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Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil

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Agenda 22/08/2011 às 12:37

IV-CONCLUSÃO

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, um dos sub-princípios do Estado de Direito é o princípio da legalidade, cuja significação é a de que ninguém pode ser constrangido arbitrariamente a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, senão em virtude de uma pauta predeterminada e pública que é denominada de lei [43]. O princípio da legalidade, na forma como é contemporaneamente identificado, carrega consigo dois valores, o da Justiça – pois a lei em uma sociedade democrática é fruto de uma deliberação em que o povo, direta ou indiretamente, chega a um consenso sobre o que considera melhor para a sociedade, tendo cada indivíduo o mesmo impacto e a mesma possibilidade de influenciar no resultado final – e o da Segurança – pois a lei antevê as hipóteses do mundo dos fatos que terão uma conseqüência jurídica caso venham a ocorrer, trazendo, portanto, previsibilidade às condutas individuais.

O ativismo judicial, fruto da opção por uma posição substancialista, desafia ambos os valores inerentes ao princípio da legalidade. Primeiro, porque em questões de grande relevância para a sociedade – como nos casos dos desacordos razoáveis – a decisão final cabe aos tribunais, compostos por membros não-eleitos e não-representativos. Segundo, porque, nos casos ditos difíceis, o texto constitucional simplesmente não diz nada sobre qual posicionamento a Corte Constitucional deve adotar, de maneira que o resultado de um caso constitucional permanece indefinido até o pronunciamento final da Corte. A previsibilidade restringe-se a uma análise do perfil e do comportamento dos juízes que compõem o tribunal.

Assim, ao menos no campo teórico, não há um argumento definitivo em favor de uma Jurisdição Constitucional substantiva. Trata-se, então, de uma questão de filosofia política, eleger qual estrutura institucional é a mais adequada para decidir determinados assuntos em nome da coletividade. Questões de direitos fundamentais normalmente envolvem desacordos razoáveis, que não serão definitivamente resolvidos por uma decisão judicial, o que leva a refletir sobre as reais conseqüências da adoção do atual modelo de controle de constitucionalidade.


