INTRODUÇÃO
O direito não é estanque. É dinâmico, inovador. Não pode ser estudado sem o alcance desse dinamismo. O entendimento de sua essência ou natureza, bem como de suas necessidades, explicações e modificações, não pode ocorrer de forma isolada. O direito não é justiça, nem é coação, também não é apenas a norma. O direito positivo, estatalizado, não pode ser estudado em si e por si, mas somente com ajuda de outros ramos do conhecimento. Os saberes inseridos na antropologia, na sociologia, na filosofia, na história, devem ser levados em conta se o estudo científico do direito tende a ser favorável. Afinal, o direito não é puro, nem pode ser estudado com pureza metodológica.
A Teoria Pura do Direito (TPD) de Hans Kelsen teve por meta esquecer a afirmação acima. De sua análise e conclusões, o direito se resumia apenas aquele previsto no ordenamento jurídico, porquanto deixou de lado todo e qualquer elemento informal por não admiti-lo como influenciador e formador do direito. Esses elementos foram afastados tanto em relação ao direito em si quanto ao seu método de estudo. Para Kelsen, o direito não poderia sofrer qualquer tipo de ingerência de outros ramos do conhecimento, sendo entendido como norma estatal e aplicação da norma estatal, ou seja, somente poderia ser explicado por outra norma estatal. Justificava que o direito era a norma pela norma e a norma para a norma. Nada mais. E, entenda-se, para Kelsen norma era igual a lei. Na verdade, o que tentou fazer foi isolar o direito da sociedade e de qualquer movimento estranho a atividade do Estado. Para Kelsen, não importava o direito natural, mas apenas o direito positivo, jurídico.
O direito, de acordo com a teoria pura, se confunde com o Estado, tanto na sua produção quanto na sua aplicação. Dentre seus muitos elementos, a teoria pura do direito apresenta como pontos cruciais os seguintes: sua anti-ideologia, a fusão do direito com o estado, a ausência de valores como a moral e a justiça, o escalonamento das normas, a interpretação das normas e a norma hipotética fundamental. O que dizia Kelsen sobre esses diversos temas deve ser levado em conta, pois a soma desses aspectos forma a espinha dorsal de sua teoria.
Restava saber, então, se este apego ao direito positivo responderia satisfatoriamente as questões que envolvem o direito. Ao partir da idéia firme de que o direito é apenas o positivo, sem qualquer possibilidade de cogitar o contato e a influência recebida de outro ramo, Kelsen teve de elaborar inúmeras saídas na tentativa de explicar e justificar sua teoria. Estas saídas envolvem, em especial, a produção e o escalonamento das normas, e o fundamento último do direito. Mas nenhuma delas, sem a admissão das demais fontes do direito, diversa da lei, se mostrou apta para explicar favoravelmente a essência, a produção e a aplicação do direito.
Estudar Kelsen é relevante na medida em que sua teoria, ainda hoje, permeia as mentes daqueles que insistem em resumir o direito a lei, que lhe destinam um tecnicismo absurdo e incompatível com a sua verdadeira natureza. [01] O ensino jurídico formador de meros legalistas, a desumanização do direito, o não suprimento das lacunas do ordenamento e o não atendimento das demandas sociais na velocidade por elas exigida, haja vista a inexistência de lei, tudo com o objetivo de dar ao direito uma cientificidade exata que a ele não é possível alcançar, foram, e ainda são, conseqüências do purismo metodológico. Entender e demonstrar se o purismo kelseniano tem pertinência, bem como suas insubsistências, formam o problema e os objetivos do presente trabalho.
1. CIÊNCIA, MÉTODO E TEORIA
Para estudar a teoria pura do direito é preciso entender alguns conceitos indispensáveis, pois estes figuram como pano de fundo da discussão. Por se tratar de uma teoria, indispensável é entender o que é uma teoria. Como aplicou um método, não se pode deixar de lado o entendimento do que é um método e como se chega a uma metodologia. E como Kelsen pretendeu explicar o direito como ciência, também se torna cabível abrir espaço para discutir um pouco sobre o conceito de ciência.
O cientista, pesquisador, estudioso ou o sujeito cognoscente, ao se debruçar sobre seu objeto de estudo busca a resposta a alguma pergunta em busca do cumprimento de metas. Pode ser o de descobrir alguma coisa, aprimorar alguma coisa ou explicar alguma coisa. Para atingir esses objetivos, o sujeito deve estabelecer os seus métodos, isto é, como ele conseguirá alcançar o sucesso em seu estudo científico. Tendo alcançado sua meta, o sujeito poderá dizer, então, qual é a sua metodologia, conceituá-la, defini-la e especificá-la. Por meio dela dirá a forma como chegou ao seu objetivo. A meta do cientista não é dizer os porquês, ou seja, os fundamentos de suas perspectivas em relação ao objeto estudado, mas sim dizer como chegou até ele.
