O Brasil hodierno tem assistido, de maneira impotente e inoperante, o avanço da criminalidade organizada em todos os quadrantes sociais. É cediço, de outra banda, que um dos delitos que mais alimenta a criminalidade organizada e que foi alçado à condição de hediondo pela Constituição Federal, é o crime de tráfico ilícito de entorpecentes.
As mazelas sociais causadas pelo tráfico de drogas são de todos conhecidas, podendo-se afirmar tranquilamente que aludido delito induz à prática de inúmeros outros, como roubos e furtos praticados por usuários, indo até mesmo à prática de homicídios por disputas de ponto de tráfico de entorpecentes. Tudo isso sem considerar os inúmeros transtornos sociais e familiares causados em razão do consumo de substâncias entorpecentes.
Nesse contexto, sob a justificativa de corrigir eventuais deficiências da Lei nº 6.368/76, foi editada a Lei nº 11.343/06, a qual, aparentemente, tinha por escopo dar tratamento penal mais rigoroso para o traficante de drogas.
De outra parte, a referida lei, sob o prisma técnico, corrigiu uma antinomia de segundo grau existente entre dois de seus dispositivos, quais sejam o art. 14 e o art. 18, inciso III, do mesmo diploma.
Com efeito, o art. 14 dispunha acerca do crime de associação para o tráfico de drogas, cominando pena para o indivíduo que se associasse com outro para a prática reiterada ou não reiterada do tráfico de drogas.
De outra banda, o art. 18, inciso III, da referida legislação dispunha que a pena do agente seria aumentada de 1/3 a 2/3, acaso se constatasse a associação para o tráfico de drogas.
Desse modo, com o objetivo de se evitar a dupla punição em razão do mesmo fato, a doutrina e a jurisprudência passaram a adotar a tese de que o art. 14 da Lei nº 6.368/76 exigia que a associação para o tráfico de drogas fosse estável e permanente, ao passo que a causa de aumento de pena prevista no art. 18, inciso III, da mesma lei, incidiria acaso se constatasse a associação eventual.
É de se ver, no entanto, que gramaticalmente não havia nenhum elemento que diferenciasse as duas normas.
Nesse sentido, olvidando-se do sentido gramatical da norma prevista no art. 14 e não fazendo qualquer consideração acerca do conflito com o art. 18, III, do mesmo diploma, o ilustre Vicente Greco Filho apontava, em seus comentários ao art. 14, que:
"O artigo exige, para a configuração do delito, apenas a associação de duas ou mais pessoas com o fim de reiteradamente ou não praticarem os delitos do art. 12 ou 13. Ora, poder-se-ia entender que também configuraria o crime o simples concurso de agentes, porque bastaria o entendimento de duas ou mais pessoas para a prática da conduta punível, prevista naqueles artigos para a incidência no delito agora comentado, em virtude da cláusula ‘reiteradamente ou não’.
Parece-nos, todavia, que não será toda a vez que ocorrer o concurso que ficará caracterizado o crime em tela. Haverá a necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas sceleris, em que a vontade de se associar seja separada da vontade necessária à prática do crime visado. Excluído, pois, está o crime, no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que determinaria a co-autoria." [01]
Cumpre salientar que, a despeito de afirmar a necessidade de estabilidade e permanência para a configuração do crime de associação para o tráfico de drogas, o ilustre doutrinador não fazia qualquer apontamento acerca do sentido da expressão "reiteradamente ou não", limitando-se a negar a sua incidência.
De outra parte, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, apontava, no que concerne ao art. 18, inciso III, que bastava a convergência ocasional de vontades. A propósito, cabe conferir:
"(...) a associação eventual ou concursos delinquentium, causa majorante da pena nos delitos de entorpecentes, prevista na lei extravagante, equivale ao concurso de pessoas do direito penal codificado. O legislador estremou no inciso III, do art. 18, da Lei nº 6.368/76, duas hipóteses distintas: de um lado, decorrer o delito de associação criminosa, e, de outro, visar a menores ou hipossuficientes. Se houve o crime definido no art. 12 da Lei de Tóxicos, e para praticá-lo associaram-se duas ou mais pessoas – embora tenham procedido para o fim único – da prática de um só crime, cabe o acréscimo da qualificadora prevista no item III, do art. 18, da mesma lei." [02]
Nesse sentido, a única explicação que se encontra para o silêncio da doutrina e jurisprudência acerca da expressão "reiteradamente ou não" era mesmo a de dar tratamento normativo razoável ou aplicabilidade para o art. 18, inciso III, haja vista que o referido preceptivo regulava juridicamente uma hipótese já regulada no art. 14 da mesma lei.
