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O império da interpretação enquanto poder simbólico.

A instrumentalização da hermenêutica jurídica a partir do pensamento de Pierre Bourdieu

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Agenda 23/10/2011 às 14:32

Conclusão

Em "Força do Direito" Bourdieu esboçou uma visão sofisticada e sensível do mundo jurídico não apenas voltada para teóricos, como também valorizando e trazendo para o centro de sua reflexão a prática jurídica e sua relação complementar, e antagônica, com a teoria. Evitou também recair em uma visão plenamente subjetiva do Direito, onde o veríamos como construído exclusivamente pelas percepções dos sujeitos, como também evitou incorreu em um objetivismo que negaria qualquer relevância aos atos individuais praticados por cada um desses sujeitos. Tangenciando todas essas questões encontra-se a insistência na interpretação realizada pelo jurista, seja modelando o mundo ao seu redor conforme as suas convicções, seja a partir das técnicas de decisão aplicadas aos casos particulares, é a interpretação que integra a temática central do artigo.

Essa abordagem histórica e dialética permite realizar uma leitura mais complexa e completa de vários elementos encontrados na prática jurídica, mas que também habitam os interesses dos teóricos. A decisão judicial, por exemplo, pode até ter a sua sustentação na autoridade do magistrado, mas é também um ponto localizado em uma rede de relações entre agentes diversos que interpretam o Direito, interpretações essas que podem alterar conjuntos de categorias essenciais para a própria decisão judicial, tais como a introdução dos princípios jurídicos.

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Por fim, Bourdieu foi um dos poucos autores a prestar atenção também ao modo como o jurista teórico interpreta o Direito e quais repercussões isso tem para a prática. Ao expandir o campo de instrumentalização da hermenêutica jurídica, esta deixa de assumir o seu papel de ferramenta de resolução dos casos concretos para integrar tanto a práxis teórica, quanto prática, inclusive viabilizando pontes de intercessão entre os dois domínios. É verdade que Bourdieu não elimina a distinção entre práticos e teóricos, respeitando as pretensões intrínsecas a cada campo, mas flexibiliza essa oposição, mostrando que as linhas são bem mais flexíveis do que imaginamos, linhas estas que ajudam a reproduzir e circular o poder simbólico no Direito.


Referências

ABEL, Richard L. The Legal Profession in England and Wales. Oxford: Basil Blackwell, 1988.

BOURDIEU, Pierre. A Força do Direito. O Poder Simbólico. 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 209-253.

VILLEGAS, Mauricio García. On Pierre Bourdieu´s Legal Thought. Droit et Société, 56-57. 2004.

SIN, Wai Man. Law, Politics and Professional Projects: The Legal Profession in Hong Kong. Social & Legal Studies. Ano: 2001. Vol: 10. p: 483

WACQUANT, Loïq J. D. O Legado Sociológico de Pierre Bourdieu: Duas Dimensões e uma Nota Pessoal. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p. 95-110, nov. 2002.