Feito esse breve comentário, trata-se agora do que é ciência. Etimologicamente, o vocábulo ciência tem por significado estar ciente de algo, saber ou ter conhecimento da existência e da essência de algo ou de alguma coisa. O termo, porém, é usado para elevar um determinado conhecimento a uma categoria elevada, supostamente inatingível e aparentemente inquestionável. Com base nisso, há a definição de ciência como o "conjunto organizado de conhecimentos relativos a certas categorias de fatos ou fenômenos". [02]
Hilton Japiassú e Danilo Marcondes definem ciência, pelo critério do rigor metodológico, como sendo o "saber metódico e rigoroso, isto é, um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados, e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino". Pelo critério objetivo, sua meta é "propor uma explicação racional e objetiva da realidade". E concluem: [03]
É a forma de conhecimento que não somente pretende apropriar-se do real para explicá-lo de modo racional e objetivo, mas procura estabelecer entre os fenômenos observados relações universais e necessárias, o que autoriza a previsão de resultados (efeitos) cujas causas podem ser detectadas mediante procedimentos de controle experimental.
Não se pode deixar de observar o conservadorismo e a tradicional tendência de se entender e definir ciência como forma de explicar algo no molde da exatidão. Mas o dogma da ciência exata está em desuso e em completa decadência diante dos fatos, que mostraram que nada é exato, que tudo pode evoluir, posto que a certeza não é da natureza da ciência. A experiência mostrou, por conseguinte, que a exatidão como critério da ciência não mais deve persistir existe. Mesmo as ciências ditas exatas admitem suas modificações, o que gerou o que se designa como "crise da ciência".
Nos primórdios, o conhecimento científico se limitava a filosofia. Não havia ciência. No fim da idade média, ciência e filosofia se separam e nascem duas ciências: as naturais– biologia, física, química, que perduram até o final do século passado, e as humanas que surgem na metade do século XX, cujo estudo é centrado no homem e não mais na natureza – sociologia, direito, antropologia. Haviam três espécies bem definidas de ciência: descritiva (de mera descrição), explicativa (dizer os motivos e fundamentos) e da conjectura (passou a fazer previsões).
A ciência passa, hoje, inexoravelmente, por estas três espécies, sendo a uma ciência criativa, produtiva. A ciência não é mais permanente, à semelhança da filosofia. As vezes não se sabe hoje se o cientista está fazendo ciência ou filosofia. Tendem a se confundir. Diante disso, não é mais correto dizer que há ciência, mas sim estudos científicos, porquanto essa designação, por ser mais aberta, indica melhor a forma de se chegar ao conhecimento. Isto porque, antes a ciência não questionava, não se fundamentava, não buscava suas razões. A ciência perdeu a segurança ou a exatidão que tinha. Daí ser mais adequado e apropriado não mais chamar de ciência um determinado ramo do conhecimento, mas sim de estudo científico, pois este trabalha sob o constante olhar crítico, questionador e que busca sempre o falseamento de suas conclusões. Não se baseia na definitividade, nem no dogma, nem na certeza. Para ser cientifico, no entanto, o estudo deve delimitar seu objeto e definir sua metodologia. Envolve o ato de desvendar aquilo que é, e desvendar aquilo que pode ser.
A ciência, então, é um procedimento, um processo de descoberta, descrição, aprimoramento e de absorção de conhecimentos. Pode-se dizer, com isso, que nada é, por definição, "ciência". Tudo (qualquer coisa) pode ser estudado cientificamente, ou seja, por um processo de ciência. A prática somente é exigida para provar o estudo científico, mas não para elaborar a teoria. Assim, ao se cogitar das ciências teóricas em face das ciências práticas é possível concluir que podem haver estudos científicos que unem as duas coisas, mas pode haver também a ciência fraudada, manipulada com dados irreais ou inexistentes. Sua teoria pode ser falha, sem amparo na realidade, sem fundamento.
Logo, se deve pontuar que ciência não é sinônimo de exatidão, pois implica, isto sim, um processo de estudo e de absorção de conhecimento que pode ser demonstrado cientificamente, eis que não existe algo, objeto ou fenômeno que se possa chamar de ciência.
