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O purismo metodológico e sua tentativa de explicar a essência do Direito

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11/07/2011 às 18:16
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4.CRÍTICAS AO PURISMO KELSENIANO

O direito puro, pensado por Hans Kelsen, é alvo de muitas críticas, haja vista a sua teoria ter estabelecido fatores de total incoerência com a real natureza do direito, suas fontes e objetivos. Sua tentativa de limitar o direito à norma, apartar o direito da idéia de justiça, da moral e da ética, envolver-lhe com a coerção e buscar seu fundamento na norma, foram equívocos que marcaram a Teoria Pura do Direito.

Sobre a teoria pura, Arnaldo Vasconcelos aponta uma critica de forma geral e indica o fator que levou Kelsen aos equívocos mencionados:

Kelsen, como autor do projeto positivista de uma teoria pura do Direito, não está, decisivamente, interessado nessa problemática metafísico-humanista. Não se encontra, na sua obra jurídica, nenhuma preocupação com os problemas fundamentais daquilo que se pode admitir como antropologia filosófica. [34]

De fato, talvez o principal erro de Kelsen, ao tentar purificar o direito, se resume a ter ele esquecido, ou propositadamente desprezado, que o direito envolve o estudo do elemento humanístico, posto que sua principal fonte de produção é o próprio homem, que é também seu destinatário e razão final de ser.

Sobre a coerção como da essência do direito e a consideração da observância voluntária como não jurídica, ao apontar o motivo anti-humanístico de Kelsen, ensina Arnaldo Vasconcelos:

Significa dizer que a coação preside todos os atos humanos, até mesmo aqueles que se realizam para fazer o bem, o certo, o justo, como se nos afigura o cumprimento de uma obrigação jurídica. Outro escândalo é a caracterização do direito como ameaça. Então, não existe nenhuma diferença entre o animal irracional que se pretende adestrar e o homem, seu adestrador? Onde terá metido Kelsen a liberdade e a consciência do homem? Parece não haver dúvida da causa de tantos equívocos: faltou à construção kelseniana uma teoria geral do homem. [35]

Por pertencer a área humana e social do conhecimento, o estudo do direito não pode prescindir do entendimento acerca do homem, sua existência, evolução, costumes, objetivos, de seu habitat e de como se relaciona com seus semelhantes. Kelsen fez exatamente ao contrário, ou seja, desconsiderou o elemento humanístico e tratou de isolar o direito em relação a qualquer fator diverso do Estado e da norma estatal, como se o direito e o Estado pudessem sobreviver sem o ser humano.

Acerca da tentativa de Kelsen de fundamentar o direito ao estabelecer uma Norma Fundamental Hipotética para esse objetivo, discorre Arnaldo Vasconcelos a seguinte crítica:

Fundamento é o ato de fundamentar. E fundamentar significa justificar. Do latim, justificare, de justus, justo, e ficare, tornar, fazer. Fundamentar consiste em apresentar a razão pela qual algo, segundo sua especial natureza, pode ser tido por justo, ou certo, ou correto. O fundamento envolve, não um juízo de realidade acerca de como é a coisa, mas um juízo de valor pertinente à razão por que ela se apresenta deste modo e não de outro qualquer. Não constitui, portanto, uma operação ao nível da imanência, mas no plano da transcendência. Coisas do mesmo nível, por corresponderem a valores equivalentes, não se prestam a estabelecer entre si fundamentação. Por situar-se no plano da transcendência, a fundamentação é da ordem da metafísica. Em conseqüência, o fundamento do empírico só pode ser o supra-empírico. Logo, norma não pode fundamentar norma. [36]

Kelsen, por conseguinte, não apontou o fundamento do direito em sua teoria pura, tendo deixado um vácuo insanável e sem uma explicação coerente do que envolve o trabalho de fundamentar. A Teoria Pura do Direito, portanto, padecia de base, de fundamento racional.

Quanto ao seu lado não ideológico, Antonio Carlos Wolkmer traça a seguinte crítica:

Em síntese, pode-se chegar à conclusão de que o rígido formalismo de Kelsen reflete certa posição dominante das ciências humanas, em determinado momento do desenvolvimento político-econômico das sociedades burguesas liberais contemporâneas. Porquanto, ainda que se busquem teorizações aparentemente conformistas e não engajadas aos ditames dessas sociedades, na verdade, sob tais fórmulas técnicas, ocultam-se ideologias e intentos do próprio jogo da "neutralidade", objetivando fins "impuros". De fato, a suposta "cientificidade" e a propalada "neutralidade" kelsenianas não deixaram de ser também ideologias, pois sua "Grundnorm" transformou-se em instrumento de legitimação de inúmeras ordens político-jurídicas: tanto de Estados do capitalismo liberal-burguês quanto de Estados que viveram certo tipo de socialismo burocrático. [37]

Kelsen parece ter esquecido que ele mesmo é um ser humano, com características e necessidades, e de que é dotado de uma carga valorativa e subjetiva que certamente não permitiria que sua teoria pura explicasse o direito de forma totalmente alheia a qualquer ideologia.

