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A homossexualidade e o afeto

Agenda 01/08/2011 às 13:04

A homossexualidade ou, como melhor se designa atualmente, homoafetividade, não possui origem histórica definida e suas razões e explicações, sociológicas e biológicas, não é tema unânime nem teoricamente unificado entre os estudiosos.

A ciência, no entanto, tem se ocupado em tentar discorrer acerca dos motivos que levam a pessoa a quebrar o paradigma sexual e ir contra a "normalidade" aceita pela sociedade e contra o padrão de sexualidade natural para a qual foram feitos homem e mulher, escolhendo sua parceria sexual de modo diferente, não se achegando ao sexo oposto para constituir a sua vida.

Por motivos óbvios, o presente trabalho não tem a pretensão de aprofundar o debate científico na seara biológica, sociológica ou psicológica, e até mesmo na histórica, do tema. Afinal, a meta do autor é tão-somente indicar a existência de um fato social que não pode ser ignorado e demonstrar o que o Estado, fazendo uso das ferramentas do Direito, pode e deve fazer. Assim, não se pretende aqui descer a detalhes quanto ao descobrimento dos motivos que fazem uma pessoa nutrir afeto e gostar de outra do mesmo sexo e com ela ter prazer sexual, buscando a sua felicidade na conjunção e na comunhão de vida com essa orientação sexual.

Porém, não se pode fugir dessa interdisciplinariedade e simplesmente produzir um texto que almeja cientificidade sem o mínimo de toque conceitual sobre o assunto, bem como acerca dos obstáculos e dos enfrentamentos que a homoafetividade tem sido submetida.

Ao analisar a conceituação do que seja a homoafetividade, observa-se que esse estilo de vida recebe várias definições. Sim, a homoafetividade, a nosso ver, é um estilo de vida oriundo do surgimento do afeto por uma pessoa do mesmo sexo. Esse afeto pode levar a uma completude de vida, que envolve a união perene e estável, como pode se relacionar apenas com o afeto momentâneo com objetivo de obter satisfação sexual. O afeto ou amor eros [01]por uma pessoa do mesmo sexo é uma forma diversa do usual, mas que parece se relacionar com o direito do indivíduo de buscar a sua felicidade. Ser homossexual não significa ser um doente, um deficiente, ou possuir um defeito que justifique a ridicularização por parte dos demais membros do corpo social. Optar pela homossexualidade é uma forma de exercício democrático da vida íntima e privada do indivíduo, que a ninguém, seja por qual motivo for, cabe criticar ou discriminar.

A homossexualidade (com sufixo dade, que significa modo se ser ou viver), antes mais designada e conhecida como homossexualismo (no sentido de doença, anomalia; do sufixo ismo), sempre horrorizou a sociedade e sempre foi tratada como inversão, transtorno ou distúrbio sexual.

Em algum momento da história, a homossexualidade passou a preocupar os cientistas e a medicina, sendo o principal objeto de estudo as perguntas relacionadas aos motivos que levam a pessoa a ter atração por outra do mesmo sexo e à realização dessa atração estar condicionada a sua felicidade.

Tratando da história do amor no Brasil, a historiadora Mary Del Priore assim discorre acerca da homossexualidade desde o século passado até a chamada "revolução sexual" ocorrida nas décadas de 60 e 70:

Imediatamente a seguir, a homossexualidade, associada a uma herança mórbida, tornava-se alvo de estudos clínicos. O homossexual não era mais um pecador, mas um doente, a quem era preciso tratar. [...] Membros da classe médica, como o nosso já conhecido Ferraz de Macedo, ocasionalmente escreveram sobre o tema, combinando a tradicional aversão moral e religiosa ao homoerotismo com teorias do tipo: a homossexualidade se devia a distúrbios psicológicos; originava-se graças à falta de "escapes normais"; atribuía-se à "criação moral imprópria". Listavam-se as diferentes características dos "penetradores" e dos "penetrados". Era a moralidade e não a medicina, o remédio para lutar contra essa "aberração da natureza".

Discretos, quando não perseguidos, e vítimas de toda sorte de preconceitos, esses grupos tiveram de viver seu amor nas sombras, pelo menos até os anos 60. Não faltaram tratamentos médico-pedeagógicos sugeridos – agregados a religião -, como remédios para a "inversão sexual". O transplante de testículos, por exemplo, era uma dessas receitas "científicas" para o "problema". Outra era a convulsoterapia, ou injeção de insulina para "curar" o que se considerava, então, um comportamento esquizofrênico. Outra opção era o confinamento em hospícios psiquiátricos.

O preconceito contra a mulher homossexual era brutal: perda dos filhos, na caso das casadas; insegurança econômica, no caso das remediadas, brutal pressão familiar para que arranjassem namorados, noivos e maridos. [...] Não foram poucas as espancadas por pais, maridos ou filhos revoltados com a situação. Não foram poucos os suicídios em que um bilhete deixado aos parentes revela o desespero de jovens, massacradas com a intransigência familiar. [02]

Como se pode ver, os enfrentamentos da homossexualidade não têm sido fáceis, sendo esse estilo de vida alvo de preconceito e discriminação, como se depreende da forma de tratamento desdenhosa, dos diagnósticos e dos tratamentos indicados.

Do texto acima, extraem-se termos como "herança mórbida" e "aberração da natureza". As explicações, dadas há décadas, para os motivos dessa escolha, cujo conteúdo não mudou muito nos últimos anos, vão desde "distúrbios psicológicos" à "falta de escapes normais", passando pela ‘esquizofrenia’ e pela "criação moral imprópria". Quanto aos tratamentos, designados como remédios para a "inversão sexual", as sugestões variavam desde "transplante de testículos" a "convulsoterapia, ou injeção de insulina para curar" e o "confinamento em hospícios psiquiátricos".