Essa cientificidade, por sua vez, advém do método. A importância do método reside no fato de que é ele que qualifica o saber. E um estudo é científico por intermédio do método utilizado. O bom cientista não aplica mais um método específico, pois seu caminhar é pautado sobre o estudo daquilo que aparece no processo. Isso permite a conclusão de que qualquer coisa pode ser estudada cientificamente. [04]
No dizer de Japiassú e Marcondes, método é o "conjunto de procedimentos racionais, baseados em regras, que visam atingir um objetivo determinado". [05] O método implica no meio ou nos meios utilizados, como caminhos adotados, com regras conhecidas e escolhidas racionalmente, cujo traçado visa chegar a um conhecimento cientifico. O método, portanto, conforme já frisado, qualifica o conhecimento, possibilita a identificação dos procedimentos adotados para as conclusões apresentadas e serve de base para se dizer da validade racional do saber exposto. Pelo método utilizado é possível fazer um juízo de aceitação das conclusões, da adequação do conhecimento exposto aos pressupostos de cientificidade e sua observância empírica. A essa investigação relativa aos fundamentos e validade dos métodos dá-se o nome de metodologia. Ressalta-se que mais de um método pode ser utilizado, pois o que importa é a chegada ao objetivo final.
A teoria, por sua vez, é a explanação do conhecimento científico composta pela delimitação do objeto perseguido, a explicação da escolha e da aplicação dos métodos, cuja validade deve ser atestada pela metodologia, e a exposição das conclusões tiradas que explicam abstratamente o fenômeno estudado. Essa explanação expressa especulativamente o conhecimento científico, não se preocupando com a prática. [06]
Entendidos os vocábulos ciência, método e teoria, passa-se a análise das disposições da Teoria Pura do Direito (TPD) de Hans Kelsen. Nela encontra-se uma teoria resultante da delimitação de um objeto de estudo e do uso de um método, que resultou num conhecimento que pretendeu ser cientifico. Chamamos de pretensão, porquanto o olhar de Kelsen sobre o direito não buscou estudá-lo cientificamente, mas sim de torná-lo uma ciência exata, um dogma, pois não permitia questionamentos, nem o cruzamento de dados e conhecimentos. Além disso, sua metodologia procurou um isolamento incompatível com seu objeto de estudo, haja vista que desprezou os diversos elementos que apareceram no caminho.
2.KELSEN E SUA TENTATIVA DE DAR CIENTIFICIDADE AO DIREITO
O objeto de estudo de Kelsen foi o direito. O método aplicado foi o indutivo, segundo o qual "uma lei geral é estabelecida a partir da observação e repetição de regularidades em casos particulares.[...], fornece, no entanto, razões para a sua aceitação, que se tornam mais seguras quanto maior o número de observações realizadas". [07] Mas ele também usou o método dedutivo, especialmente para amparar a Norma Fundamental Hipotética (NFH).
Da soma dos métodos indutivo e dedutivo, feita por Kelsen, surgiu o purismo metodológico, ou seja, o isolamento do direito positivo de todos os demais ramos do conhecimento para justificar as suas conclusões, que asseverou que o fundamento da norma residia em outra norma. Sua tentativa foi de tornar o direito auto-suficiente, concentrado apenas em seu aspecto jurídico, ou seja, o direito positivo pelo próprio direito positivo, mantido longe de qualquer valoração ou "impurezas" que viessem a lhe influenciar. Por seguir a linha do conceito tradicional de ciência, que predominava em sua época, Kelsen desejava indicar e provar a exatidão do direito positivo por meio de sua pureza.
O próprio Kelsen define a sua pretensão com a Teoria Pura do Direito:
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. [...] Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, que única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. [...] propõe garantir um conhecimento apena dirigido ao Direito e excluir desde conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. [08]
Note-se que, de acordo com o próprio autor, a TPD se circunscreveu ao entendimento do direito positivo, ou seja, das leis, e à elaboração de mecanismos de interpretação, que procurava explicar o direito pelo próprio direito, ao usar como método a sua purificação pelo isolamento em relação a qualquer outro elemento alheio ao que é estritamente jurídico. Sua pretensão, portanto, foi de explicar e tornar o direito uma ciência exata, com estudo e efeitos estritamente jurídicos, positivados pelo Estado, e sem levar em conta qualquer outra influência externa à vontade do Estado. Ao desenvolver esse intento, as conclusões de Kelsen o levaram a identificar a essência do direito em desacordo com a realidade.
A influência sobre Kelsen da idéia de ciência confundida com certeza fez com que sua preocupação fosse de provar que o direito é uma ciência dentro dos moldes de exatidão da época. Em seu tempo, ou a ciência era exata ou não era ciência. Daí a sua pretensão em tornar o direito uma ciência humana exata, com o afastamento do direito natural e a não admissão de que o direito pode ser produzido e fundamentado em esfera diversa da estatal.
