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A associação para o tráfico de drogas.

Equívocos hermêuticos e conceituais ou política criminal subjetiva?

Agenda 29/09/2011 às 09:52

Os elementos gramaticais ou literais do art. 14 da Lei nº 6.368/76 eram e são claros, ou seja, dever-se-ia punir a associação eventual e não eventual, uma vez prevista, como elemento do tipo, a locução “reiteradamente ou não”.

O Brasil hodierno tem assistido, de maneira impotente e inoperante, o avanço da criminalidade organizada em todos os quadrantes sociais. É cediço, de outra banda, que um dos delitos que mais alimenta a criminalidade organizada e que foi alçado à condição de hediondo pela Constituição Federal, é o crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

As mazelas sociais causadas pelo tráfico de drogas são de todos conhecidas, podendo-se afirmar tranquilamente que aludido delito induz à prática de inúmeros outros, como roubos e furtos praticados por usuários, indo até mesmo à prática de homicídios por disputas de ponto de tráfico de entorpecentes. Tudo isso sem considerar os inúmeros transtornos sociais e familiares causados em razão do consumo de substâncias entorpecentes.

Nesse contexto, sob a justificativa de corrigir eventuais deficiências da Lei nº 6.368/76, foi editada a Lei nº 11.343/06, a qual, aparentemente, tinha por escopo dar tratamento penal mais rigoroso para o traficante de drogas.

De outra parte, a referida lei, sob o prisma técnico, corrigiu uma antinomia de segundo grau existente entre dois de seus dispositivos, quais sejam o art. 14 e o art. 18, inciso III, do mesmo diploma.

Com efeito, o art. 14 dispunha acerca do crime de associação para o tráfico de drogas, cominando pena para o indivíduo que se associasse com outro para a prática reiterada ou não reiterada do tráfico de drogas.

De outra banda, o art. 18, inciso III, da referida legislação dispunha que a pena do agente seria aumentada de 1/3 a 2/3, acaso se constatasse a associação para o tráfico de drogas.

Desse modo, com o objetivo de se evitar a dupla punição em razão do mesmo fato, a doutrina e a jurisprudência passaram a adotar a tese de que o art. 14 da Lei nº 6.368/76 exigia que a associação para o tráfico de drogas fosse estável e permanente, ao passo que a causa de aumento de pena prevista no art. 18, inciso III, da mesma lei, incidiria acaso se constatasse a associação eventual.

É de se ver, no entanto, que gramaticalmente não havia nenhum elemento que diferenciasse as duas normas.

Nesse sentido, olvidando-se do sentido gramatical da norma prevista no art. 14 e não fazendo qualquer consideração acerca do conflito com o art. 18, III, do mesmo diploma, o ilustre Vicente Greco Filho apontava, em seus comentários ao art. 14, que:

"O artigo exige, para a configuração do delito, apenas a associação de duas ou mais pessoas com o fim de reiteradamente ou não praticarem os delitos do art. 12 ou 13. Ora, poder-se-ia entender que também configuraria o crime o simples concurso de agentes, porque bastaria o entendimento de duas ou mais pessoas para a prática da conduta punível, prevista naqueles artigos para a incidência no delito agora comentado, em virtude da cláusula ‘reiteradamente ou não’.

Parece-nos, todavia, que não será toda a vez que ocorrer o concurso que ficará caracterizado o crime em tela. Haverá a necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas sceleris, em que a vontade de se associar seja separada da vontade necessária à prática do crime visado. Excluído, pois, está o crime, no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que determinaria a co-autoria." [01]

Cumpre salientar que, a despeito de afirmar a necessidade de estabilidade e permanência para a configuração do crime de associação para o tráfico de drogas, o ilustre doutrinador não fazia qualquer apontamento acerca do sentido da expressão "reiteradamente ou não", limitando-se a negar a sua incidência.

De outra parte, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, apontava, no que concerne ao art. 18, inciso III, que bastava a convergência ocasional de vontades. A propósito, cabe conferir:

"(...) a associação eventual ou concursos delinquentium, causa majorante da pena nos delitos de entorpecentes, prevista na lei extravagante, equivale ao concurso de pessoas do direito penal codificado. O legislador estremou no inciso III, do art. 18, da Lei nº 6.368/76, duas hipóteses distintas: de um lado, decorrer o delito de associação criminosa, e, de outro, visar a menores ou hipossuficientes. Se houve o crime definido no art. 12 da Lei de Tóxicos, e para praticá-lo associaram-se duas ou mais pessoas – embora tenham procedido para o fim único – da prática de um só crime, cabe o acréscimo da qualificadora prevista no item III, do art. 18, da mesma lei." [02]

Nesse sentido, a única explicação que se encontra para o silêncio da doutrina e jurisprudência acerca da expressão "reiteradamente ou não" era mesmo a de dar tratamento normativo razoável ou aplicabilidade para o art. 18, inciso III, haja vista que o referido preceptivo regulava juridicamente uma hipótese já regulada no art. 14 da mesma lei.