Em relação ao casamento homossexual e ao Direito, o autor Jorge Jaime, citado por Mary Del Priore, entende que os homossexuais deveriam ter o direito de se casar. Esse entendimento é exposto na obra publicada em 1947, Homossexualismo masculino, texto apresentado em um seminário sobre Medicina Legal. Esse é o entendimento do autor Jorge Jaime, reproduzido por Mary Del Priore:

Existem milhares de invertidos que vivem maritalmente com indivíduos do seu próprio sexo. Se fosse concedido o casamento entre homens não se criaria nenhuma monstruosidade: apenas, se reconheceria por um estado de direito que só os países ditatoriais negam. Se os leprosos podem casar entre si, porque devemos negar esse direito aos pederastas? Só porque aos normais repugna um ato de tal natureza?

Um uranista só é feliz na convivência dos homens que lhes saciam os instintos. E muitos homens sentem-se mais felizes quanto têm relações com uranistas do que com mulheres. Então, por que não os proteger legalmente? Direito foi posto na Terra para regular interesses recíprocos. Hoje mais do que em época alguma, tem evoluído muito o conceito de família e já se acha mais importante a felicidade que a moral. [03]

A conclusão exposta pelo referido autor Jorge Jaime importa como balizadora do presente trabalho: "tem evoluído muito o conceito de família e já se acha mais importante a felicidade que a moral". Não que a moral não seja importante. Porém, numa escala proporcional axiológica, a felicidade do indivíduo, desde que não atinja a direitos coletivos e difusos ou ao interesse público, não pode ser desprezada pela moral dita vigente. E será que é mesmo vigente e geral? Afinal, o que é moral para uma pessoa pode não o ser para outra. Daí não poder ser confundido Direito e moral. O Direito poderá ter toques com a moral, mas com ela não se confunde.

Sobre a família e sua relação com a "revolução sexual", ensina Mary Del Priore:

Em tempos de tantas mudanças, como fica o papel da tradicional família católica brasileira? Sua função de agência poderosa de moralização da sociedade, ainda que muito presente, vai cedendo espaço para o individualismo que hoje vivemos. [...] Agora, homens e mulheres ouviam e seguiam o coração. [04]

Toda a questão se relaciona ao respeito à individualidade. Como dito acima, se o exercício da esfera individual não traz prejuízos ao interesse público, coletivo ou difuso, no sentido dos direitos difusos e coletivos, não se pode negar proteção aos efeitos que dela decorrem. Com relação aos que optam pela homossexualidade, em decorrência do exercício da sua esfera individual, ainda que sejam poucos os que fazem essa opção, têm eles o direito de regulamentação por parte do Estado.

Entretanto, não é isso o que se vê, pois até mesmo as instituições democráticas, estabelecidas para assegurar direitos e prerrogativas fundamentais, ainda não deram a atenção que essa realidade social merece.

De fato, a homossexualidade chegou a um patamar tão elevado, tendo chegado a um grau que se pode dizer comum (se comparado com décadas atrás), que não mais é possível simplesmente ignorá-la. Essa opção de vida deve ser objeto de preocupação e de estudos por parte dos mais variados ramos das ciências, inclusive e principalmente, do Direito. Sua cognição deve ocupar o jurista.

O que tem ocorrido, contudo, com a homossexualidade, é o enfrentamento de uma gama inescusável de preconceito e discriminação, inclusive institucionalizada. Todavia, não é possível aceitar essa conduta discriminatória, já que o homem ou a mulher que optam pela homossexualidade não perdem a sua condição de pessoa humana ou de cidadão. Não há a perda de sua esfera juridicamente protegida. Não se perde a condição de contribuinte, de elemento populacional, de componente social, de pessoa capaz de direitos e deveres na órbita civil.

É inadmissível que uma religião ou um bloco ecumênico, ou qualquer movimento social, seja ele qual for, defina o que é moral, que tenha influência e poder sobre as instituições postas para governar para todos, incluindo para as minorias.

É bem verdade que a conduta muitas vezes escrachada de alguns homossexuais causa a sua repulsa social. Na verdade, porém, não se pode generalizar. Afinal, quantos indivíduos heterossexuais também implementam condutas nada aceitáveis? Mas nem por isso estes perdem seus direitos e prerrogativas.

O que é preciso é o reconhecimento, pela sociedade civil e por suas instituições, da existência das uniões estáveis homoafetivas, dos efeitos jurídicos decorrentes e da conseqüente necessidade de regulamentação.

Deve-se dizer que o fato de uma determinada conduta ser regulamentada pelo Direito não implica que a sociedade em geral a aceitou como padrão. Apenas houve a regulamentação daqueles que optaram por um determinado estilo de vida.

A bem da verdade, parece haver um temor de que, caso as uniões homoafetivas sejam reguladas pelo Direito, as famílias serão afetadas negativamente e que todas as pessoas serão obrigadas a também enveredar pela homossexualidade como estilo de vida. No entanto, deve-se lembrar que a homossexualidade é uma opção, uma escolha pessoal e individualizada. E essa escolha não é balizada nem incentivada pela existência de normas que regulamentam a matéria. Se assim fosse, todos teriam se tornado assassinos e praticantes de toda sorte de ilícitos pelo fato de existirem normas penais. Ou que todos os administradores públicos optariam por praticar atos de desonestidade pelo fato de existir a Lei de Improbidade Administrativa. E assim por diante. O fato de existir uma norma não significa que a conduta por ela regulada será praticada por todos.

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Apesar de comporem uma minoria, os homossexuais e seu estilo de vida merecem a atenção dos juristas, tendo eles o direito de ter a regulamentação por parte do Estado, pois estar-se a tratar de pessoas humanas. Ora, se até mesmo dos direitos dos animais se ocupa o Estado, não pode ele se esquivar de regular as relações homoafetivas. Não é possível menosprezá-las.

Uma relação homoafetiva tem o maior elemento que uma família pode ter: o afeto. Esse é o mais sensível e elementar princípio familiar. A diferença fundamental existente entre as uniões homoafetivas e as heterossexuais se refere a um aspecto fático e científico: não possibilitar a reprodução humana. Contudo, as uniões estáveis homoafetivas possuem todas as características das demais relações familiares: afeto, amor, respeito, comunhão de vida, constituição de patrimônio, assistência mútua, possibilidade de criação de filhos etc. No resto, qualquer outra diferença que se queira enxergar nessas relações advém de discriminação e preconceito. Nada mais.