A TPD não se ocupa da origem ou do fundamento do direito, conforme admite seu autor:
A Teoria Pura do Direito limita-se a uma análise estrutural do Direito positivo, [...]. Portanto, o problema da origem do Direito – [...], ultrapassa o escopo desta teoria. São problemas da sociologia e da história e, como tais, exigem métodos totalmente diferentes dos de uma análise estrutural de ordens jurídicas dadas. [...] A Teoria Pura do Direito trata o Direito como um sistema de normas válidas criadas por atos de seres humanos. É uma abordagem jurídica do problema do Direito. [...] É evidente que o pensamento jurídico difere do pensamento sociológico e histórico. A "pureza" de uma teoria do Direito que se propõe uma análise estrutural de ordens jurídicas positivas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que exijam um método diferente do que é adequado ao seu problema específico. O postulado da pureza é a exigência indispensável de evitar o sincretismo de métodos, [...]. [09]
Conforme se observa, a teoria de Kelsen enfrenta apenas a questão da validade do direito, e deixa clara que sua análise se baseia na estrutura, ou seja, na estrutura estatal das normas, pura e simplesmente. Sua teoria era positivista e formalística, resultado da aplicação do método indutivo e isolador.
Exposta a pretensão de Kelsen com a sua Teoria Pura do Direito, passa-se ao estudo de seus aspectos mais relevantes. O problema, portanto, a que se pretende enfrentar no presente trabalho é analisar se o purismo do direito tem procedência e pertinência, além de indicar seus efeitos sobre o pensamento jurídico.
3.ASPECTOS DA TEORIA PURA DO DIREITO
Hans Kelsen nasceu na cidade de Praga no ano de 1881, tendo falecido no ano de 1973. "Mesmo sem pertencer diretamente ao Círculo de Viena Kelsen é considerado um dos seus expoentes". [10] Sua Teoria Pura do Direito foi escrita em 1933. Seus estudos foram realizados durante o período da filosofia contemporânea, motivo pelo qual recebeu influencia do pensamento kantiano, especialmente da A metafísica dos costumes, em que Kant expôs sua visão do direito e das leis, em relação ao "ser" e ao "dever ser", bem como acerca do direito natural e do direito positivo. Além disso, a doutrina kantiana traz consigo o apriorismo, [11] cujo teor será utilizado por Kelsen no desenvolvimento de sua teoria, notadamente no que diz respeito a norma fundamental hipotética.
Acerca das leis positivas e das leis naturais, que correspondiam ao direito positivo e ao direito natural, respectivamente, a posição de Kant mostra seu apriorísmo dedutivo que justificava a autoridade do legislador para impor leis positivas. Essa autoridade vinha antes, a priori, com base nas leis naturais:
[Leis Positivas e Naturais] Leis Obrigatórias para as quais é possível uma Legislação externa são chamadas, em geral, de Leis Externas. As Leis Externas, cuja obrigatoriedade pode ser reconhecida a priori pela Razão sem uma Legislação externa, são chamadas de LEIS NATURAIS. As leis que não são obrigatórias sem uma efetiva Legislação Externa são chamadas de LEIS POSITIVAS. Portanto, é concebível uma Legislação Externa contendo Leis Naturais puras; neste caso, porém, deve-se pressupor uma Lei Natural prévia para estabelecer a autoridade do Legislador pelo Direito de submeter outros à Obrigação mediante sua mera vontade.
O Sistema de Direitos, visto como um Sistema Científico de Doutrinas, é dividido em DIREITO NATURAL e DIREITO POSITIVO. O Direito Natural assenta-se sobre Princípios racionais puros a priori; o Direito Positivo ou Direito Estatutário é o que provém da Vontade de um Legislador. [12]
Quanto ao "dever ser", Kant o entendeu como originado do Imperativo Categórico que vinha de uma lei universal representada por meio de uma ordem para o indivíduo:
O Imperativo Categórico apenas expressa, de maneira geral, aquilo que constitui Obrigação. Pode ser exprimido pela seguinte Fórmula: "Aja de acordo com uma Máxima que pode ser válida, ao mesmo tempo, como uma Lei Universal". [...] O Princípio do Dever é aquilo que a Razão estabelece de maneira absoluta e, por conseguinte, objetiva e universal na forma de uma Ordem para o individuo, sobre como ele deve agir. [13]
A autoridade consubstanciada na "vontade do legislador" para estabelecer um "dever ser", justificadora do direito positivo puro, e o uso da razão a priori como justificativa da norma fundamental hipotética, se mostraram pensamentos imensamente influenciadores da teoria pura do direito. O ponto discordante reside em que a TPD de Kelsen não admitia as leis naturais como fundamento do direito, pois negava o imperativo categórico originado de uma lei universal. Neste ponto, Arnaldo Vasconcelos ensina:
