CAPÍTULO II – A DEFESA NO PROCESSO
Para constituir o arcabouço de leis que formará o sistema jurídico do Estado no que concerne à sistemática processual, não poderá o mesmo se desviar dos valores constitucionais dantes mencionados sob pena de invalidade. De sorte que deve prevalecer o fundamento maior que procede de uma ordem caracterizada pelo Estado Democrático de Direito mencionado, fazendo surgir a ordem legal pautada nessa concepção, criadora de direitos que se compõem da convergência entre si e com os princípios constitucionais. O legislador deve, então, conciliar os interesses dos sujeitos de direito existentes na sociedade. Salienta Luiz Guilherme Marinoni:
Atualmente, como se reconhece que a lei é o resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso frequentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos, torna-se evidente a necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em consideração os princípios de justiça. [30]
Portanto, o processo deve trazer para si o suporte político no qual se fundamentará esse arcabouço de leis, gerando um sistema jurídico processual voltado para os princípios constitucionais que embasam a proteção aos direitos fundamentais de todo cidadão.
2.1. A Busca da harmonização dos princípios
O Código de Processo Civil, conforme mencionado anteriormente, como lei ordinária que é, deve estar em consonância com os princípios constitucionais que o legislador buscou prestigiar. Pedro Lenza explicita que "a lei e, de modo geral, os Poderes Públicos, então, devem não só observar a forma prescrita na Constituição, mas, acima de tudo, estar em consonância com o seu espírito, o seu caráter axiológico e os seus valores destacados" [31](grifos originais). Nessa busca, participam todos os pensadores e operadores do Direito Processual no sentido de obter a simetria da carga axiológica constitucional dentro do nosso ordenamento jurídico, procurando agregar o conhecimento produzido, visando uma desenvoltura processual que atenda aos princípios invocados. Na ordem constitucional não existe prevalência de princípios, mas uma harmonização dos mesmos com a Constituição em si e com a própria ordem jurídica, de sorte que, os fundamentos dispostos na nossa Lei Maior irão influenciar toda a sistemática processual para que o desígnio de obediência aos princípios elencados prevaleça.
Logo, alguns desses princípios agirão de forma peculiar, caracterizando uma concepção mais teórica, onde sua teleologia dará aos dispositivos legais por ele influenciados, um revestimento normativo específico de sua peculiaridade, criando na sistemática processual sua característica, por exemplo, no aspecto da formalidade dos atos. Outros, porém, transcendem essa formalidade de que é revestido o mesmo, uma vez necessário para transpor, no próprio processo, os fundamentos prestigiados na ordem jurídica de uma maior relevância, voltada para a instrumentalidade do mesmo. Para Luiz Guilherme Marinoni:
Os princípios recortam certas parcelas da realidade e colocam-nas sob seu âmbito de proteção. Consequentemente, a partir do momento em que se projetam sobre a realidade, eles servem de fundamento para normas específicas que orientam concretamente a ação. [32]
De sorte que, em assim elencados e dispostos, cada um criará na norma processual o seu efeito próprio. Essa relevância ou magnitude com a qual cada princípio atuará, buscando dar ao conjunto de normas da sistemática processual sua contribuição será percebida na fundamentação legal dos dispositivos voltados em seus efeitos concretos, seja dando impulso à marcha processual, seja criando efeitos no mundo fático. Mas, seja qual for o efeito que um ou outro criar, dependerão de um Princípio que exerça maior influência na marcha processual, não por hierarquia, mas sim pela sua própria característica essencial, uma vez que a Constituição nos moldes atuais não admite hierarquia entre princípios nela dispostos, mas sim que entre os mesmos predomine a ponderação de valores, cada um com a sua finalidade e em harmonia com a pluralidade dos mesmos. Luiz Guilherme Marinoni, falando acerca dos princípios constitucionais comenta que "a impossibilidade de submetê-los a uma lógica de hierarquização, faz surgir a necessidade de uma metodologia que permita a sua aplicação diante dos casos concretos". [33]
É a harmonização dos princípios constitucionais que atuará em conjunto com a ponderação dos valores nos mesmos inseridos para criarem o ambiente normativo necessário a equilibrar os dispositivos da lei ordinária e da Constituição na formação do instituto processual que servirá como ferramenta estatal. Quando há colisão de princípios, um deve ceder diante do outro, conforme as circunstâncias do caso concreto. [34]
