4. Recurso extraordinário no âmbito dos juizados especiais federais
A disciplina conferida ao recurso extraordinário no âmbito dos juizados especiais federais, tanto pela Lei 10.259/2001, quanto pela nova redação do art. 321, §5º do Regimento Interno do STF [05], é mais um dos sinais da aproximação entre os modelos difuso e concentrado no ordenamento jurídico brasileiro. Aqui, o legislador aplicou, em sede de controle difuso, mecanismo processual semelhante ao da ADC (Lei 9.868/1999, art. 21), conforme demonstrado a seguir.
A Lei 10.259/2001 dispõe, em seu art. 14 e parágrafos, sobre o procedimento que governa o pedido de uniformização de interpretação de lei federal no contexto dos juizados especiais federais. O art. 15 do mesmo diploma, entretanto, determina a aplicação do referido procedimento (§§ 4º a 9º) no que toca ao recurso extraordinário. Este regime especial foi posteriormente regulado também pelo art. 321, §5º do RISTF.
A inovação trazida diz respeito à possibilidade de suspensão de todos os processo nos quais esteja estabelecida controvérsia constitucional semelhante (Lei 10.259/1999, art. 14, § 5º c/c art. 15). O relator do recurso determiná o referido sobrestamento se "verificada a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil reparação, em especial quando a decisão recorrida contrariar Súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal" (RISTF, art. 321, § 5º, I).
Após o julgamento e a publicação do respectivo acórdão, todos os recursos cujo processamento tenha sido sobrestado serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização "que poderão exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo Supremo Tribunal Federal" (RISTF, art. 321, § 5º, VII).
Esta conformação particular conferida ao recurso extraordinário permite que o STF, a partir do julgamento de um recurso paradigmático, emita posicionamento vinculante para as turmas recursais. Trata-se, na prática, de conferir à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade exarada verdadeiros efeitos erga omnes, evidenciando a superação dos limites subjetivos tradicionais do controle difuso de constitucionalidade.
Ao comentar a chamada crise numérica do STF e o papel exercido pelo controle difuso na mesma, Gilmar Mendes e Ives Gandra Martins (2009, p. 101) ressaltam que "a massificação das demandas nas relações homogêneas é um fator decisivo". Ora, é no âmbito do judiciário federal que são discutidas questões relativas a índices de reajuste do INSS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, Sistema Financeiro de Habitação, reflexos de planos econômicos, entre outros. São demandas nas quais a tese jurídica discutida ocupa lugar de destaque em detrimento do contexto fático apresentado em cada caso. Desta forma, faz-se necessário dispor de ferramentas processuais dotadas de caráter objetivo, onde cada demanda não seja tratada individualmente. Por estas razões, não é de se surpreender a escolha dos juizados especiais federais para o recebimento de uma disciplina diversa no que concerne ao recurso extraordinário [06].
Pode-se dizer que a presente disciplina foi generalizada para recursos extraordinários oriundos de qualquer órgão, por meio do instituto da repercussão geral, analisado a seguir.
5. Repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário
A Emenda Constitucional 45/2004 foi responsável por introduzir no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da repercussão geral [07], cujos contornos são traçados pelo art. 102, § 3º da Constituição:
No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros [08].
Ao restringir o conhecimento do recurso extraordinário à demonstração de repercussão geral, criou-se novo requisito de admissibilidade para o mesmo. Assim, a questão constitucional apta a ensejar a admissão do recurso passa a ser qualificada. Isto é, não será qualquer controvérsia constitucional, mas apenas as qualificadas pela repercussão geral, que poderão superar o juízo de admissibilidade recursal (Medina, 2009, p. 203). Na lição de Ivo Dantas (2010b, p. 204), este seria o conteúdo jurídico-positivo do instituto: a repercussão geral enquanto pressuposto específico de cabimento.
Entretanto, o constituinte derivado não definiu o que viria a ser repercussão geral, tarefa que deixou a cargo do legislador ordinário. Neste contexto, foi editada a Lei 11.418 de 2006 que alterou o Código de Processo Civil a fim de definir o instituto, bem como discipliná-lo do ponto de vista processual. Nos termos do art. 543-A, § 1º do CPC:
"Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico [09], que ultrapassem os interesses subjetivos da causa" [10]
Mais uma vez, observa-se a mitigação das fronteiras entre os controles difuso e concentrado: o interesse subjetivo das partes cede lugar ao de se manter íntegra a ordem constitucional vigente, pois passa-se a prestigiar, para fins de exame pelo STF, aquelas causas que possuam questões que transcendam as expectativas daqueles que integram a demanda, apresentando relevância econômica, política, social ou jurídica.