A fim de definir e situar o caráter proposicional da norma jurídica, parte Kelsen da distinção básica entre o mundo do ser, regido por leis de causalidade, e o mundo do dever ser, que se formula por meio de regras ou leis de liberdade. [...] Em oposição ao juízo categórico, pertinente às coisas do mundo do ser, o dever ser normativo reveste a forma de um juízo hipotético. [...] Para Kelsen, pois, a norma jurídica é um juízo hipotético, pelo qual se figuram determinadas situações fáticas e a conseqüências que se espera delas advenham. Em termos mais concretos: um simples instrumento para descrição do Direito positivo, tal como estabelecido pelas autoridades competentes. [14]
Apesar de encontrar apoio de certo modo na doutrina kantiana, Kelsen não admitiu o imperativo categórico e a causalidade que rege o mundo do ser, cujo teor seria incompatível com sua teoria pura. De fato, o purismo kelseniano tentou demonstrar que o direito não se ampara na natureza nem na causalidade. No dizer de Antonio Carlos Wolkmer:
No seu esforço de tentar salvar a objetividade do pensamento científico e, por conseqüência, o discurso jurídico positivista, Kelsen recorre a um seguro sistema dogmático, solidificado no substrato da lógica formal, erradicando toda sustentação da base social e prática política. Não lhe interessam o conteúdo, as relações e as contradições sociais que informam os padrões normativos. [15]
Pelo purismo metodológico, o direito partia do estabelecimento de uma prestação, cujo não cumprimento geraria as conseqüências coativas. Assim, para Kelsen o direito era hipotético e coativo, pois sempre partia da ilicitude e sua expressão se dava somente por meio da norma jurídica estatal. O direito era personificado no Estado e fundamentado numa norma hipotética. Discorre-se acerca de alguns aspectos da Teoria Pura do Direito.
De acordo com a teoria pura, o direito não poderia se misturar com a moral, já que não há uma moral absoluta. Também não se confundiria com a justiça e com a ética, porquanto a noção de justo e de ético não existe de modo uniforme, mas sim variável. Com isso, ao direito não cabe se preocupar com o que é moral, justo e ético, pois sua função é de apenas conhecer e descrever a ordem normativa. [16]
Sobre seu aspecto ideológico e positivista, e sua pretensão de cientificidade, discorre Hans Kelsen sobre a sua teoria pura:
A Teoria Pura do Direito tem uma pronunciada tendência antiideológica. Comprova-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo, manter este isento de qualquer confusão com o Direito "ideal" ou "justo". Quer representar o Direito tal como ele é, e não como ele deve ser: pergunta pelo Direito real e possível, não pelo Direito "ideal" ou "justo". Neste sentido é uma teoria do direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o direito positivo. [...]. A Teoria Pura do Direito surge em aguda contradição com a ciência jurídica tradicional que – consciente ou inconscientemente, ora em maior ora em menor grau – tem um caráter "ideológico", no sentido que acaba de ser explicitado. Precisamente através desta tendência antiideológica se revela a Teoria Pura do Direito como verdadeira ciência do direito.
Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento, nasce de certos interesses, melhor, nasce de outros interesses que não o interesse pela verdade.
Uma tal ciência jurídica é o que a Teoria Pura do Direito pretende ser. – Grifo aditado. [17]
A justiça, a moral e a ética são ideais, principalmente a justiça, e representam situações almejadas pelo mundo em geral, pois é do desejo de todos que imperasse o justo, o moral, o ético. Em sua teoria pura, no entanto, Kelsen não admite que o direito seja influenciado por tais ideais, que são inalcançáveis. A teoria pura procura demonstrar o direito tal como ele é, não como deveria ser. Assim, a teoria pura é anti-ideológica, pois retrata o direito como algo frio e sem vida, cuja produção e aplicação ocorrem por meio de leis escritas e produzidas legislativamente. Não se preocupa em consertar o mundo, mas tão-somente refletir fatos, nem se preocupa se tais costumes são justos, morais ou éticos. [18]
No que diz respeito a sua anti-ideologia, Antonio Carlos Wolkmer aborda o seguinte aspecto:
Hans Kelsen [...] se propõe a erradicar todo e qualquer tipo de "juízo ideológico". Partindo da dicotomia neokantiana de "ser/dever-ser", "natureza/cultura" e "causalidade/imputação", bem como tendo presente o conceito pejorativo de ideologia estabelecido por Marx e seus seguidores, Kelsen proclama sua "ciência do direito" como pura e naturalmente anti-ideológica.[...] A comprovação de sua isenção ideológica está no fato de que o Direito Positivo trata do Direito real e possível, ou seja, do Direito como ele é exatamente, e não como deve ser, próprio, neste caso, de um Direito "ideal" ou "justo". [...] seu objeto é unicamente as normas jurídicas em seu aspecto geral e não particular, desprovidas de interesses políticos e juízos ideológicos.