Logo, o que se discutiu nas linhas anteriores, notadamente, a aplicação e eficácia dos princípios da Ampla Defesa e do Contraditório e o Princípio da Segurança Jurídica, todos de ordem constitucional, se afigura na nossa sociedade com notória dificuldade de concretização e inserção naquele meio por diversas razões de cunho histórico e sociológico, dentre as quais o entrave burocrático e o excesso de formalidade. Para Grinover, Cintra e Dinamarco, "acesso à justiça na se identifica, pois, com uma mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo" [35]. Portanto, para que seja possível a efetividade de tais princípios na estrutura social, conforme preceitua a ordem jurídica, precisará a mesma de um fundamento de ordem também constitucional que seja capaz de tornar os valores invocados por eles em procedimentos concretos e eficazes voltados para a sociedade, vinculando-os a um instrumento normativo que possua a capacidade de conter em seus caracteres de formação e desenvolvimento, não só a realidade dos acontecimentos do cotidiano e a ordem jurídica, mas que tenha por finalidade maior a limitação dos poderes do Estado, a ele se submetendo para que seja preservada a garantia dos direitos fundamentais, gerando, dessa forma, no plano fático-jurídico, a efetividade dos valores dispostos por todos os princípios dantes mencionados e pelos fundamentos legais prescritos na norma constitucional. Impondo-se limites aos poderes do Estado, como ente soberano, através deste instrumento normativo, visa o legislador o atendimento a eficácia e aplicabilidade de todos esses princípios invocados até agora, uma vez que são os mesmos voltados para a efetiva garantia desses direitos. Eis a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica para a pacificação com justiça. [36]
De nada adiantaria a imposição do conceito legal da norma à dinâmica dos fatos, e aos sujeitos de direito os efeitos da lei no caso concreto, se suas características de coercitividade em determinado sistema jurídico no comportamento por ela prescrito não fosse imposta para toda a estrutura social. Se não houvesse um instrumento normativo com a característica de impor ao Estado tais limites em observância às garantias fundamentais, este não teria rédeas no seu poder, ameaçando, com isso, a própria ordem jurídica. Fundamenta-se, então, a atuação pacificadora estatal, e as bases da Administração Pública, na observância da pluralidade e harmonização dos princípios, e na necessidade de existência e submissão do Estado a esse instrumento normativo mencionado. A ele são atribuídos os caracteres de eficiência e segurança, sendo a sua obediência exigida por parte de todos, inclusive do Estado como ente soberano com o intuito de limitar os poderes deste, e volta-se o mesmo para a finalidade da ordem jurídica: A paz que busca o Estado para o meio social, o equilíbrio das relações na sua dinâmica e a manutenção da ordem jurídica existente no Estado Democrático de Direito. Representando o Estado e fazendo uso desse instrumento normativo, diz Humberto Theodoro Junior, que "o juiz tem, pois, de complementar a obra do legislador, servindo-se de critérios éticos e consuetudinários, para que o resultado final do processo seja realmente justo, no plano substancial." [37]
Este instrumento normativo, usado como suporte filosófico e jurídico pelo Estado e inserido na sociedade como um todo, capaz de garantir que grandes Princípios, como os invocados anteriormente, possam exercer os efeitos que lhe são próprios, tanto na ordem legal vigente, quanto em relação aos seus sujeitos de direito, também é o responsável pela formação do universo jurídico em que se fundamentará o processo como ferramenta estatal voltada à solução dos conflitos. É assim que o processo será, efetivamente, um instrumento de justiça. [38]
Assim como os substratos sociais e eventos históricos fazem mudanças na estrutura social, alterando sua conjuntura por fenômenos que lhe são próprios e peculiares tendo como suporte sua carga axiológica, a lei também deve se valer de um sustentáculo para se amoldar a essa estrutura social, atrelando na ordem jurídica dessa estrutura, a segurança que ela necessita, e que, de fato, é sua finalidade, visando garantir aos sujeitos de direito participantes do fenômeno social, o cumprimento da mesma de forma coercitiva, ou seja, por todos, pois a dinâmica aí mencionada se refere ao aspecto comportamental de todos os sujeitos de direito nela inseridos, e que precisam coexistir com suas diferenças, uma vez que em determinado momento, poderão entrar em conflito, pela sua própria natureza, tendo então, a sociedade, a lei como suporte para a solução dos mesmos. Tércio Sampaio Ferraz Junior, falando sobre a origem, significado e funções do Direito, argumenta o seguinte pensamento que bem define o seu papel, dizendo que " o direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitação do status quo, da situação existente, mas aparecendo também como sustentação moral da indignação e da rebelião" [39].