Regular o Direito as uniões homoafetivas, portanto, não pode ser traduzido como apoio ou incentivo a que as pessoas também optem por esta orientação sexual.

Talvez o maior argumento utilizado para a discriminação sofrida pela homossexualidade seja o fato da impossibilidade de reprodução humana entre pessoas do mesmo sexo. Tal alegação, porém, cai por terra quando se lembra de que nem toda relação heterossexual visa a reprodução humana, seja por opção seja por algum tipo de problema biológico no casal. E quantas relações heterossexuais momentâneas e passageiras, estabelecidas apenas para uma fulgaz satisfação sexual, sem o menor compromisso e desejo de perpetuar a espécie humana, são contabilizadas todos os dias e nem por isso são condenadas. Mesmo casais heterossexuais, casados ou sob união estável, planejam a vida familiar e não tem nenhuma pretensão de ter filhos. Também nem por isso são condenados socialmente.

Basta um rápido exercício de um pouco de lógica para se perceber que a não regulamentação das uniões homoafetivas advém de preconceito e discriminação desprovidos de um mínimo de justificativa plausível.

Ainda há muitas barreiras a serem vencidas. Apesar do Estado, mais precisamente pela atividade jurisdicional, estar destinando alguma atenção às uniões homoafetivas por meio de decisões inovadoras, pode-se dizer que esta ainda se dá de forma bastante casuística e insuficiente para garantir os direitos dos envolvidos. O Estado-Juiz, de forma louvável, é quem ainda está dando a resolução aos casos que batem na porta do Judiciário. Porém, muitos magistrados, pode-se dizer a maioria, ainda se ressente de preconceito, discriminação e de gessamento incabível pela falta de norma expressa.

E mais. O Estado-Legislador é o mais negligente em face da sua inércia e por se deixar influenciar por correntes políticas e religiosas que insistem em emperrar a regulamentação da matéria. É como se a homossexualidade fosse uma doença, um câncer, por assim dizer, e que a regulamentação pelo Direito levasse a uma epidemia social. É preciso, entrementes, superar esse quadro de inércia legislativa incompatível com a ordem constitucional atual.

Além disso, registre-se, também se faz necessário que os nossos magistrados estejam mais preparados para o desafio que é dar a prestação jurisdicional aos envolvidos numa união homoafetiva. Para isso é que avançam a doutrina e a jurisprudência, esta última considerada o "direito vivo". O fato social, sempre a frente do Direito, por vezes baliza a produção normativa, que também vem atrás do passo das posições pretorianas. Diante da falta de normatização, parece que as vezes os tribunais decidem contra o Direito. Mas não é esse o caso. Não entendemos dessa forma.

Hans Kelsen, ao discorrer sobre o conteúdo da norma fundamental, assim ensinou:

É até necessário que exista a possibilidade de uma discrepância entre o ordenamento normativo e o âmbito do acontecimento efetivo com ele coordenado. Pois sem tal possibilidade um ordenamento normativo não tem absolutamente nenhum sentido. Não é preciso ordenar o que deve acontecer por necessidade natural. [...] É por isso que um ordenamento normativo tem de perder sua validade diante da realidade, que deixa de corresponder-lhe até certo grau. A validade de um ordenamento jurídico que regulamenta a conduta de determinadas pessoas encontra-se, portanto, em certa relação de dependência pelo fato de que a conduta dessas pessoas corresponde ao ordenamento jurídico – à sua eficácia, como se costuma dizer. [05]

Para o renomado autor, o ordenamento, para ser válido e eficaz, não pode ser confundido com a realidade. Esta última, por sua vez, retratada no fato social, servirá sempre de parâmetro e de teste para a validade do ordenamento. Se este não é testado, não progride, não avança. É preciso que seja testado, renovado, pela força da norma hipotética fundamental que se vê na realidade. E esse teste e renovação é realizado, em primeiro lugar, pelos magistrados. A estes é dado o privilégio de vivenciar em primeira mão a mudança social e de dar o primeiro passo na direção do avanço do ordenamento.

Ao falar sobre o trabalho da jurisdição nesse ordenamento válido, ensina Kelsen:

Essa função não possui – como o indica a terminologia juris dictio (dizer o direito - Recht-sprechung), judicatura (encontrar o direito – Rechts-Findung) e como é aceita na teoria – um caráter meramente declaratório, como está na lei – que é a norma geral – direito acabado, no pronunciamento ou na revelação de um ato do tribunal. A função da denominada jurisdição é muito mais constitutiva, criadora do direito, na verdadeira acepção da palavra. [...] Por isso a sentença judicial é uma norma jurídica individual, [...], a continuação do processo de produção do direito. Somente o preconceito, de acordo com o qual todo direito está contido na norma geral, a identificação errônea do direito com a lei, poderia obscurecer esse ponto de vista. [06]

Importa ressaltar das palavras ilustre autor, que a jurisdição não deve apenas dizer o direito, mas sim criar o direito. Isto porque, na sua conclusão, não pode ocorrer a equivocada idéia de que "todo direito está contido na norma geral, a identificação errônea do direito com a lei".

Por isso concluímos que, ao decidir com base em princípios e reconhecer uma união homoafetiva como uma família, não está o Judiciário decidindo contra a lei. Ao contrário, está ele criando ou aperfeiçoando o Direito a quem foi dado resguardar.

Sendo o "direito vivo", em sua forma pulsante e dinâmica, a jurisprudência, resultado da atividade da jurisdição, é quem na verdade representa a vontade social e pressiona o legislativo a normatizar o fato.

Assim, não se pode considerar que determinadas decisões sejam implementadas contra legem diante de uma lacuna normativa. Muito pelo contrário, ao exercer seu mister jurisdicional, ainda que na falta de lei, estão os julgadores levando em conta os fatos apresentados, coadunando-os com a Constituição Federal, aos ditames jurídicos vigentes e aos princípios gerais do direito.