Desde Marx, [...], a "ideologia" vem abrangendo dois sentidos: como sistema teórico de idéias de justificação e legitimação (Destutt de Tracy) e como conseqüência falsa, ilusão mítica e distorção do mundo. [...] Assim, para diferenciar a "neutralidade" de sua teoria do Direito, proclamada como ciência purificada, Kelsen emprega um conceito estreito e pejorativo de ideologia. [19]
Desse modo, a ideologia atacada por Kelsen era de qualquer natureza, pois seu objetivo era retirá-la totalmente do direito. Ao fazer a junção dos vários aspectos da Teoria Pura do Direito, apresentam-se a definição de Arnaldo Vasconcelos e Chaïm Perelman:
Das concepções até agora examinadas, a única declaradamente monista é esta de Hans Kelsen. Identifica-se Direito com Direito positivo estatal, ou mais precisamente: Direito com Estado. Só existe Direito com positividade e essa decorre, tão-somente, do Estado. A soberania torna-se a fonte exclusiva de criação do Direito. É normativista a teoria, porque o Direito se reduz à norma jurídica. Ao conjunto hierárquico destas dá-se o nome de ordenamento jurídico. [20]
A teoria pura do direito, tal como Kelsen a elaborou, deveria, para permanecer científica, eliminar de seu campo de investigação qualquer referência a juízos de valor, à idéia da justiça, ao direito natural, e a tudo o que concerne à moral, à política ou à ideologia. A ciência do direito se preocupará com condições de legalidade, de validade dos atos jurídicos, com sua conformidade às normas que os autorizam. [21]
Entendida a teoria pura em seus aspectos gerais, passa-se à abordagem da organização do ordenamento, a aplicação do direito, a norma fundamental hipotética e a coação como da essência do direito.
3.1 Escalonamento e aplicação do direito
Para justificar sua teoria, que era baseada na identidade do direito com o Estado, Kelsen precisava imaginar uma organização normativa que apresentasse o fundamento do direito, mas principalmente que impedisse a entrada, no ordenamento, de qualquer fator estranho ao que era estatal, ou seja, ao que era estritamente jurídico. Esta organização, portanto, deveria estar impermeabilizada para evitar a entrada de elementos que trouxessem impurezas à ordem jurídica, porquanto o direito não era condizente com nenhuma outra influência que não fosse a lei.
Kelsen pensou assim o sistema normativo:
A ordem jurídica de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas legais. Em forma bastante simplificada, apresenta o seguinte retrato: o nível mais baixo é composto de normas individuais criadas pelos próprios órgãos aplicadores do Direito, especialmente os tribunais. Essas normas individuais são dependentes dos estatutos, que são as normas gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário, que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica. Esses estatutos e regras de Direito consuetudinário, por sua vez, dependem da constituição, que forma o nível mais elevado da ordem jurídica considerada como sistema de normas positivas. Normas "positivas" são normas criadas por atos de seres humanos. [...]. Então, as normas da constituição não recebem sua validade de alguma norma jurídica positiva, mas de uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico, a norma fundamental hipotética. [22]
A criação da Constituição realiza-se por aplicação da norma fundamental. Por aplicação da Constituição, opera-se a criação das normas jurídicas gerais através da legislação e dos costumes; e, em aplicação destas normas gerais, realiza-se a criação das normas individuais através das decisões judiciais e das resoluções administrativas. [23]
Da referida definição surgiu a chamada "pirâmide normativa de Kelsen", porquanto a base do ordenamento, mais larga, comporta as leis positivas mais gerais, o que inclui as decisões dos tribunais. Ao passo que afunila, a pirâmide chega ao seu topo, onde se encontra a constituição. O fundamento de todo o ordenamento, o que inclui a própria constituição, é a norma fundamental hipotética.
Das palavras de Kelsen, acima reproduzidas, nota-se claramente que ele considerava a norma fundamental hipotética como não produzida por ato de seres humanos. Ao dizer que "normas positivas são normas criadas por atos de seres humanos", mas que "as normas da constituição não recebem sua validade de alguma norma jurídica positiva, mas de uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico, a norma fundamental hipotética", ele indica o caráter externo e não humano desse fundamento.
Em relação à aplicação do direito, a teoria de Kelsen propugnava a distinção entre a sua criação, aplicação e observância:
Criação e aplicação do Direito devem ser distinguidas da observância do Direito. Observância do Direito é a conduta a que corresponde, como conduta oposta, aquela a que é ligado o ato coercitivo da sanção. É antes de tudo a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção. [...]. Porém, só a criação e a aplicação do Direito são designadas como funções jurídicas num sentido estrito específico. [24]
Por considerar a identidade do direito com o Estado, Kelsen considerava como não jurídico e não pertencente ao direito a hipótese de sua observância espontânea, posto que levaria a não necessidade de atos de coerção. Nesse caso, a chamada sanção premial, como no caso da pessoa que paga prestação financeira de forma antecipada e recebe um beneficio, geralmente um desconto, não seria, de acordo com a teoria pura, um ato jurídico, nem de aplicação do direito. Mas tal pensamento é absurdo, haja vista condicionar o direito à coerção, à existência de lei e ao seu respectivo descumprimento. Significava dizer que pessoas não seriam destinatárias da lei e não poderiam, sem interferência do Estado, aplicar o direito.