A manifestação material da lei na sociedade vai se fundamentar na ordem comum através do senso coletivo, e nela mesma como direito positivo que é, trazendo essa manifestação o seu efetivo caráter coercitivo e sua capacidade de se inserir no meio social como comportamento a ser seguido. Ou seja, lei e sociedade são como sistemas que sofrem influências um do outro. Mas para que isso ocorra, ela também precisa limitar os poderes do Estado como ente soberano deslocado desse fenômeno, visando garantir a proteção aos direitos fundamentais do cidadão e à própria dinâmica social, pois o Estado nessa condição, e não como sujeito de direito participante dessa dinâmica, possui poderes próprios de sua estrutura colossal, capazes de interferir naquele contexto. Conceitua Luiz Guilherme Marinoni, que "como a sociedade evolui todos os dias, os princípios devem ser redimensionados nessa mesma intensidade e velocidade." [40]
2.2. O Princípio do Devido Processo Legal
O legislador, para limitar esse poder do Estado, visando proteger esses direitos, usou, então, de um princípio constitucional de relevante importância, sem o qual todo o sistema jurídico se tornaria em um arcabouço de leis sem validação em um Estado Democrático de Direito, pois nele o que se busca da ordem legal emanada do Poder Público é que essa, vinda de um poder soberano com tais características democráticas, traga, em si, condições de garantir que a pretensão estatal de pacificar o meio social seja aceita pela sociedade e nela tenha credibilidade, e para tanto, é necessário que o Estado respeite as garantias constitucionais do cidadão através desses limites que lhe são impostos, apenas interferindo na dinâmica social quando necessário e pelos meios legais. Esse instrumento normativo do qual o legislador constituinte fez uso para dispor normas legais aos comportamentos dos cidadãos e limitar o poder do aparelho estatal, estruturando a ordem vigente de que trata o Estado Democrático de Direito, chama-se Princípio do Devido Processo Legal. Para Marco Aurélio Ventura Peixoto, "este princípio é postulado fundamental de todo e qualquer sistema processual" [41].
Sem o mesmo, os fundamentos invocados pela filosofia jurídica em matrizes de ordem constitucional voltadas para um sistema processual pautado em um Estado Democrático de Direito, não podem subsistir. É ele, o devido processo legal como instrumento normativo, que garante a ordem processual e os limites impostos ao Estado, principiando por desdobrar e unir os meandros existentes entre a lei e o caso concreto, entre a formalidade da lei e o seu efeito causado no meio social. No dizer de Humberto Theodoro Junior, "o devido processo legal, portanto, pressupõe não apenas a aplicação adequada do direito positivo, já que lhe tocs, antes de tudo, realizar a vontade soberana das regras e dos princípios constitucionais" [42]. De sorte que, busca o devido processo legal garantir que os princípios elencados, até o presente momento, possam criar um meio capaz de imbuir no Estado, como um todo, o intuito da lei, da ordem normativa no universo jurídico que se estrutura em nossa sociedade: a plenitude da força constitucional representada pelas normas legais relativas ao processo, e introduzidas no sistema jurídico mencionado. Aqui se volta o legislador para, com base nesse princípio, criar o fundamento para a ordem legal processualística, sem a qual, não haveria limites ao Estado, nem meios eficazes para a finalidade da pacificação usando o processo como ferramenta. De fato, para Grinover, Cintra e Dinamarco, "o processo é, nesse quadro, um instrumento a serviço da paz" [43].
O Devido Processo Legal volta-se, pois, para os fundamentos de uma ordem social garantidora dos direitos mais fundamentais da própria ordem constitucional em si, atraindo, destarte, não somente normas processuais, mas também normas de cunho voltado ao direito material. É que o Princípio do Devido Processo Legal, por ser de ordem constitucional, tem o caráter de transcendência que é próprio dos princípios constitucionais, dele derivando outros de igual relevância, acarretando, por conseguinte, essa expansibilidade atribuída à força das normas inerentes à Carta Magna por força de seu caráter valorativo. Dessa nova visão dos princípios constitucional, Pedro Lenza, conclui que "enfim, essas são as marcas do "novo direito constitucional" ou neoconstitucionalismo, que se evidencia ao propor a identificação de novas perspectivas, marcando, talvez, o início de um novo período do Direito Constitucional." [44]
A defesa do réu, obviamente, seguirá por trilhos atrelados nesse importante princípio, sem o qual nenhuma garantia pode subsistir. Então, sobre qual conteúdo normativo referente à defesa do réu tem alcance o devido processo legal? Ora, os fundamentos normativos constitucionais voltados ao processo em que se subsumem a participação de tal princípio na defesa do réu estão indubitavelmente entranhados na própria existência do sistema jurídico, de sorte que, ao se dispor a determinar quais princípios concernentes a essa defesa tenham fundamentação no devido processo legal, seria o mesmo que tentar descrever a essência daquilo que, por axioma, foi tomado e dogmaticamente disposto como verdade necessária, pertencente, portanto, às rédeas do próprio Direito Positivo, base legal para, não só a defesa do réu, mas a defesa do autor quanto às provas por aquele apresentadas no processo. Daí, ousamos afirmar que os princípios que regem o conteúdo da defesa e sua manifestação que são alcançados pelo devido processo legal, são partes da disposição teleológica do mesmo, inseridas nas normas que tratam do instituto como um todo, e que se embasam em princípios constitucionais e verdades com cargas axiológicas pré-existentes na Constituição. O que ocorre na verdade é uma harmonização de todos os princípios mencionados, orbitando eles em torno do Princípio do Devido Processo Legal, para a finalidade maior a qual todos são voltados: A garantia da ordem jurídica, a limitação dos poderes estatais, o respeito às garantias fundamentais e a pacificação dos conflitos, e desse regimento e convergência cuida o devido processo legal. De acordo com Marinoni, "Já se deixou claro que o Estado contemporâneo tem a sua substância condicionada aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais." [45], logo o devido processo legal não pode afastar-se dessa concepção.