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Cumpre registrar, no entanto, que os elementos gramaticais ou literais do art. 14 da Lei nº 6.368/76 eram e são claros, ou seja, dever-se-ia punir a associação eventual e não eventual, uma vez prevista, como elemento do tipo, a locução "reiteradamente ou não".

Nada obstante, como dito, o art. 18, III, também estabelecia causa de aumento de pena em razão da mesma circunstância. Desse modo, a fim de se compatibilizar normas conflitantes e inconciliáveis passou-se a entender que o art. 14 da Lei nº 6.368/76 exigia, tal qual o crime de quadrilha, a estabilidade e permanência para a prática do tráfico de drogas.

Com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/06 esse quadro normativo sofreu uma substancial mudança, uma vez que foi revogada a causa de aumento de pena prevista do regime anterior o que, a nosso juízo, deu-se apenas e com o único propósito de se resolver esse conflito normativo existente entre os arts. 14 e 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76.

Desse modo, com o novo regime, não há motivo para se ignorar os elementos do tipo penal albergado no art. 35 da Lei nº 11.343/06, em especial, a locução "reiteradamente ou não", pois, o que não é reiterado somente pode ser eventual e o que é eventual não exige estabilidade e permanência.

Ainda reforça esse argumento a descrição típica do art. 35, parágrafo único, que estabeleceu um tipo especial de associação, qual seja, a associação destinada ao financiamento do tráfico de drogas.

Nesse tipo penal, ao contrário do que exige o "caput", se exige literalmente que a associação seja reiterada, ou seja, a associação para o financiamento do tráfico de drogas exige inequivocamente estabilidade e permanência, ao passo que a associação para o tráfico de drogas poderá ser eventual.

Tal conclusão ainda se robustece se atentarmos para a pena em abstrato cominada para o financiamento para o tráfico de drogas, que já equivale às penas de tráfico e associação somadas.

Sem prejuízo, a despeito da clareza dos elementos do tipo e do óbvio propósito de se sanar um conflito anterior de normas, a doutrina pátria continua a dar a mesma interpretação para o art. 35 da Lei nº 11.343/06, ou seja, continua-se a exigir uma estabilidade e permanência não prevista no tipo penal.

É o como se posiciona, por exemplo, o ilustre GUILHERME SOUZA NUCCI, ao afirmar que o tipo penal previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/06 constitui uma quadrilha ou bando específico do tráfico de drogas, o qual exige, para a sua configuração, a estabilidade e permanência. [03]

Ousamos discordar do aludido entendimento ainda por mais uma razão, qual seja, a de que o art. 288 do Código Penal exige que os agentes se reúnam para a prática de crimes, ou seja, para a prática de mais de um crime. De seu turno, o art. 35 estabelece que basta a associação reiterada ou não, para a prática do tráfico de drogas, ou seja, basta a associação eventual para a prática de um delito de tráfico de drogas para a configuração do crime.

Cumpre salientar, de outra banda, que o mesmo autor entra em contradição em relação a esse tópico, com o devido acatamento, quando lança seus comentários ao art. 36 da Lei nº 11.343, afirmando que para a configuração da associação para o financiamento de drogas se exige estabilidade, uma vez que se incluiu a reiteração para a prova da associação duradoura. [04]

Assim, se ali se foi incluída a reiteração para a configuração da associação para o financiamento e não para a associação para o tráfico, a única conclusão possível é que basta a associação eventual para a configuração do crime.

Em abono à nossa tese, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem adotado o referido entendimento em alguns de seus acórdãos. A propósito cabe conferir o que ficou assentado em excelente voto do Desembargador Hermam Herschander na Apelação n° 0067570-38.2009.8.26.0050, in verbis:

"Em relação à condenação do apelante pelo crime de associação, impõe-se uma reflexão acerca da conduta necessária à configuração do crime tipificado no artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06.

A revogada Lei no. 6.368/76 previa em tipo penal autônomo o crime de associação para o tráfico (artigo 14); a par disso, referia-se à associação como causa de aumento de pena (artigo 18, inciso III).

Em face dessa situação, geradora de conflito aparente de normas, pacificou-se o entendimento de que o concurso eventual de pessoas para o tráfico configurava a majorante, ao passo que a associação dotada de estabilidade e permanência tipificava o delito autônomo.

Foi a forma encontrada pela doutrina e pela jurisprudência para solucionar o impasse gerado por duas normas que, à primeira vista, tipificavam a mesma situação fática.