Para Kelsen, o direito somente produzia efeitos jurídicos no momento da sua criação pelo Estado, conformado aos ditames da norma fundamental hipotética, que fundamentava todo o ordenamento, e da aplicação do direito pelo Estado mediante sanção e atos de coerção. A absurda e escandalosa conclusão é no sentido de que a observância do direito, portanto, não era direito.
3.2 O fundamento do direito: a norma fundamental hipotética
Se para Kelsen o direito se identificava com o Estado que, por sua vez, era o único produtor e aplicador das normas, e sua teoria do direito não admitia a infiltração de qualquer elemento estranho à norma, então o fundamento do direito significaria encontrar o fundamento da norma.
Ao se debruçar sobre o quê fundava o direito, Kelsen se deparou com enorme problema, qual seja, como apontar o fundamento sem perder a pureza da teoria. Kelsen se equivoca em mais esse aspecto, e indica mais um ponto incoerente da sua doutrina. Pois se o direito não poderia ser misturado com a sociologia, com a antropologia, com a filosofia, dentre outros ramos do conhecimento, e o direito se confunde apenas com a norma e com os atos do Estado, Kelsen teve de encontrar esse fundamento também numa norma. Assim discorreu:
Uma ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação de toda e qualquer norma que pertence a este sistema ser determinada por uma outra norma do sistema e, em outra análise, pela sua norma fundamental. [25]
A incoerência reside no fato de que não é possível indicar o fundamento do objeto de seu estudo por intermédio do próprio objeto. Por exemplo, a água não pode ser explicada pela própria água, mas sim pelos componentes que fazem a sua essência. Kelsen fez exatamente o contrário, ou seja, tentou fundamentar a norma por intermédio de outra norma, mas não conseguiu explicar a sua natureza. Logo, também não conseguiu dizer qual a natureza do direito.
Assim, para Kelsen a constituição, que é norma componente do ordenamento jurídico, localizada no ápice da pirâmide, é elaborada por seres humanos, e seu fundamento está em outra norma, a norma fundamental hipotética. A única diferença entre a constituição e a norma fundamental é em relação a quem a elabora. Para Kelsen, a constituição é "obra de seres humanos", enquanto que "o ato que cria a constituição deve, igualmente, ser qualificado por uma norma superior como um ato criador de norma". [26] E explica:
Essa, porém, é uma norma que não foi criada por nenhum ato, humano ou sobre-humano, mas apenas postulada pela mente humana. Se nos recusamos a aceitar uma explicação metafísica da autoridade dos originadores da constituição, somos forçados a deter-nos na norma que foi apresentada aqui como a norma fundamental hipotética. [27]
Desse modo, apesar de sua tentativa de dizer o fundamento do direito, Kelsen não obteve sucesso em seu intento, e nem poderia. Suas explicações se limitaram a indicar que a norma se fundamentava em outra norma. A norma que emprestava fundamento às normas positivas seria hipotética e estaria localizada fora do ordenamento, mas não conseguiu dizer de onde se originava esta norma e nem qual era o seu fundamento. Apenas indicou que sua existência era resultado da mente humana, ou seja, da imaginação, da criatividade, mas não de uma origem racional. [28]
Arnaldo Vasconcelos tece sua crítica ao fundamento do direito, conforme apresentado por Kelsen:
Cada norma fundamenta e produz a norma que lhe é inferior, num processo de auto-formação que ascende até a norma básica, hipotética e fundamental, chave da unidade de todo o ordenamento jurídico. É hipotética a norma básica, porque está pressuposta, enquanto as demais se encontram postas; e é fundamental, porque imprescindível à própria existência do ordenamento jurídico.