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Notas

  1. Para obter o inteiro teor dos discursos dos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, acessar: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/posseGM.pdf e http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/discursoCM.pdf (Último acesso em 11/09/09).
  2. Sobre a classificação entre as formas de controle de constitucionalidade, cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 35ª edição – São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 36-38.
  3. Neste ponto, é importante ressaltar que a Representação Interventiva - primeiro procedimento de controle de constitucionalidade de índole abstrata adotado pelo Brasil - foi criada ainda em 1965, por meio da EC n. 16. Entretanto, somente com a Constituição Federal de 1988 é que o modelo objetivo passa a ter a prevalência dos dias atuais. Para uma análise evolutiva do controle de constitucionalidade no Brasil, cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direito Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. ver. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189-217.
  4. RAMOS, Elival da Silva. A Evolução do Sistema Brasileiro de Controle de Constitucionalidade e a Constituição de 1988. In: MORAES, Alexandre (coord). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009, pg. 159.
  5. Neste sentido, cf. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil Vol. 3. 4ª edição. Salvador: Jus Podium, 2007, pg. 274-280.
  6. Entre os defensores das teorias substancialistas, destaca-se o Professor norte-americano Ronald Dworkin. Já entre os doutrinadores procedimentalistas, assumem relevância os ensinamentos de Jürgen Habermas e John Hart Ely.
  7. Para uma apresentação geral das teorias substancialistas e procedimentalistas da Constituição, cf. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a teoria da Constituição. In: TAVARES, André Ramos et al. Constituição Federal: mutação e evolução, comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003.
  8. A adoção pelo posicionamento substancialista é tão evidente no Brasil que é comum encontrarmos na imprensa frases do tipo "O controle da constitucionalidade das leis é decisivo para o funcionamento do Estado de Direito, na medida em que assegura direitos e garantias fundamentais para os cidadãos", como publicado pela Folha de São Paulo em seu editorial no dia 16 de maio de 2009.
  9. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 83-85.
  10. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2003, pg. 51.
  11. Kelsen afirma que, eventualmente, a Constituição pode conter aspectos materiais, como direitos fundamentais, citando como exemplo a Constituição americana, mas tal ponto não é o de maior relevância para sua teoria. Ele é enfático em afirmar que "como quer que se defina a Constituição, ela é sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender". In: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 130.
  12. Stanley L. Paulson clarifica esta estrutura: "That is, one legal norm governs the process whereby another legal norm is created – and the idea applies to the full range of legal norms in the hierarchical structure. (…) the constitution that serves as the fundamental positive-law rule – more precisely, the set of fundamental positive-law rules – determining the organs and procedures provide for the remaining Stufen or levels of the hierarchy." In: Constitutional Review in the United States and Austria: Notes on the Beginnings. Ratio Juris, nº. 16, pg. 234.
  13. Kelsen afirma que antes da Constituição haveria uma norma supremo-transcendental, denominada de Groundnorm (norma fundamental), desprovida de qualquer conteúdo material, em que se estabelece apenas um dever-ser de se obedecer a Constituição vigente. Cf. Teoria Pura do Direito, Cap. 5.
  14. Nessa linha, é o ensinamento de Giorgio Bongiovanni, segundo o qual "Na reflexão de Kelsen, o controle de constitucionalidade das leis é o necessário correlativo jurídico da supremacia do ordenamento jurídico e do primado da Constituição. Como observa Kelsen, ‘uma Constituição que falte a garantia do anulamento dos atos constitucionais não é, em sentido técnico, completamente obrigatória’. ‘A garantia jurisdicional, a saber, a justiça constitucional´, é por isso um meio técnico voltado ‘para assegurar o exercício regular das funções do Estado’, que, a partir da estrutura hierárquica do ordenamento e da idéia da legislação como ‘aplicação do direito’, se traduz na avaliação de ‘regularidade’ das leis, ou seja, da correspondência entre o grau inferior e um grau superior do ordenamento jurídico’’. BONGIOVANNI, Giorgio. Estado de Direito e justiça constitucional: Hans Kelsen e a Constituição austríaca de 1920. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). Estado de Direito: História, Teoria, Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 408.
  15. Assim, Kelsen aduz que "A norma a ser executada, em todos esses casos, forma apenas uma moldura dentro do qual são apresentadas várias possibilidades de execução, de modo que todo ato é conforme a norma, desde que esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de algum sentido possível. Entendendo-se por interpretação a verificação do sentido da norma a ser executada, o resultado dessa atividade só pode ser a verificação da moldura, que representa a norma a ser interpretada e, portanto, o reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro dessa moldura". In: Teoria Pura do Direito, p. 116.
  16. KELSEN, Hans. Judicial Review of Legislation: A Comparative Study of the Austrian and the American Constitution. The Journal of Politics, Vol. 4, No. 2, pg. 185 (1942). (tradução livre)
  17. PAULSON. Op. Cit. pg. 235.
  18. Neste aspecto, é importante frisar que, na obra Jurisdição Constitucional de Kelsen, há um famoso trecho citado como justificativa para o controle de constitucionalidade com base em direitos fundamentais em que o autor afirma que "ao lado dessa significação geral comum a todas as constituições, a jurisdição constitucional também adquire uma importância especial, que varia de acordo com os traços característicos da Constituição considerada... Garantindo a elaboração constitucional das leis, e em particular sua constitucionalidade material, ela é um meio eficaz da minoria contra os atropelos da maioria". (p. 181) Entretanto, logo no início do parágrafo seguinte, Kelsen deixa claro seu posicionamento, afirmando que "é certamente no Estado federativo que a jurisdição constitucional adquire a mais considerável importância. Não é excessivo afirmar que a idéia política do Estado federativo só é plenamente realizada com a instituição de um tribunal constitucional". (p. 182)
  19. "Mas, precisamente no domínio da jurisdição constitucional, elas podem desempenhar um papel extremamente perigoso. As disposições constitucionais que convidam o legislador a se conformar à justiça, à equidade, à igualdade, à moralidade poderiam ser interpretadas como diretivas concernentes ao conteúdo das leis. Equivocadamente, é claro, porque só seria assim se a Constituição indicasse um critério objetivo qualquer.... É claro que a Constituição não entendeu, empregando uma palavra tão imprecisa e equivoca quanto a de justiça, liberdade, igualdade, moralidade, ou qualquer outra semelhante, fazer que a sorte de qualquer lei votada pelo Parlamento dependesse da boa vontade de um colégio composto de uma maneira mais ou menos arbitrário do ponto de vista político, como o tribunal constitucional. Para evitar tal deslocamento de poder – que ela com certeza não deseja e que é totalmente contra-indicado do ponto de vista político – a Constituição deve, sobretudo se criar um tribunal constitucional, abster-se desse gênero de fraseologia, e se quiser estabelecer princípios relativos ao conteúdo das leis, formulá-los da forma mais precisa possível." In: Jurisdição Constitucional, pg. 169.