Cumpre registrar, no entanto, que os elementos gramaticais ou literais do art. 14 da Lei nº 6.368/76 eram e são claros, ou seja, dever-se-ia punir a associação eventual e não eventual, uma vez prevista, como elemento do tipo, a locução "reiteradamente ou não".
Nada obstante, como dito, o art. 18, III, também estabelecia causa de aumento de pena em razão da mesma circunstância. Desse modo, a fim de se compatibilizar normas conflitantes e inconciliáveis passou-se a entender que o art. 14 da Lei nº 6.368/76 exigia, tal qual o crime de quadrilha, a estabilidade e permanência para a prática do tráfico de drogas.
Com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/06 esse quadro normativo sofreu uma substancial mudança, uma vez que foi revogada a causa de aumento de pena prevista do regime anterior o que, a nosso juízo, deu-se apenas e com o único propósito de se resolver esse conflito normativo existente entre os arts. 14 e 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76.
Desse modo, com o novo regime, não há motivo para se ignorar os elementos do tipo penal albergado no art. 35 da Lei nº 11.343/06, em especial, a locução "reiteradamente ou não", pois, o que não é reiterado somente pode ser eventual e o que é eventual não exige estabilidade e permanência.
Ainda reforça esse argumento a descrição típica do art. 35, parágrafo único, que estabeleceu um tipo especial de associação, qual seja, a associação destinada ao financiamento do tráfico de drogas.
Nesse tipo penal, ao contrário do que exige o "caput", se exige literalmente que a associação seja reiterada, ou seja, a associação para o financiamento do tráfico de drogas exige inequivocamente estabilidade e permanência, ao passo que a associação para o tráfico de drogas poderá ser eventual.
Tal conclusão ainda se robustece se atentarmos para a pena em abstrato cominada para o financiamento para o tráfico de drogas, que já equivale às penas de tráfico e associação somadas.
Sem prejuízo, a despeito da clareza dos elementos do tipo e do óbvio propósito de se sanar um conflito anterior de normas, a doutrina pátria continua a dar a mesma interpretação para o art. 35 da Lei nº 11.343/06, ou seja, continua-se a exigir uma estabilidade e permanência não prevista no tipo penal.
É o como se posiciona, por exemplo, o ilustre GUILHERME SOUZA NUCCI, ao afirmar que o tipo penal previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/06 constitui uma quadrilha ou bando específico do tráfico de drogas, o qual exige, para a sua configuração, a estabilidade e permanência. [03]
Ousamos discordar do aludido entendimento ainda por mais uma razão, qual seja, a de que o art. 288 do Código Penal exige que os agentes se reúnam para a prática de crimes, ou seja, para a prática de mais de um crime. De seu turno, o art. 35 estabelece que basta a associação reiterada ou não, para a prática do tráfico de drogas, ou seja, basta a associação eventual para a prática de um delito de tráfico de drogas para a configuração do crime.
Cumpre salientar, de outra banda, que o mesmo autor entra em contradição em relação a esse tópico, com o devido acatamento, quando lança seus comentários ao art. 36 da Lei nº 11.343, afirmando que para a configuração da associação para o financiamento de drogas se exige estabilidade, uma vez que se incluiu a reiteração para a prova da associação duradoura. [04]
Assim, se ali se foi incluída a reiteração para a configuração da associação para o financiamento e não para a associação para o tráfico, a única conclusão possível é que basta a associação eventual para a configuração do crime.
Em abono à nossa tese, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem adotado o referido entendimento em alguns de seus acórdãos. A propósito cabe conferir o que ficou assentado em excelente voto do Desembargador Hermam Herschander na Apelação n° 0067570-38.2009.8.26.0050, in verbis:
"Em relação à condenação do apelante pelo crime de associação, impõe-se uma reflexão acerca da conduta necessária à configuração do crime tipificado no artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06.
A revogada Lei no. 6.368/76 previa em tipo penal autônomo o crime de associação para o tráfico (artigo 14); a par disso, referia-se à associação como causa de aumento de pena (artigo 18, inciso III).
Em face dessa situação, geradora de conflito aparente de normas, pacificou-se o entendimento de que o concurso eventual de pessoas para o tráfico configurava a majorante, ao passo que a associação dotada de estabilidade e permanência tipificava o delito autônomo.
Foi a forma encontrada pela doutrina e pela jurisprudência para solucionar o impasse gerado por duas normas que, à primeira vista, tipificavam a mesma situação fática.