Sabemos que as uniões estáveis homoafetivas serão brevemente regulamentadas e, assim espera-se, que seus efeitos jurídicos sejam assegurados a contento. Da mesma forma que o divórcio e a união estável eram tidos como socialmente inaceitáveis, mas depois, após anos e anos de decisões pretorianas que admitiram a sua implementação, foram admitidos e regulados pelo Direito, é certo que as uniões estáveis homoafetivas também serão reguladas. Preocupa-nos, entretanto, o abismo existente até essa regulamentação, em especial pelo fato de que a homossexualidade enfrenta muito mais do que o preconceito social, mas também o aspecto da natureza da relação. Diferentemente do divórcio e da união estável, as uniões estáveis homoafetivas enfrentam uma dificuldade de aceitação a mais: a relação ser oriunda de duas pessoas do mesmo sexo. Esse é o ponto nodal. É preciso encaixar na cabeça do legislador e de muitos magistrados que o fato da relação ser entre dois homens ou entre duas mulheres, não impede a existência do afeto limpo, familiar, sensível e amoroso.

Nessa fase lacunosa, fundamental se torna o trabalho do Judiciário. O problema é que a cultura da dogmática jurídica e do positivismo, que ainda impera no Brasil, encontra-se arraigada em boa parte da magistratura, levando a nação por vezes a enfrentar abismos aparentemente instransponíveis. A falta de visão principiológica, a ausência de valoração do espírito das leis, a falta de "vontade de constituição" (assim designada por Konrad Hess) [07], faz surgir os absurdos jurídicos dos mais variados. Verdadeiras anomalias surgem pela falta do genuíno senso de ser jurista. Ser jurista, na verdadeira acepção da palavra, não significa simplesmente verificar a existência de tipicidade legal e aplicá-la ao caso concreto. Afinal, esse trabalho mecânico de aplicar a norma ao caso concreto é o mesmo do vendedor de peças que a procura numa prateleira e, ao encontrá-la, vende ao cliente.

O Direito não pode ser visto como uma loja dividida em seções e com peças expostas nas prateleiras, apenas cabendo ao vendedor, o magistrado, por assim dizer, buscá-las e entregar ao interessado para resolver o seu problema.

O jurista que se preza não se reduz a um simples aplicador da norma (ou vendedor). Na ausência da peça, ou seja, não existindo uma norma específica para resolver o caso concreto, deve o verdadeiro jurista buscar a solução em normas análogas ou nos princípios que fazem a construção do sistema. Essa é a verdadeira exegese.

No Brasil, é preciso que se construa uma cultura jurídica diversa da dogmática e do positivismo. Na ausência de norma específica, não pode o caso concreto ficar sem solução, nem ser aparentemente solucionado, ou seja, ter um desfecho que leve a outras conseqüências negativas.

Interessante comentário fez o professor Paulo Bonavides ao ser indagado sobre seu pensamento acerca do constitucionalismo baseado em princípios, bem como se magistrados, advogados e promotores estariam preparados para essa prática jurisdicional. Disse ele:

A enorme dificuldade de estabelecer um constitucionalismo de emancipação nacional, fundado na flexibilidade fecunda dos princípios que, bem aplicados, têm a chave de todos os nossos conflitos, crises e problemas, deriva do despreparo da magistratura, a qual não se capacitou ainda, da importância superlativa que tem o direito constitucional em sua formação e no exercício da função judicante, em sua formação. É imperativo o estudo e o saber atualizado, para fazer justiça numa sociedade cada vez mais complexa e problemática, que somente pode ser governada com legitimidade, se formos fiéis e leais à Constituição. Esse é o maior dever que impende a juízes, advogados, procuradores, defensores públicos etc. As escolas da magistratura têm por tarefa mais urgente a educação constitucional do juiz, volvida para a formação de uma consciência principiológica, na aplicação do direito. Se falharem nessa missão pedagógica, não haverá maior predador futuro da Constituição que o magistrado das regras, o juiz da idade hegemônica do jusprivatismo, das estreitezas do positivismo jurídico, enfim, o juiz inanimado que a história embalsamou nos duzentos anos de Código de Napoleão. O princípio é vida; a regra, que o contravém, é decrepitude.(Grifo acrescentado). [08]

Não se pode conviver com o que o professor Paulo Bonavides chama de "magistrado das regras" e "juiz inanimado", nem com as "estreitezas do positivismo jurídico". Querer julgar apenas com base nas normas postas implica travar o Direito e impedir o progresso social. O que se disse acerca de "sociedade cada vez mais complexa" inclui os novos hábitos e costumes que batem às portas do Judiciário. Pouco importa se estes novos hábitos e costumes advém de uma minoria da população. O Estado tem o poder-dever de, uma vez ciente da existência de um novo quadro social, regulamentar os efeitos jurídicos dele procedentes.

Diante da falta de norma expressa regulamentando as uniões estáveis homoafetivas, estão as pessoas envolvidas, a depender da maturidade jurídica do magistrado, entregues a um estado de insegurança e ameaçadas em sua esfera afetiva, familiar, patrimonial e sucessória, além de enfrentar toda espécie de preconceitos.

Entretanto, antes de adentrar na defesa da regulamentação das uniões estáveis homoafetivas pelo Direito, é preciso entender um pouco sobre como algumas ciências, dentre elas a medicina legal e a psicologia, entendem (ou entenderam) a homossexualidade.

Para discorrer sobre a homossexualidade faz-se necessário, primeiramente, tentar conceituá-la. A homossexualidade ou homoafetividade, como é melhor designada, tem vários conceitos e definições. Basicamente pode-se dizer que a homossexualidade é a atração afetiva por uma pessoa do mesmo sexo. A palavra homossexual vem do grego homo, significando igual ou igualdade, e sexus vem do latim, significando sexo. Ou seja, a homossexualidade se relaciona com a igualdade de sexo. Sexo aqui deve ser entendido como identidade sexual, isto é, homem ou mulher, e não o ato de fazer sexo. Existe a homossexualidade masculina e a homossexualidade feminina.