Colocados os elementos conceituais da norma hipotética fundamental nos exatos termos em que o faz Kelsen, como convinha à delicadeza da matéria, passamos a discriminar as suas funções, segundo os mesmos dados da exposição até aqui desenvolvidos. São eles: 1º - fonte comum de validade das normas que compõem o ordenamento jurídico; 2º - chave de sua unidade e coerência; 3º - condição gnosiológica de conhecimento do Direito; e, finalmente, 4º - fonte de produção das normas jurídicas. [...] Relativamente à formulação kelseniana, indaga-se: como se pode fundamentar uma realidade noutra realidade da mesma categoria? Ou, mais precisamente: como pode o jurídico fundamentar o jurídico? Evidentemente, tal propósito parece impossível até mesmo de ser formulado. [...] A negativa de Kelsen em atribuir conteúdo à norma fundamental tem o propósito, para ele relevante, de manter a pureza do sistema, o que busca alcançar com o afastamento total da metafísica. Esse preconceito lhe comprometeu irremediavelmente toda a construção doutrinária, sem ter sido eficaz. – Grifo aditado. [29]
Pode-se, então, dizer que Kelsen, ao não apresentar o fundamento da norma nem do direito, apresentou mais uma falha insanável de sua teoria pura. Ao mencionar a norma fundamental como externa ao ordenamento, Kelsen tentou colocá-la como a primeira constituição histórica de uma nação. Mas essa possibilidade inexiste, além de ser incompatível com sua teoria, pois como uma constituição histórica é um ato de seres humanos, e a norma fundamental não o seria. Acerca da norma fundamental hipotética, ensina Fábio Ulhoa Coelho:
Estamos diante de uma regressão ao infinito, sem sentido racional. Para enclausurar o sistema jurídico, solucionando a questao em aberto, Kelsen lança mão de uma norma que deve sustentar o fundamento de validade da ordem jurídica como um todo, mas que necessariamente não tenha sido editada por nenhum ato de autoridade. Uma norma não posta, mas suposta.
A norma hipotética fundamental prescreve a obediência aos primeiros constituintes históricos. Note-se, porém, que o conceito de constituição histórica, em Kelsen, não rompe com o princípio metodológico fundamental. Não se trata, pois, de verificar a efetiva anterioridade no tempo, material próprio do estudo dos historiadores, que consideram a Constituição Imperial de 1824. O cientista do direito localiza a primeira constituição histórica de uma determinada ordem jurídica exclusivamente a partir das normas positivas. [30]
Antes de sua morte, Kelsen faz uma revisão de sua teoria e um dos pontos em que admite incoerências é em relação ao fundamento do direito, ou seja, o caráter hipotético de sua norma fundamental. Assume ser ela uma ficção e contraditória. [31]
3.3 O direito e a coação
De acordo com a teoria pura, Kelsen pregava que o direito era uma ordem coativa, pois colocava a coerção como característica necessária do direito, como fator que determinava a conexão entre ele e o Estado:
Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. [...]. De rejeitar uma definição do Direito que o não determine como ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação do Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem, [...]; e mais especialmente porque só então será possível levar em conta a conexão que existe entre o Direito e o Estado, já que este é essencialmente uma ordem de coação e uma ordem de coação centralizadora e limitada no seu domínio territorial de validade.
Se o direito, conforme concebia Kelsen, era coativo, então ele somente existiria a partir do ilícito, ou seja, de uma conduta que contrariasse a ordem jurídica. Essa assertiva apresenta a incoerência já indicada no item 3.1 supra, pois se o direito teria de ser necessariamente coativo, a sua observância pela obediência espontânea e regular às normas não poderia ser considerada jurídica. Não era direito.
Como pontua Norberto Bobbio, a incoerência da coerção como característica essencial do direito leva a duas conclusões, uma das quais aquela do "regresso ao infinito", também mencionada por Fábio Ulhoa Coelho:
Podemos, todavia, dizer que em alguns autores contemporâneos a doutrina da coação como objeto do direito é clara e conscientemente formulada. É enunciada, por exemplo, por Kelsen, que considera a sanção não mais como um meio para realizar a norma jurídica, mas como um elemento essencial da estrutura de tal norma. Contra a teoria tradicional da coação é formulada a objeção do regresso ao infinito, segundo a qual, se o direito é uma norma que se faz valer coativamente, também a norma secundária (que garante a aplicação da coação), porque é uma norma jurídica, deve por sua vez ser garantida por uma terceira norma que estabeleça uma sanção para sua inobservância, e a terceira deve ser garantida por uma quarta e assim por diante, com duas possíveis conclusões: ou se postula um número infinito de normas (o que é absurdo) ou se admite que as últimas normas, sob as quais se apóia um ordenamento jurídico não são feitas coativamente (o que desmente a afirmação de que o direito é constituído por normas coativas). [32]
A coação, portanto, trata o direito a partir da ilicitude. Esquece, todavia, que a observância do direito é a regra, enquanto que a sua não observância é a exceção. Além disso, o uso da força, dos atos de coerção, também se enquadra como exceção, porquanto o Estado não é o tempo chamado a intervir e usar a força para fazer valer o direito. Para Kelsen, no entanto, a coerção é essencial ao direito e pressupõe este como ameaça. A obediência voluntária e espontânea do direito não afasta a coerção, mas sim a confirma, haja vista seu caráter psicológico que estabelece o medo da coerção estatal. [33]