Nesse sentido firmou-se, sob a égide da Lei n°- 6.368/76, a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça:
"CRIMINAL RESP. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CONCURSO EVENTUAL DE AGENTES. MAJORANTE DO ART. 18, III, DA LEI 6.368/76. INCIDÊNCIA. DIFERENCIAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO PREVISTA NO ART. 14 DA MESMA LEI. RECURSO PROVIDO. I. Demonstrado o concurso eventual dos réus pela prática de tráfico de entorpecentes, é de rigor a incidência da majorante prevista no art. 18, III, da Lei 6.368/76. II. O concurso ocasional exigido não se confunde com a associação prevista no art. 14 da mesma lei, que é autónoma e exige a comprovação da habitualidade. III. Recurso provido." (REsp 756.374/PR, Rei. Ministro GILSON DIPP, QUINTATURMA, julgado em 27/09/2005, DJ 17/10/2005 p. 348).
Entretanto, o artigo 14 da Lei n°- 6.368/76 incriminava a conduta de "associarem-se 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 12 ou 13 desta Lei."
Note-se que a expressão destacada - "reiteradamente ou não" - apresentava-se, no entendimento então dominante, despida de qualquer sentido, já que a associação episódica – ou seja, não reiterada - gerava apenas a majorante do artigo 18, inciso I I I , e não o crime do artigo 14.
A atual Lei Antidrogas visou solucionar o equívoco, através da simples omissão da causa de aumento de pena.
Manteve o legislador o crime autônomo de associação para o tráfico (artigo 35, caput), com redação idêntica à anterior: tanto a associação para a prática reiterada do tráfico de entorpecentes como a associação para um só ato de traficância - o mero concurso de agentes -, nos termos da lei, configura o crime do artigo 35 da Lei n°- 11.343/06. Caberá ao Julgador diferenciar as situações na dosagem da pena, dentro do amplo espectro entre o mínimo de 3 e o máximo de 10 anos de reclusão.
Abolida a causa de aumento de pena e a duplicidade de tipificação da mesma conduta, não mais se justifica a diferenciação conceitual entre a associação eventual e habitual para o tráfico, porquanto ambas as hipóteses subsumem-se ao estatuído no artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06.
É relevante constatar que o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que incorre nas penas de 3 a 10 anos, e pagamento de 700 a 1200 dias-multa quem se associa para a prática reiterada do crime definido no artigo 36 (financiamento ou custeio do tráfico de drogas).
Note-se que, neste caso, o legislador não utilizou a expressão "reiteradamente ou não", punindo apenas a associação para a prática reiterada do crime do artigo 36.
Quisesse a lei excluir do alcance do artigo 35 caput a simples co-autoria para o tráfico, também o teria feito claramente, deixando de consignar a expressão "ou não".
Entretanto, assim não agiu o legislador. Inarredável a conclusão de que o concurso eventual de agentes para a traficância se amolda ao artigo 35, caput, da Lei no. 11.343/06." [05]
A nosso juízo, portanto, a interpretação que tem sido dada acriticamente por parte da doutrina ao art. 35 da Lei nº 11.343/06 implica em clara violação ao princípio da legalidade, pilar de um Estado Democrático de Direito.
Isso porque, olvidam-se os que se posicionam pela exigência de estabilidade e permanência, que a ciência jurídica, como ensina Kelsen, apenas pode descrever o Direito, não podendo prescrever ou deixar de prescrever o que está prescrito. [06]
Assim, o que ocorre, ao que tudo indica, é a aplicação de uma política criminal subjetiva ditada pelo Poder Judiciário e capitaneada pela doutrina, na qual se ignoram elementos do tipo penal, talvez porque se considere muito gravosa a pena resultante da soma das previstas nos arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/06.
Tais interpretações, feitas bem ao sabor de ventos abolicionistas, podem, no entanto, redundar em aplicações absolutistas do direito, de modo que a lei, maior garantia do cidadão, poderá se tornar letra morta, a depender das opções valorativas do intérprete, que no Brasil já não encontra as amarras do texto da norma.
Notas
-
FILHO, VICENTE GRECO – TÓXICOS
– Prevenção e Repressão – Comentários à Lei nº 6.368/76 acompanhados
da Legislação vigente e de referência jurisprudencial. Editora Saraiva. 5ª
Edição, p.104.
- RT 587/298, RJTJSP 88/396.
- NUCCI, GUILHERME DE SOUZA, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 3ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, p.335.
- Cf. Ob. Cit. p.337.
- Idêntico entendimento foi reiterado na Apelação nº 990.10.355627-5 e em inúmeros outros Acórdãos do Egrégio Tribunal de Justiça.
- KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Editora Martins Fontes, p. 82.