A atração afetiva por pessoa do mesmo sexo não se resume apenas ao instinto sexual, ampliando-se à atração física, emocional, estética e espiritual. É lógico que, assim como há indivíduos heterossexuais que optam pela vida de solteiro, mantendo apenas relações avulsas e passageiras com o sexo oposto, há homossexuais que também escolhem não entrar numa união com o objetivo de conjunção de vida.

A união estável homoafetiva ou homossexual, portanto, envolve a convivência entre duas pessoas do mesmo sexo ligadas pelo elo da afetividade, bem como a conjunção e a construção de uma vida em comum.

Tanto o homossexual solteiro quanto aquele que adentra numa união homoafetiva duradoura enfrentam preconceitos.

Refletindo bem essa disposição preconceituosa, a homossexualidade ainda é muitas vezes designada como homossexualismo (ismo = sufixo) que denota anormalidade, doença, patologia:

Homossexualismo (Med. Legal) – Disfunção sexual consistente na tração sexual por pessoa do mesmo sexo, repudiando pessoas do sexo oposto. [09]

Homossexualismo (Med. Leg. E Psiq.)

Aberração do instinto sexual, de caráter psíquico, que consiste na prática ativa ou passiva de atos libidinosos entre pessoas do mesmo sexo. [10]

Como se vê, na Medicina Legal a homossexualidade é não raro ensinada como transtorno, distúrbio ou aberração sexual.

Não se questiona o fato de que todo ser humano nasce efetivamente da relação entre um homem e uma mulher, e não da relação entre um homem com outro homem ou de uma mulher com outra mulher. Essa é a "normalidade", por assim dizer, a "moralidade" passada de geração em geração.

Os caminhos traçados pelo estudo da psicologia e da psicopatologia forense, por sua vez, são de ajuda no entendimento dos motivos que levam à opção pela homossexualidade. Indaga-se, todavia, sobre quais as razões que levam a pessoa a optar pela homossexualidade.

A explicação de José Alves Garcia é no seguinte sentido (com grifo aditado):

Sobre o que é a "moralidade":

Em sua etimologia e em sua história, moralidade (mores) significa adesão tácita aos costumes considerados essenciais à saúde e à preservação da sociedade. Certos hábitos, estilos de viver, sistemas, tais como a monogamia, o respeito à vida, à honra e à propriedade, aos poucos tornam-se vitais para o grupo social, vinculam-se ao senso coletivo, erigem-se em imperativos categóricos, como diria Kant.

O senso moral:

Esse caráter de percepção imediata e súbita que possui a consciência moral, e que se assemelha a intuição sensível das coisas, fez com que se comparasse a um sentido especial, o senso moral. A expressão é devida aos filósofos ingleses, mas presta-se admiravelmente para categorizar o escrúpulo, o temor, o respeito ao alheio direito, o remorso, cuja ausência conduz o indivíduo à delinqüência por ignorância, insensibilidade e frieza, como se lhe faltasse o sentido para a ciência dos fatos morais e jurídicos.

Sobre o não atendimento ao senso moral:

Essa categoria de fatos, inacessível à experimentação, é, contudo, objeto de observação e de constatação, e preocupa o psicopatologista, do mesmo modo que o sociólogo e o filósofo. De todos os elementos da personalidade, não há um que seja menos constitucional do que o senso moral. As normas éticas desde a infância nós as recebemos do meio social como sugestões, como regras de conduta já feitas. Todavia, cada indivíduo se apresenta com o seu coeficiente de disposição temperamental, que funciona simplesmente como uma aptidão a sofrer e a conformar-se às máximas morais do seu grupo social. [11]

Embora a obra do professor Garcia se aplique precipuamente ao Direito Penal, sua avaliação, acima reproduzida, diz que o homem, moralmente falando, tem dois momentos: primeiro, recebe ele valores sociais tidos como verdadeiros dogmas e imperativos sociais; e, num segundo e derradeiro momento, ele desenvolve seu próprio senso moral, nas quais são avaliadas as suas tendências e aonde ele toma para si as normas éticas e sociais como sugestões. Antes mesmo do desenvolvimento de seu senso moral, um elemento pode surgir e ser fator determinante para o atendimento ou não ao senso moral comum: seu "coeficiente de disposição temperamental".

Esse "coeficiente de disposição temperamental", em nosso entender, reflete o que se conhece mais comumente como livre-arbítrio, ou seja, o poder de decidir os rumos da própria vida, de fazer escolhas, que podem ser valoradas como boas ou más, ou como não sendo nem boas nem más, pois interessa apenas a quem faz a escolha. Por óbvio, o indivíduo arcará com as conseqüências decorrentes de suas ações, em especial se elas forem tidas como más aos olhos da sociedade e do Estado.

Outro ponto a ser destacado do ensinamento do Dr. Garcia é a diferenciação entre os "fatos morais e jurídicos". Efetivamente, não se pode misturar as duas coisas, pois um advém de costumes e do senso comum coletivo, podendo ser ou não relevantes, e o outro se origina de sua relevância social, exigindo uma tomada de atitude por parte do Estado.

Trazendo a análise supra ao tema central da presente obra, a conclusão a que se chega das palavras do professor Garcia é que a homossexualidade, que rompe com a barreira do senso comum, não é uma doença, mas sim um fato social relevante e um fato jurídico pelos efeitos decorrentes, sendo oriundo do exercício do livre-arbítrio ou, como disse o nobre cientista, do "coeficiente de disposição temperamental". A meu ver, a opção de ser homossexual nasce de uma necessidade do indivíduo, que se sente melhor ao lado de uma pessoa do mesmo sexo. Ao sentir essa necessidade, tem a pessoa o direito de escolher. É uma questão de individualidade e de felicidade. A escolha de ser homossexual não é nem boa nem má para a sociedade. Essa decisão afeta apenas os envolvidos no afeto homossexual, não atingindo a todo o conjunto social.