Outra insubsistência da teoria pura diz respeito a sua não consideração das lacunas como pertinente à logicidade dos sistemas jurídicos, posto que não é possível ao legislador prever todas as situações possíveis nas relações humanas. [38] Como o direito, em Kelsen, se resumia às normas, como deveria ser interpretada a ausência de previsão normativa para uma determinada situação? Quem deveria dizer o direito nessa hipótese, e como este deveria ser solucionado? Seria essa solução considerada jurídica? Estes questionamentos são pertinentes, pois se não havia norma para o caso, não haveria aplicação do direito, nem a sua observância espontânea, então, ao se aplicar a teoria pura, não haveria juridicidade em nenhuma das duas hipóteses.

Por último, ao efetuar uma crítica geral sobre toda a teoria pura, Chaïm Perelman discorre:

O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural, associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia dos valores, foi a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elimina do direito qualquer referência à idéia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário.

Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933, demonstraram que é impossível identificar o direito com a lei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover, dentre os quais figura em primeiro plano a justiça.

Este longo desvio pela história das ideologias jurídicas posteriores ao Código de Napoleão nos conduz a uma conclusão, que hoje parece comumente aceita, mas que se perdeu de vista na concepção formalista e legalista do direito: o juiz não pode considerar-se satisfeito se pôde motivar sua decisão de modo aceitável; deve também apreciar o valor desta decisão, e julgar se lhe parece justa ou, ao menos, sensata. [39]

A tentativa de purificar o direito e de retirar dele a preocupação com o senso de justiça, moral e ética, possibilitou pesadas conseqüências e a prática de inúmeras arbitrariedades na história da humanidade, especialmente na primeira metade do século XX. Duas guerras mundiais e regimes totalitários, que fizeram uso do direito puro para justificar suas condutas, trouxeram dor e sofrimentos à humanidade. A partir da segunda metade do século XX é que a visão jurídica retoma uma nova caminhada, o que influencia sobremaneira a práxis do direito, a abordagem democrática e abre ao pós-positivismo a possibilidade de emprestar fundamento e um novo olhar interpretativo ao direito. [40] É nesse período que surge uma maior preocupação com a humanização do direito.

Benjamin Nathan Cardozo elaborou algumas abordagens questionadoras, cujo teor é pertinente em relação ao tema do purismo no direito, porquanto chame a atenção para a aplicação do direito mediante uma livre interpretação em consonância com o valor justiça:

A lei escrita, dizem eles, é muitas vezes fragmentária, inadequada e injusta. O juiz, em seu papel de intérprete para a comunidade no sentido de lei e ordem que ela tem, deve suprir as omissões, corrigir as incertezas e harmonizar os resultados com justiça, através de um método de livre decisão.

Nada é estável. Nada é absoluto. Tudo é fluido e mutável. Há um eterno "vir a ser".

A constante insistência em que moralidade e justiça não são o Direito torno-o sujeito a desconfiança e desprezo, como se se tratasse de algo a que a moralidade e a justiça não apenas são estranhas, mas também hostis. [41]

Mesmo diante das incoerências e muitos absurdos pregados pela teoria de Kelsen, o positivismo normativo teve a prova de que não é servível para a plena regulação da sociedade e para a realização efetiva e eficaz dos objetivos do direito. Além disso, justiça, moral e ética, apesar de nem sempre serem realizadas na prática, devem permear a mente dos interpretes e aplicadores do direito, principalmente dos órgãos e agentes do próprio Estado.

Não há teoria perfeita e acabada, nem teoria que seja totalmente inútil. Por elaborarem conjecturas, mas permitirem as refutações, as teorias servem para o progresso do conhecimento e para o aperfeiçoamento da humanidade. Com a Teoria Pura do Direito não ocorreu diferente. Afinal, ela deu uma contribuição elevada para o conhecimento do direito, para a noção de organização das normas, para a discussão dos fundamentos do direito e para demonstrar que o direito não se resume às normas estatais.