Nesse sentido firmou-se, sob a égide da Lei n°- 6.368/76, a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça:

"CRIMINAL RESP. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CONCURSO EVENTUAL DE AGENTES. MAJORANTE DO ART. 18, III, DA LEI 6.368/76. INCIDÊNCIA. DIFERENCIAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO PREVISTA NO ART. 14 DA MESMA LEI. RECURSO PROVIDO. I. Demonstrado o concurso eventual dos réus pela prática de tráfico de entorpecentes, é de rigor a incidência da majorante prevista no art. 18, III, da Lei 6.368/76. II. O concurso ocasional exigido não se confunde com a associação prevista no art. 14 da mesma lei, que é autónoma e exige a comprovação da habitualidade. III. Recurso provido." (REsp 756.374/PR, Rei. Ministro GILSON DIPP, QUINTATURMA, julgado em 27/09/2005, DJ 17/10/2005 p. 348).

Entretanto, o artigo 14 da Lei n°- 6.368/76 incriminava a conduta de "associarem-se 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 12 ou 13 desta Lei."

Note-se que a expressão destacada - "reiteradamente ou não" - apresentava-se, no entendimento então dominante, despida de qualquer sentido, já que a associação episódica – ou seja, não reiterada - gerava apenas a majorante do artigo 18, inciso I I I , e não o crime do artigo 14.

A atual Lei Antidrogas visou solucionar o equívoco, através da simples omissão da causa de aumento de pena.

Manteve o legislador o crime autônomo de associação para o tráfico (artigo 35, caput), com redação idêntica à anterior: tanto a associação para a prática reiterada do tráfico de entorpecentes como a associação para um só ato de traficância - o mero concurso de agentes -, nos termos da lei, configura o crime do artigo 35 da Lei n°- 11.343/06. Caberá ao Julgador diferenciar as situações na dosagem da pena, dentro do amplo espectro entre o mínimo de 3 e o máximo de 10 anos de reclusão.

Abolida a causa de aumento de pena e a duplicidade de tipificação da mesma conduta, não mais se justifica a diferenciação conceitual entre a associação eventual e habitual para o tráfico, porquanto ambas as hipóteses subsumem-se ao estatuído no artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06.

É relevante constatar que o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que incorre nas penas de 3 a 10 anos, e pagamento de 700 a 1200 dias-multa quem se associa para a prática reiterada do crime definido no artigo 36 (financiamento ou custeio do tráfico de drogas).

Note-se que, neste caso, o legislador não utilizou a expressão "reiteradamente ou não", punindo apenas a associação para a prática reiterada do crime do artigo 36.

Quisesse a lei excluir do alcance do artigo 35 caput a simples co-autoria para o tráfico, também o teria feito claramente, deixando de consignar a expressão "ou não".

Entretanto, assim não agiu o legislador. Inarredável a conclusão de que o concurso eventual de agentes para a traficância se amolda ao artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06." [05]

A nosso juízo, portanto, a interpretação que tem sido dada acriticamente por parte da doutrina ao art. 35 da Lei nº 11.343/06 implica em clara violação ao princípio da legalidade, pilar de um Estado Democrático de Direito.

Isso porque, olvidam-se os que se posicionam pela exigência de estabilidade e permanência, que a ciência jurídica, como ensina Kelsen, apenas pode descrever o Direito, não podendo prescrever ou deixar de prescrever o que está prescrito. [06]

Assim, o que ocorre, ao que tudo indica, é a aplicação de uma política criminal subjetiva ditada pelo Poder Judiciário e capitaneada pela doutrina, na qual se ignoram elementos do tipo penal, talvez porque se considere muito gravosa a pena resultante da soma das previstas nos arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/06.

Tais interpretações, feitas bem ao sabor de ventos abolicionistas, podem, no entanto, redundar em aplicações absolutistas do direito, de modo que a lei, maior garantia do cidadão, poderá se tornar letra morta, a depender das opções valorativas do intérprete, que no Brasil já não encontra as amarras do texto da norma.


Notas

  1. FILHO, VICENTE GRECO – TÓXICOS – Prevenção e Repressão – Comentários à Lei nº 6.368/76 acompanhados da Legislação vigente e de referência jurisprudencial. Editora Saraiva. 5ª Edição, p.104.
  2. RT 587/298, RJTJSP 88/396.
  3. NUCCI, GUILHERME DE SOUZA, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 3ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, p.335.
  4. Cf. Ob. Cit. p.337.
  5. Idêntico entendimento foi reiterado na Apelação nº 990.10.355627-5 e em inúmeros outros Acórdãos do Egrégio Tribunal de Justiça.
  6. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Editora Martins Fontes, p. 82.
Sobre o autor
Leonardo Bellini de Castro

Promotor de Justiça em São Paulo. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Leonardo Bellini. A associação para o tráfico de drogas.: Equívocos hermêuticos e conceituais ou política criminal subjetiva?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3011, 29 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20097. Acesso em: 27 abr. 2024.

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