Quando a homossexualidade leva à existência de uma união estável homoafetiva, deve-se lembrar que ela somente é possível pelo encontro de vontades de duas pessoas homossexuais, sejam do sexo feminino, sejam do sexo masculino. Logo, não podemos enxergá-las como danosas à sociedade, nem como doença, nem como boas nem más. A escolha é do indivíduo. Advém da liberdade assegurada a todos, que inclui o direito de liberdade de fazer escolhas.

Em relação a Medicina Legal, o professor Genival Veloso França expõe três correntes que tentam explicar as razões da homossexualidade:

Há homossexuais em todas as idades, desde a infância até a velhice. Três hipóteses explicam a homossexualidade: a intelectiva ou educacional (Kraft-Ebing); a psicogênita (fixação da libido de Freud); e a endocrinológica (intersexualidade de Maranón). [...] No entanto, o problema do homossexualismo continua a desafiar o mundo, principalmente pela sua repercussão e pelo seu crescimento exagerado em todas as partes. A psicologia e a psicanálise disputam a primazia da elucidação de tão sério problema. [12]

Por estas correntes [13], nota-se que não há doença na homossexualidade, mas sim a influência, involuntária sob o aspecto cognitivo do indivíduo, de fatores educacionais e biológicos herdados. [14]

Interessante mencionar, contudo, que a obra do professor Genival Veloso de França classifica a homossexualidade (homossexualismo) como transtorno da sexualidade.

Antes de expor a sua conceituação acerca da homossexualidade, o professor assim define sexualidade e instinto sexual, associando-os ao que ele chama de "distúrbios, transtornos, perversões e alterações da identidade sexual":

Faz parte da sexualidade de um indivíduo seu instinto sexual. Esta qualidade se manifesta pela atração sexual que ele tem por outra pessoa, levando em conta certos valores culturais positivos construídos como um patrimônio durante toda a sua existência. Se este instinto se equilibra dentro de padrões de normalidade, teremos o ideal. Todavia, vez por outra, surgem distúrbios, transtornos, perversões e alterações da identidade sexual capazes de comprometer a segurança das pessoas e o equilíbrio da sociedade.(Grifo aditado). [15]

Note-se que, no dizer do professor França, a definição do que sejam distúrbios ou transtornos sexuais envolve o comprometimento de dois aspectos: segurança das pessoas e equilíbrio da sociedade. Mas como a homossexualidade colocaria em risco a "segurança das pessoas" e o "equilíbrio da sociedade"?

Segurança das pessoas. É bem verdade que a busca do prazer sexual pode originar frustração nas pessoas. Apesar de haver o risco de que essa frustração possa ser cobrada da sociedade por meio de atos de violência, por exemplo, não se pode aferir que a frustração pessoal e individual possa colocar em risco a segurança geral das pessoas. O exercício do ato sexual é direito personalíssimo, sendo praticado pelo homem desde a sua constituição. Com quem será compartilhado, aonde e como é decisão pessoal, íntima e privada da pessoa. Se houver alguma frustração por conta das escolhas feitas não se pode enxergar nisso uma ameaça à segurança social. Se alguém, por motivo de uma frustração surgida em sua intimidade, resolve colocar em risco a segurança das pessoas, entende-se que cabe ao Direito sancionar qualquer conduta danosa. Além disso, a possibilidade de frustração sexual não é inerente apenas aos homossexuais, mas também aos heterossexuais.

Abordando o crime e o ciúme nas relações homossexuais, a obra de Roque de Brito Alves faz a seguinte exposição:

Sem dúvida, o ciúme em termos de posse ou de exclusivismo sentimental e sexual é mais necessário para o homossexual, tornando-o uma obsessão delirante, quase mórbida. O medo de um possível abandono ou desprezo pelo parceiro assim como é mais permanente a ameaça contra a relação não comum, desajustada, desviada entre dois seres de um mesmo sexo. Então, mais fácil ou premente será a reação, o impulso para a violência criminosa. O ciumento homossexual é mais possessivo e agressivo que o heterossexual.

Consciente ou inconscientemente, o sentimento de seu desvio sexual, torna desesperado e mais inseguro psicologicamente o homossexual em relação ao outro. [...] Com efeito, além da natural precariedade de suas relações, de sua situação psicossocial, preocupa-se o homossexual por ter de enfrentar como possíveis inimigos ou rivais dois personagens: um outro homem e uma mulher na relação homossexual masculina ou uma outra mulher ou um homem na feminina (lesbianismo). [16]

Não há como discordar da exposição feita por Roque de Brito Alves, pois a intensidade do ciúme de um indivíduo homossexual é realmente maior que a do heterossexual. Entrementes, o fato da existência dessa maior intensidade quanto ao sentimento negativo que é o ciúme, não justifica o preconceito enfrentado pelos homossexuais, nem justifica a ausência de regulamentação jurídica sobre as uniões estáveis homoafetivas e seus efeitos jurídicos. E, mais importante, não faz do homossexual um perigo social, pois crimes por ciúmes (passionais) são praticados todos os dias por indivíduos heterossexuais. Logo, o maior perigo de crimes passionais advém das relações heterossexuais.

Um parêntese. Neste trabalho, é preciso frisar, não se objetiva discorrer sobre sexologia nem distúrbios do sexo. É necessário, no entanto, pontuar que o dilema vivido socialmente é a luta entre a heterossexualidade e a homossexualidade, partindo-se da falsa premissa que a primeira detém a normalidade e a segunda a imoralidade ou anormalidade. É bem verdade que, sob o ponto de vista da natureza humana e da reprodução, bem como do Direito Natural, admite-se que a heterossexualidade é um "comando de fábrica" do ser humano. Porém, tendo surgido a opção de outros comandos sexuais, inseridos no decorrer da história humana, não pode o Direito se furtar de proteger os efeitos jurídicos deles decorrentes. Por certo, não há nada de normal que não possa ser alterado, sofrendo inserções e elementos supervenientes, posto que não afetam a composição geral dessa dita normalidade.