CONCLUSÃO

Com base no ferrenho positivismo normativo, pregado pela Teoria Pura do Direito, foram estabelecidos regimes totalitários, não democráticos, e realizadas inúmeras atrocidades contra a humanidade, crimes de guerra em especial, tudo com base em autorização legislativa que possuía um suposto fundamento normativo externo.

A teoria pura tratou a norma estatal como única verdade absoluta, indispensável e auto-suficiente, que não necessitava de complemento nem da influência do senso de justiça, de moral e de ética. Separou o direito da sociologia e da antropologia, mas não apresentou seu fundamento. A visão implementada por Kelsen não se preocupava com um modo de pensar e vivificar o direito.

Apesar de não admitir "ideologias" no direito, a doutrina de Kelsen acabava tendo sua força ideológica, pois certamente buscava estabelecer a validade e a segurança do ordenamento jurídico, bem como a estabilidade estatal. O ensino de Kelsen lembra os ditames do liberalismo francês, que não admitia lacunas na lei, nem que o juiz interpretasse e aplicasse o direito de forma diversa das previsões normativas. Imperava o positivismo, o princípio da legalidade, a busca por uma segurança jurídica, cuja intenção era viabilizar os interesses particulares. Não se está aqui a afirmar que Kelsen tinha compromisso com tais interesses. Porém, mesmo que não o tivesse, viabilizou a quem tinha tais almejos egoístas.

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A dogmática kelseniana apresentou, portanto, uma tentativa de ensinar o direito em desacordo com a sua real natureza. Deixou de lado as fontes do direito, pois admitiu apenas uma – a norma estatal, que é a pior, mais incoerente e mais lacunosa fonte do direito. Desprezou o lado humano, não considerou princípios, nem os objetivos do direito, dentre eles o de estabelecer justiça numa sociedade cada vez mais competitiva e egoísta. Não levou em conta a dignidade da pessoa humana.

Até hoje, o modo de encarar o direito e o ensino jurídico são influenciados pelo positivismo normativo de Kelsen. O apego à lei, a não preocupação com disciplinas propedêuticas e falta de base filosófica, histórica, sociológica e antropológica, ainda produz muitos kelsenianos entre juizes, promotores e advogados. A inexistência do senso de justiça e de proteção à dignidade da pessoa humana ainda resulta em muitas aberrações jurídicas, ratificadas pelo sistema vigente. O resultado é o desvirtuamento do direito e a falta de soluções mais adequadas aos casos concretos.

A história mostra os resultados que o positivismo normativo pode trazer à humanidade e para os desvios no exercício do poder estatal. Além disso, o desenvolvimento do Estado social e o surgimento do chamado pós-positivismo jurídico, com base em valores e princípios, que tem o ser humano como prioridade, demonstram que o caminho do direito é a sua constante vivificação. Mas como nada é definitivo, pois tudo pode ser questionado e modificado, não se sabe que inovações o futuro trará ao direito.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

CARDOZO, Benjamin Nathan. A natureza do processo judicial: palestras proferidas na Universidade de Yale. Tradução de Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1996.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio On Line. In: http://www.dicionariodoaurelio.com/dicionario.php?P=Ciencia.

KELSEN, Hans. O que é justiça? Tradução de Luís Carlos Borges. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

____________. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010.

MORRIS, Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PÍTSICA, Nicolau Apóstolo. Evolução do pensamento jurídico ocidental: alicerces construtores do direito brasileiro. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

____________. Teoria pura do direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

ÍNDICE ONOMÁSTICO

BOBBIO, Norberto, 17

CARDOZO, Benjamin Nathan, 21

COELHO, Fábio Ulhoa, 16, 17, 19

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo, 3, 5, 6

HOLANDA, Aurélio Buarque de, 3

KANT, Imannuel, 8, 9

KELSEN, Hans, 1,2, 5-10, 12-14, 16

MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito, 21

MORRIS, Clarence (org.), 8, 9

PERELMAN, Chaïm, 11, 20

PÍTSICA, Nicolau Apóstolo, 2, 8

VASCONCELOS, Arnaldo, 9, 11, 15, 18, 19

WOLKMER, Antonio Carlos, 9, 11, 19

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Sobre o autor
Michel Mascarenhas Silva

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Advogado. Professor da Universidade Federal do Ceará-UFC, da Universidade de Fortaleza-UNIFOR e da Faculdade Sete de Setembro-FA7.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Michel Mascarenhas. O purismo metodológico e sua tentativa de explicar a essência do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2931, 11 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19526. Acesso em: 14 nov. 2024.

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