Da mesma forma, reforça-se a concepção objetiva do recurso extraordinário tendo em vista a possibilidade de o relator "admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros" (CPC, art. 542-A, § 6º). Isto é, na esteira de alterações legislativas anteriores [11], permite-se a participação de amicus curiae, "na medida em que os problemas jurídicos interessam não apenas às partes, mas a uma parcela ampla da sociedade" (Medina, 2009, p. 345).
A citada Lei nº 11.418/2006 previu alguns mecanismos com o fito de evitar a apreciação de temáticas repetitivas pelo Supremo Tribunal Federal.
Havendo mais de um recurso que verse sobre a mesma matéria, caberá ao tribunal de origem selecionar o(s) representativo(s) da controvérsia para envio ao STF, "ficando os demais sobrestados até o pronunciamento definitivo da Corte" (CPC, art. 543-B, § 1º).
Caso se verifique a inexistência de repercussão geral, os recursos sobrestados serão automaticamente inadmitidos(CPC, art. 543-B, § 2º). Assim, a decisão do STF é "absolutamente vinculante quanto à inadmissibilidade do recurso em razão da ausência de repercussão geral" (Medina, 2009, p.346).
Por outro lado, reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito, os tribunais apreciarão os recursos sobrestados: podendo retratar-se, caso seu pronunciamento esteja em desconformidade com o emitido pelo STF; ou julgá-los prejudicados, se o Supremo Tribunal Federal houver negado provimento ao(s) recurso(s) representativos da controvérsia (CPC, art. 543-B, § 3º).
Esta sistemática, a exemplo da disciplina que governa o recurso extraordinário nos juizados especiais federais [12], procura generalizar os efeitos da decisão tomada em sede de controle difuso, aproximando-o do que ocorre na via concentrada. A este propósito, ensinam Didier Jr. e Leonardo Cunha (2007, p. 273):
É possível concluir, sem receio, que o incidente para a apuração da repercussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante ao procedimento da ADIN, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois se trata de exame de uma questão que diz respeito a um sem-número de pessoas, resultando na criação de uma norma jurídica de caráter geral pelo STF. É mais uma demonstração do fenômeno de ‘objetivação’ do controle difuso de constitucionalidade das leis (...)
Esta nova dinâmica, ao menos no que se refere ao juízo de admissibilidade, parece ter por paradigma o modelo de writ of certiorari, utilizado pela Supreme Court americana. A grande distinção reside no fato de que, naquela corte superior, ao contrário do que ocorre no STF, a concessão do writ é ato totalmente discricionário, "que decide em sessão secreta, sem divulgação dos votos e dos motivos que os inspiraram (...)" (Moreira, 2008, p. 616).
6. Súmula Vinculante
O instituto da súmula vinculante, também instituído pela EC 45/2004, está previsto no art. 103-A da Constituição Federal:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. [13]
O comando legal é auto explicativo: permite-se que o STF, após reiteradas decisões, edite súmula em matéria constitucional cujo enunciado será vinculante para todos os órgãos da Administração Pública e do Poder Judiciário. A fim de regulamentar o instituto, foi editada a Lei nº 11.417 de 2006, na qual é previsto o procedimento que governa a edição, revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante .
A possibilidade de edição de súmula vinculante pode ser considerada, no universo das alterações legislativas que integram o fenômeno da objetivação do sistema difuso, uma das mais significativas, conforme será demonstrado a seguir.
Quando faz referência a "reiteradas decisões", a Constituição, por óbvio, refere-se àquelas tomadas em sede de controle difuso de constitucionalidade. Não poderia ser diferente, pois os pronunciamentos exarados pelo STF em ADIn, ADC e ADPF já possuem força vinculante [14].
Assim, decisões que teriam sua eficácia restrita aos casos concretos das quais emergiram, passam a embasar um pronunciamento de observância é obrigatória para todos os órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública.
Ao mesmo tempo, na medida em que tal pronunciamento, consubstanciado em enunciado sumular, versa sobre "a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas" (CF, art. 103-A, § 1º), está-se diante de instituto que aproxima as modalidades difusa e concentrada de controle de constitucionalidade.
Esta é a lição de André Ramos Tavares (2007, p. 15), para quem a súmula vinculante representa:
(...) uma espécie de ponte de ligação entre decisões (especialmente de controle de constitucionalidade ou interpretativas) proferidas numa dimensão concreta e uma decisão (sumulada) proferida com caráter geral (abstrato).