Equilíbrio social. Com relação ao que França chama de "equilíbrio social", deve-se lembrar que a homossexualidade é opção mínima, escolhida por uma minoria. E essa minoria, nos parece, sempre existiu. Talvez nenhum dos grandes eventos mundiais, registrados pela História, que puderam trazer efetivo abalo ao equilíbrio das sociedades, teve origem em práticas homossexuais. A questão do equilíbrio social pode até ser mencionado tomando por base a questão da reprodução humana e do envelhecimento populacional. Porém, estatisticamente não há referência que possa colocar a culpa desse evento em qualquer dos chamados distúrbios sexuais, muito menos na homossexualidade.

Continuando a sua exposição, passando aos transtornos sexuais em espécie, França expõe acerca da homossexualidade e sua origens:

Na Caldéia, o mais antigo berço da civilização, encontra-se os primeiros vestígios dessa conduta. A lei mosaica punia com severidade, e o fogo do céu destruiu Sodoma, cujos habitantes tentaram violentar os dois anjos hospedados na casa de Loth.[...] Freud dizia que o homossexual no íntimo busca a mulher. Oscar Wilde, em suas confissões, acentua que o homossexualismo seria um desvio para encontrar a feminilidade. [17]

Da sua avaliação sobre o tema, cabe ressaltar a conclusão do professor França:

Seja qual for a sua etiologia, o homossexual tem de ser encarado como alguém que fez uma opção sexual e não como antes, um caso estritamente médico. [18]

É de interesse acadêmico e jurídico ressaltar a conclusão a que chegou o professor França, profissional da área médica: a homossexualidade não é um caso médico, mas sim um fato social advindo de uma opção sexual.

Acrescentaríamos, ainda, que é uma opção sexual individual, com efeitos recíprocos quando envolve uma união estável homoafetiva, duradoura e com meta de conjunção de vida, que visa a busca da felicidade. Para nós, acerta-se que a homossexualidade não é uma doença. Quando muito admito dizer que a homossexualidade é uma escolha não natural na busca de prazer sexual e da felicidade. Mas não admitiria a afirmação de que é imoral ou antiética, pois entendo que a sua prática não fere a nenhum direito social, não atinge a nenhum bem da vida, nem ao direito personalíssimo de ninguém.

Deve-se lembrar que a homossexualidade é o exercício de uma individualidade, relacionada com a intimidade e a vida privada da pessoa. É uma escolha que a ninguém cabe condenar, mas sim respeitar. Não sendo homossexual o restante do grupo social, não pode este condenar aqueles que optaram por este caminho. Não pode esta minoria ser desassociada, desprezada, discriminada e marginalizada, ou seja, colocada à margem da lei. Isto porque, todos os direitos e garantias fundamentais ao indivíduo, assegurados pela Constituição Federal, incluindo ai os princípios republicanos, os objetivos da República Federativa do Brasil, os direitos sociais, os direitos políticos, os direitos da nacionalidade, os direitos da ordem financeira e tributária, e os direitos da família, da criança, do adolescente e do idoso, continuam pertencendo ao indivíduo homossexual. Todos esses direitos não se apagam pela sua opção sexual.

Nesse viés, é preciso entender o que é marginalizar. O sentido maior dessa palavra está em colocar à margem. Mas à margem de quê? Da sociedade e/ou da lei. Porém, no geral as pessoas usam-na para designar a prática usual de crimes, chamando o indivíduo que seja infrator contumaz de ‘marginal’. No entanto, existem os marginalizados que nada fizeram contra a lei nem contra a sociedade, nem praticaram nenhum crime, mas que assim são tratados.

De fato, ao serem ignorados e não receberem do Estado a devida atenção jurídica e diretiva, pode-se dizer que aqueles que optam pela homossexualidade, especialmente se escolheram o ingresso numa união estável homoafetiva, estão marginalizados, isto é, vivem à margem da lei. Mas este viver à margem da lei não advém de terem praticado algo contra a lei, mas sim que a lei não lhes dá a atenção merecida. Encontra-se ausente o cumprimento de um direito subjetivo público a eles inerente: a atividade do Estado-Legislador a quem cabe determinar os parâmetros jurídicos dos envolvidos.

Uma vez estabelecido que a homossexualidade não é uma doença, como se viu da análise supra, resta lutar pela atenção efetiva do Estado no uso das ferramentas do Direito.

Como a homossexualidade envolve a escolha pessoal e individual que uma pessoa faz no exercício de sua esfera juridicamente protegida da intimidade e da vida privada, podendo afetar, pela instituição de uma união estável homoafetiva, a esfera juridicamente protegida de outra pessoa, esse fato deve se tornar, então, objeto cognitivo do Direito, devendo preocupar o jurista.

Efetivamente, não pode o Estado negligenciar esta realidade sócio-afetiva e simplesmente ignorá-la. O temor de desagradar a correntes religiosas; o medo da perda de sua base eleitoral; a incompatibilidade entre o que diz o texto constitucional sobre a origem de uma família; seja lá por qual motivo for, nada é capaz de justificar o silêncio incabível do Estado, que pode também ser chamado de negligência, em não regulamentar as uniões estáveis homoafetivas, cujo teor já se transformou num fato social com reflexos jurídicos sobre os envolvidos.

No decorrer do século passado, alguns países avançaram e atualizaram seus sistemas jurídicos ao inserir a regulamentação das uniões estáveis homoafetivas.