  20. FREEMAN, Michel. Human Rights – an interdisciplinary approach. Cambridge: Polity Press, 2002, pg. 32.
  21. GEARTY, Conor. Can Human Rights Survive? Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pg. 50.
  22. GEARTY. Op. Cit. pg 19. (ênfase adicionada)
  23. Sobre a distinção entre conceito e concepção, cf. DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, pg. 74-75.
  24. Sobre a distinção entre os pontos de vista externo e interno do ordenamento jurídico, cf. HART, Herbert. The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1994, pg. 89-91.
  25. A idéia de juiz Hércules ideal é desenvolvida por Ronald Dworkin em suas obras sobre filosofia do direito. Para análise de sua formulação, cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pg. 164-203.
  26. Para uma análise da natureza dos princípios em Ronald Dworkin, cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. A hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pg. 57-64.
  27. Neste sentido, o caso Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954), em que a Suprema Corte americana declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas (doutrina do "Separate but Equal"), revela-se como o mais emblemático caso em que o ativismo judicial demonstrou ser efetivo na correção de desvios sociais. Este caso é sempre (o mais) citado por aqueles que defendem uma tese substancialista de legitimação da Jurisdição Constitucional.
  28. Atualmente, quase todas as faculdades de Direito de ponta dos Estados Unidos possui em seus quadros críticos da atual prática de "judicial review" levada a cabo pela Suprema Corte americana. Neste diapasão, confira as obras de Mark Tushnet (Harvard), Larry Kramer (Stanford), Jeremy Waldron (NYU) e Akhil Amar (Yale).
  29. Entretanto, uma série de outras críticas pode ser feita tomando como base o referencial teórico descrito no item anterior. Para uma análise mais aprofundada dessas críticas, cf. GALVÃO, Jorge. Concentração de Poder da Jurisdição Constitucional: Uma Análise Crítica de seus Pressupostos Teóricos. (no prelo)
  30. Conferir a discussão atual sobre a regulamentação da lei de crimes cibernéticos, denominada de Lei Azeredo. Até mesmo o presidente Lula, em 06/06/09, criticou a proposta, afirmando que o objetivo da lei é o de fazer censura. No mesmo sentido, em 17 de dezembro 2004, a Câmara dos Deputados rejeitou o projeto de lei, enviado pelo Executivo, que criava o Conselho Federal de Jornalismo. A celeuma tomou grandes proporções nos meios de comunicação nacionais de maneira que o único caminho a seguir era o de sua não aprovação.
  31. Neste sentido, duas das principais democracias modernas adotam posições díspares neste tópico, sem que isso implique em dizer que uma ou outra é mais ou menos democrática. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte declarou a constitucionalidade das manifestações públicas anti-semitas, sob o argumento da liberdade de expressão (R.A.V. v.City of St. Paul, 505 U.S. 377, 1992), enquanto que a Corte Constitucional alemã repudia qualquer ato que implique discriminação contra os judeus, como no caso denominado de Holocausto Denial Cases (BVerfGE 90, 241). Para uma discussão teórica sobre as duas aproximações, cf. ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitutional Jurisprudence: a Comparative Analysis. Cardozo Law Review, nº. 24, pg. 1523 (2002-2003)
  32. BESSON, Samantha. The Morality of Conflict: Reasonable Disagreement and the Law. Oxford: Hart Publishing, 2005, pg. 1.
  33. WALDRON, Jeremy. A Right-Based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies, no. 1, pg. 13, (1993).
  34. Neste sentido, a doutrina americana classifica os casos Dread Scott v. Sandford, Plessy v. Ferguson e os referentes à chamada "Lochner Era" como desastres constitucionais no que se refere aos direitos fundamentais dos cidadãos.
  35. Em seu livro O Império do Direito (São Paulo: Martins Fontes, 2003) Ronald Dworkin é bastante evasivo neste ponto, afirmando que nesta obra não entraria no debate acerca da existência de uma moralidade objetiva, e que ele se utiliza da "linguagem da objetividade não para dar a nossas afirmações morais ou interpretativas habituais um fundamento metafísico bizarro, mas apenas para repití-las, talvez de um modo mais preciso, para enfatizar ou qualificar seu conteúdo" (pg. 99-100). Entretanto, em um artigo mais recente, Objectivity and Truth: You´d Better Believe it, em Philosophy & Public Affairs, Vol. 25 (1996), pg. 87-139, Dworkin é bastante claro sobre o seu ponto de vista. Ao contrário do que deu a entender em seu livro, agora ele não parece mais achar ser possível haver um debate frutífero acerca deste tema.
  36. Para uma defesa deste ponto de vista – de que o controle jurisdicional das leis seria justificável em virtude da existência de uma moralidade objetiva – cf. MOORE, Michel. Law as a Functional Kind. In:GEORGE, Robert. Natural Law Theory: Contemporary Essays. Oxford: Oxford Univ. Press 1992.
  37. WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, pg. 187.
  38. De fato, em uma sociedade plural, em que o Judiciário revela-se bastante heterogêneo, é comum que haja juízes com visões interpretativas antagônicas. Nesse aspecto, para a análise de duas posições hermenêuticas distintas entre dois juízes atuais da Suprema Corte americana, compare Stephen Breyer, Active Liberty: Interpreting Our Democratic Constitution (Alfred A. Knopf, 2006) com Antonin Scalia, A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law (The University Center for Human Values Series, 1997).
  39. FULLER, Lon. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review, nº. 92, pg. 353 (1940).
  40. WALDRON, Jeremy. The Core of the Case against Judicial Review. Yale Law Journal, Vol. 115 (2006), pg. 1336.
  41. ALEINIKOFF, Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing. Yale Law Journal, Vol. 96 (1987), pg. 943. O autor acrescente que com a ponderação o Judiciário não apenas participa da criação de políticas públicas, mas também acaba por tratar de maneira similar aos direitos fundamentais genuínos – que deveriam prevalecer na esfera pública - os mais diversos interesses da sociedade.
  42. HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Massachusetts: Polity Press, 1996, pg. 259.
  43. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 179-181.
Sobre o autor
Jorge Octávio Lavocat Galvão

Procurador do Distrito Federal e Advogado. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Teoria do Direito pela New York University - NYU, pós-graduado em Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science - LSE e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2973, 22 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19822. Acesso em: 17 nov. 2024.

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