Logo, a essência da súmula vinculante, como criada pela EC 45/2004 e regulamentada pela presente Lei 11.417/2006, está representada como uma forma de transposição do concreto para o abstrato-geral. Isso porque os detalhes dos casos concretos, suas particularidades e interesses, apreciados pelas decisões anteriores, serão descartados para fins de criação de um enunciado que seja suficientemente abstrato para ter efeitos erga omnes.
A prática de edição de súmulas vinculantes, notadamente considerando que o processo pode ser iniciado pelo próprio Tribunal, aproxima-se do princípio do stare decisis, presente nos ordenamentos jurídicos de raiz anglo-saxã e que, nos Estado Unidos, conforme visto anteriormente, é responsável por conferir estabilidade e efetividade ao sistema difuso.
Esta aproximação, ainda segundo André Ramos Tavares (2007, p. 23), reside numa circunstância comum a ambos os institutos: a "necessidade de fazer surgir, a partir de decisões concretas, uma diretriz a ser adotada em outros casos similares (um certo ‘processo de objetivação’ das decisões concretas)".
A importação de tal instituto ilustra, mais uma vez, o esforço do legislador no sentido de mitigar a tramitação de processos repetitivos. Com efeito, o texto constitucional associa a edição de súmula vinculante a existência de "controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica" (CF, art. 103-A, § 1º).
A fim de assegurar que a passagem do plano concreto para o abstrato-geral não se daria sem o devido amadurecimento e ponderação, foi previsto o requisito de que tais decisões sejam reiteradas, ou seja, o STF deve refletir, na edição de uma súmula vinculante um amadurecimento de sua jurisprudência quanto ao tema de fundo. Além disso, exige-se maioria qualificada (dois terços dos ministros) como forma de garantir que essa transição originou-se de um consenso mais amplo do que aquele exigido quando do julgamento do caso concreto.
Ao lado do próprio Supremo Tribunal Federal, a Carta Magna previu como legitimados para provocar a edição, revisão ou cancelamento de súmula aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade, sem prejuízo da ampliação deste rol pelo que for estabelecido em lei (CF, 103-A, § 2º).
Esta previsão dá sinais de que o constituinte derivado teve por objetivo democratizar o procedimento, permitindo a participação de diversos atores. Tal escolha pode ser facilmente justificada: a edição, alteração ou cancelamento de uma súmula vinculante irradia efeitos jurídicos por todas as esferas da Administração Pública e do Poder Judiciário.
Neste contexto, não é de se surpreender a opção do legislador ordinário de disciplinar o processo a partir de princípios objetivos, a exemplo do que ocorre na tramitação das ações de controle concentrado de constitucionalidade. E não poderia ser diferente se se quisesse manter a coerência com as outras formas, já reguladas, de extrair do Supremo Tribunal Federal pronunciamentos vinculantes e com efeitos erga omnes.
Assim é que, ao editar a Lei nº 11.417/2006, previu-se: a participação de amice curiae (art. 3º, § 2º), conferindo ao procedimento uma abertura para que possa haver a manifestação dos mais amplos setores da sociedade; e a limitação dos efeitos vinculantes ou da efetividade imediata da súmula (tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público) mediante o voto de dois terços dos ministros (art. 4º).
A iniciativa de ofício por parte do STF, a par de demonstrar uma suposta recepção legislativa de instituto estrangeiro (stare decisis), confere à súmula vinculante um lugar de destaque no fenômeno ora estudado, da aproximação entre os sistemas difuso e concentrado. De fato, o Tribunal, independentemente de provocação, pode generalizar os efeitos de suas decisões, o que acentua o poder normativo que uma Corte Constitucional já desfruta por excelência na moderna concepção de controle de constitucionalidade.
Sobre o tema, relembre-se a lição de Kelsen (1999, p. 175):
A função criadora de Direito dos tribunais, que existe em todas as circunstâncias, surge com particular evidência quando um tribunal recebe competência para produzir também normas gerais através de decisões com força de precedentes. (…) Conferir a uma tal decisão caráter de precedente é tão-só um alargamento coerente da função criadora de Direito dos tribunais
Saliente-se que a inobservância das súmulas vinculantes, quer pela Administração Pública, quer por outro órgão do Poder Judiciário, ensejará a propositura de reclamação constitucional perante o STF. Julgando-a procedente, o Supremo Tribunal determinará a anulação do ato administrativo ou a cassação da decisão judicial (CF, art. 103-A, § 3º).