Foi o caso dos países que reconheceram as uniões homoafetivas e passaram a admitir, em todo o seu território, o CASAMENTO entre homossexuais, como a Holanda em 2001, a Bélgica em 2003, a Espanha e o Canadá em 2005, e a Colômbia em 2007. No caso específico da Colômbia, esta se tornou o "primeiro país da América Latina a garantir plenos direitos à união homossexual". [19]

Nos Estados Unidos, tendo em vista a verdadeira autonomia jurídica e constitucional de seus Estados, o tratamento dado às uniões homoafetivas não é igual em todo o país. Em "Massachussets permite-se o casamento entre homossexuais desde 2004, na cidade de São Francisco, e nos Estados de Vermont e Connecticut admite-se o registro das parcerias. Em outros locais, como, por exemplo, na Geórgia, tais uniões são expressamente proibidas". [20] Assim, dos países em que apenas parte de seu território são reconhecida as uniões homoafetivas, tem-se que em 1997 os Estados Unidos com 10 Estados da federação; em 2003 a Argentina em Buenos Aires e Rio Negro (reconhecimento como união civil); em 2004 a Austrália apenas na Tasmânia; em 2004 a Itália em dez regiões; e em 2006 no México na Cidade do México e no Estado de Coahuila (união civil). [21]

Inicialmente, a regulamentação se deu nos países escandinavos, que reconheceram as uniões homoafetivas e passaram a admiti-las como parcerias homossexuais. Foi o caso da Dinamarca em 1989, da Noruega em 1993 e da Suécia em 1994. Esse avanço acabou por influenciar outros paises, que também passaram a reconhecer estas parcerias, como Israel em 1994, a Islândia, a Hungria e a Groelândia em 1996, a França e a África do Sul em 1999, a Alemanha, a Portugal e a Finlândia em 2001, a Inglaterra em 2002, a Croácia em 2003, Luxemburgo em 2004, Nova Zelândia e Reino Unido em 2005, Andorra, República Tcheca e Eslovênia em 2006, e a Suíça em 2007. [22]

Ao assim procederem, estes países reconheceram essas uniões como fato social, delimitaram os direitos dos envolvidos e não deixaram os efeitos decorrentes dessas relações a margem da lei. A regulamentação, portanto, possibilitou uma segurança jurídica e a certeza de tratamento equânime e igual a todos os que optaram pela homossexualidade para estabelecer sua família e sua felicidade de vida. O que a lei fez nestes países foi apenas reconhecer que não poderia o Estado fechar os olhos a um novo desenho social nem ao fato de que as pessoas, no exercício de sua esfera jurídica privada, resolveram publicizar o afeto existente por uma pessoa do mesmo sexo e estabelecer, sem falsos pudores, a sua comunhão de vida homoafetiva.


Notas

  1. O amor humano pode ter três sentidos ou raios de ação diferentes, podendo os três serem simultaneamente exercidos: o amor cristão, advindo do senso de religiosidade e de congregação, objetivando o proselitismo e a manutenção da força do grupo religioso, tendo Jesus Cristo se referido a ele ao exortar seus seguidores "amai ao próximo como a si mesmo" (amor do grego agape); o amor que envolve a compaixão inerente ao ser humano (amor do grego filia); e o amor sexual, erótico, que busca em outra pessoa a realização sexual, reprodutiva ou não reprodutiva (amor do grego eros). Entendemos que o afeto pode ter os mesmos sentidos do amor, pois aquele é elemento deste, isto é, o afeto é elemento inafastável do amor. Afinal, não faz sentido que o indivíduo sinta amor por alguém sem nutrir afeição por ele. Este afeto, tanto nas relações heterossexuais quanto nas homossexuais, pode ser exercido em sua plenitude (agape + filia + eros), quando daí surge uma união estável (hetero ou homoafetiva), como pode ter apenas o afeto eros, ou seja, uma relação passageira e fulgaz na busca tão-somente da satisfação sexual momentânea.
  2. DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. pp. 212, 296, 300.
  3. DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. p. 298.
  4. DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. p. 311.
  5. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Versão condensada pelo próprio autor. Tradução de J. cretella Jr. E Agnes Cretella. 4ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 99.
  6. Idem, p. 106.
  7. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. pp. 5, 21, 24, 27.
  8. http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=568278 / Futuro das constituições está na democracia participativa. Fortaleza: Diário do Nordeste, 31/08/2008. Caderno Um. Opinião. Página 4.
  9. Dicionário jurídico. 6ed. São Paulo: Rideel, 2002. p. 80.
  10. Dicionário jurídico de bolso: terminologia jurídica, termos e expressões latinas de uso forense. 15ed. Campinas: Millennium, 2002. p. 143.
  11. GARCIA, José Alves. Psicopatologia forense. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 17.
  12. FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 7ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004. p. 234.
  13. "A origem da homossexualidade, tanto masculinas quanto feminina, é variável. Para alguns autores, é educacional, para outros psicogênica ou ainda hormonal" (DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina legal. São Paulo: Saraiva, 2005. Coleção Curso & Concurso / coordenação de Edílson Mougenot Bonfim. p. 203).
  14. Não é pretensão, no presente trabalho, se descer a minúcias quanto às explicações científicas para a escolha pela homossexualidade. Ao se fazer menção a algumas dessas correntes, objetiva-se apenas demonstrar a existência de vários ensinamentos e linhas de pesquisas científicas sobre o assunto, ressaltando-se que há várias outras correntes.
  15. FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 7ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004. p. 228.
  16. ALVES, Roque de Brito. Ciúme e crime. Crime e loucura. Rio de Janeiro: Forense, 2001. pp. 77, 78.
  17. FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 7ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004. p. 234.
  18. Idem, ibidem.
  19. TONI, Cláudia Thomé. Manual de direitos dos homossexuais. São Paulo: SRS Editora, 2008. pp. 13, 14.
  20. TONI, Cláudia Thomé. Manual de direitos dos homossexuais. São Paulo: SRS Editora, 2008. p. 13.
  21. Idem, ibidem.
  22. Idem, pp. 12, 13.
Sobre o autor
Michel Mascarenhas Silva

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Advogado. Professor da Universidade Federal do Ceará-UFC, da Universidade de Fortaleza-UNIFOR e da Faculdade Sete de Setembro-FA7.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Michel Mascarenhas. A homossexualidade e o afeto . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2952, 1 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19672. Acesso em: 24 nov. 2024.

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