaque da Declaração de 1948, Flávia Piovesan (1998, p. 78) discorre:

A Declaração surgiu como um código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados. Ela demarca a concepção inovadora de que os direitos humanos são direitos universais, cuja proteção não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional.

Ainda sobre o tema, faz-se pertinente o pensamento de Norberto Bobbio, assegurando que:

a Declaração afirma os direitos de forma universal, no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; e positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado.(BOBBIO, 1992, p. 30).

Entendimento também compartilhado por René Cassin, considerado um dos pais da Declaração de 1948, ao afiançar que:

esta Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude, compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide. (CASSIN apud PIOVESAN. 2010, p. 141).

No que se relaciona à força jurídica que o documento agrega, muito embora se perfilhe o valor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, há, ainda, resistências em reconhecer força jurídica vinculante a ela, pois não se trata de um tratado ou acordo internacional, o sendo uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, sem apresentar força de lei. Pode-se afirmar, inclusive, que tecnicamente ela é uma recomendação feita pela Assembleia Geral da ONU aos seus membros. No entanto, Comparato (2004, p. 224) grifa que "esse entendimento, porém peca por excesso de formalismo".

A par disso, muitos doutrinadores entendem que a Declaração possui sim força vinculante, na medida em que foi arquitetada como a interpretação autorizada da expressão "direitos humanos", presente na Carta da ONU, além de fazer parte do direito costumeiro internacional e dos princípios gerais de direito. (PIOVESAN, 2010, p. 148 e 149).

Ratificando o posicionamento favorável à força vinculante do documento de 1948, o próprio Estatuto da Corte Internacional de Justiça, em seu artigo 38 reconhece que o direito internacional é também constituído pelos costumes e pelos princípios gerais de direito. (COMPARATO, 2004, p. 224).

Conclui-se, destarte, que a Declaração em tela se estabeleceu como um código de atuação e de conduta dos Estados que fazem parte da comunidade internacional, tendo como significado basilar a consagração do reconhecimento universal dos direitos humanos, solidificando uma diretriz internacional para a proteção desses direitos, e, com impacto nas ordens jurídicas nacionais e internacionais. Na esfera interna, à medida que os direitos previstos por seu texto têm sido incorporados por Constituições Nacionais, servindo, não raras vezes, como fonte para decisões judiciais nacionais. No plano internacional, os seus escritos têm estimulado a preparação de instrumentos direcionados à proteção dos direitos humanos, sendo, inclusive, referência para a adoção de resoluções no domínio das Nações Unidas. (PIOVESAN, 2010, p. 151 e 152).

Pode-se dizer que, finalmente, o nível de abstração das aspirações iniciais do século XVII, foi ultrapassado, desaguando em um panorama onde se constroem garantias jurídicas do cumprimento dos direitos do homem, até mesmo contra o próprio Estado que os violar.

Significativa ilustração do momento vivido pode ser retirada da redação do artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: "Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados" [7].

Da leitura do dispositivo colacionado acima emana o entendimento de que o significado da institucionalização dos direitos humanos tanto na ordem interna dos Estados, quanto no campo internacional, ganha ênfase, fazendo com que esses direitos sejam protegidos e tutelados numa esfera erga omnes.

A caminhada para se chegar ao nível de proteção internacional que os direitos humanos atingiram na atualidade foi bastante árdua, passando pela elaboração dos Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, em 1966, com a finalidade precípua de contemplar uma categoria mais ampla de direitos individuais do que os estampados pela Declaração dos Direitos do Homem de 1948, conferindo também uma maior gama de deveres aos Estados em busca de uma mais eficaz promoção e proteção da dignidade humana.

Dentre os direitos trazidos pelo primeiro encontram-se os direitos à vida, à igualdade perante a lei, à proibição da tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, à expressão e religião, ao voto e à liberdade de associação. Já em relação ao segundo, merece maior ênfase entre o rol de direitos consagrados aqueles relacionados à produção, distribuição e consumo de riquezas, assim como os direitos à educação, ao trabalho e justa remuneração, o direito à previdência social, à saúde e o direito à participação da vida cultural. (PIOVESAN, 2010, p. 178).

A aplicação dos dois novos instrumentos deveria ter sido imediata, pela urgência de suas propostas, no entanto, só iniciaram sua vigência no ano de 1976, quando o número de ratificações necessárias para tanto foi atingido. (PIOVESAN, 2010, p. 164).

No mesmo sentido, visando a proteção da dignidade humana, no entanto, sob o prisma da especificidade dos mais variados sujeitos humanos, inúmeras convenções foram adotadas pela comunidade internacional, merecendo especial menção a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948), a Convenção Internacional contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis e Degradantes (1984), a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (1979) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).

Também integram a jornada em prol da cobertura internacional dos direitos humanos, os chamados sistemas regionais de proteção, atuando sob o olhar atento das Nações Unidas, via da formulação de recomendações, estudos, pareceres e solicitações dirigidas aos governantes dos Estados no intuito de verificar o cumprimento das obrigações assumidas em questões de direitos humanos. Nesta seara têm importante papel o sistema interamericano por meio da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José, a Convenção Europeia, via de sua Corte e de sua Comissão de Direitos Humanos, e, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos.

Mais recentemente, no ano de 2006, em substituição à Comissão de Direitos Humanos, órgão responsável, dentre outras realizações, pela elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, erigiu o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, com a incumbência de promover o respeito universal dos direitos humanos e liberdades fundamentais, através da formulação de recomendações cabíveis em situações de violações desses direitos. (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 498).

Ante ao demonstrado, o recorte histórico adotado, partindo da formação dos primeiros Estados Nacionais Europeus, passando pelos acontecimentos que impulsionaram a ascensão e internacionalização dos direitos humanos, com destaque para o papel da Organização das Nações Unidas neste processo, é o ideal para que se possa compreender o árduo caminho percorrido pelos direitos humanos, desde a sua origem, alicerçada na luta das classes pelo poder, até o desaguar em um ambiente no qual se eleva cada vez mais o discurso da urgente necessidade de elevação dos direitos humanos mundo afora, em detrimento da manutenção da clássica noção de soberania e de outros dogmas do direito internacional, antes inflexíveis, entalhados na Carta de São Francisco.

Muito embora a proteção da dignidade humana no campo internacional tenha evoluído, ainda são avistadas inúmeras dificuldades em sua propagação, uma vez que os desafios não são poucos quando se encontram em pauta questões tão controversas aos Estados, mesmo na contemporaneidade, como a aceitação dos direitos humanos como algo universal a todos os povos e o intervencionismo como instrumento de garantia e restabelecimento dos direitos de seus próprios concidadãos, quando violados.

Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Estudos sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos.: De Westfália às Nações Unidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2923, 3 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19427. Acesso em: 23 dez. 2024.

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