Notas

  1. Conflitos sociais transformam-se em disputas técnicas, onde o que realmente conta é a destreza e a habilidade do conhecimento técnico-normativo por parte dos advogados. A eleição dos representantes do povo, os projetos desenvolvidos em prol da resolução dos problemas sociais transformam-se em um conjunto de regras e princípios técnicos acessíveis somente ao jurista especializado em Direito Público.
  2. A dupla objetividade do social permite realizar um trabalho de autorreflexão. Não apenas questiona e descreve a realidade social conforme um esquema conceitual sociológico, como também é capaz de questionar e criticar a prática das ciências sociais, podendo esta tornar-se objeto para a própria ciência social, daí autorreflexão.
  3. No original, "This correspondence fulfills essential political functions in society. Thus symbolic systems are not only tools of knowledge but, first and foremost, instruments of domination. A central objective of Bourdieu´s work is to show how culture and social class correlate. In general terms Bourdieu´s sociological theory asks the following question: how is it possible that hierarchically based systems of domination persist and reproduce themselves through social practices?".
  4. Esse é um ponto importante para distinguir a interpretação jurídica de interpretações literárias, ou filosóficas. Não é que em ambos os casos a dimensão performativa deixe de existir, mas de maneira alguma o elemento performativo dessas interpretações assume posição central, como ocorre no Direito. A força de uma interpretação corresponde a solidez do elemento performático que a faz não apenas integrar um contexto, como também modificá-lo. Assim, uma interpretação sobre leis e doutrinas que é completamente insuscetível de ser operacionalizada já é suficiente para despertar a desconfiança do jurista, ainda que venha interessar ao literato, ou historiador das ideias.
  5. Esse tipo de abordagem, ainda que não institucionalizado, tem sido prática recorrente nos tribunais superiores brasileiros. Algumas decisões desses tribunais, sobretudo quanto ao STF, tornam o trabalho de separar o político do jurídico desafiador.
  6. No original: "This does not mean, as some theories of the law have led us to believe, that knowledge of the material conditions in which the legal discussion takes place is sufficient to know the outcome. The legal field in its majesty, its rites, and its shrines is not amenable to being reduced merely to existing economic forces. It is not just a reflection of the material world. Neither is the law pure erudition that can be detached from the social conditions in which it is found".
  7. Em um artigo de fina qualidade, Wai Man Sin, professor da Universidade da cidade de Hong Kong, mostrou como a resistência dos advogados diante da mudança da língua inglesa para a chinesa no cotidiano forense era motivada pela necessidade de manter as distinções profissionais adquiridas a partir da língua inglesa. Tendo todos eles obtidos uma formação na Hong Kong colonial, o uso do inglês era largamente utilizado também como mecanismo de distinção, e até de sofisticação, entre os advogados diante de uma população que majoritariamente desconhecia o inglês. As sentenças e demais peças processuais eram escritas em inglês, sem tradução para o chinês. Isso fazia do advogado, nesta época colonial, não apenas um tradutor dos interesses particulares do cliente, como também aquele que permitiria destrinchar os meandros da prática jurídica e sintonizar o cliente do que lhe acontecia ao seu redor – ou seja, desempenhava também o papel de tradutor. Para além disso, o uso do inglês fixava uma distinção interna à categoria profissional dos advogados, a saber, entre os profissionais mais experientes, e os mais jovens. Os primeiros, pelo momento em que obtiveram a sua educação, demonstravam um inglês elegante, gramaticalmente correto, enquanto os segundos, formados a partir do novo sistema educacional já em um contexto pós-colonial, demonstravam um inglês mais limitado e pobre. A mudança dos idiomas faria com que os primeiros vissem o seu "capital social", enquanto representação simbólica socialmente construída a partir das relações profissionais com a sociedade, diminuído em dois segmentos, um externo à categoria, outro interno: (1) externo - a função de tradução tornaria a ser irrelevante, já que as peças processuais acabariam por ser traduzidas no idioma pátrio; (2) interno – a mudança da língua faria com que a vantagem profissional de se conhecer um idioma não assimilado pelos novos profissionais, mas que engloba todo o campo de atuação profissional.
  8. Richard L. Abel, partindo de uma análise sociológica calcada na tradição weberiana, afirmou que para um setor profissional se estabelecer em uma economia de mercado, que é organizada pelo Estado, mas dominada pela iniciativa privada, devem ser estabelecidas duas coisas: (1) Construir uma "mercadoria profissional" (professional commodity), onde tratando-se de advogados seriam os seus serviços jurídicos. Essa mercadoria é algo que não pode ser possuída pelos seus clientes, mas também ser capaz de integração no rol de suas necessidades. (2) Deve criar uma clausura social de modo a afastar outros profissionais, exteriores à área, da prestação de seus serviços, ou seja, instituir um monopólio simbólico, mas se possível também jurídico, como seria o caso dos vários exames mundiais de admissão à carreira de advogado (ABEL, 1988, p. 8-21).
  9. O Ministro Público transforma-se em "paladino da justiça", ou "fiscal da lei". A Magistratura busca a "verdade material em detrimento da verdade formal", esta última existindo como elemento tipicamente processual e que viabiliza, por outro lado, o ganho de causas por parte dos advogados através da exploração de "falhas técnicas" (perda de prazos, indeferimento das testemunhas, falha na citação...). Por fim, os advogados são indispensáveis à administração da justiça. Por todo o lado, a grandeza e pura moral do Direito é exaltada com contornos religiosos. O ambiente de sacralidade somente passa a ser quebrado quando os subsídios ou honorários passam a ser discutidos, mas ainda aqui o adjetivo ´justo´ é comumente acrescentado: "os justos honorários", "os justos e modestos subsídios".
  10. Daí a prudência sustentada pelos juristas praticantes ao limitarem a crítica diante do seu ofício, respeitando a legitimidade dos atos jurídicos diante do ordenamento. Se o jurista teórico é capaz de duvidar até mesmo dos alicerces mais sólidos da dogmática jurídica, inclusive ao questionar a existência de um ato decisório completamente destituída de arbitrariedade, proclamando livremente o seu ceticismo, o jurista praticante atua como representante de uma ordem que o engloba, e é muito maior do que ele: sua decisão torna-se cada vez mais forte conforme se aproxima do ordenamento jurídico em vigor. A declaração de um suposto ceticismo, por parte de um representante da ordem jurídica no exercício de seu ofício, enquadra-se em um ato de fala performativo, já que realiza ação de colocar em evidência a legitimidade da função jurisdicional.
  11. O que é um problema para um prático pode não passar de trivialidade ou preciosismo para um teórico, enquanto os problemas suscitados pelos teóricos podem ser vistos como devaneio. Os mecanismos de resolução dos casos, as estratégias retóricas empreendidas pelos advogados, a maneira como juízes resolvem os casos mais difíceis, podem ser encaradas pelo olhar teórico como construções simplórias, pouco esclarecedoras, ou até mesmo arbitrárias. As distinções conceituais, a procura pela coerência, os problemas de decisão, dentre outros pontos, podem ser encarados como exercícios ornamentais de erudição acadêmica aos olhos daqueles que vivenciam a prática cotidiana do Direito. Neste sentido, o antagonismo atinge a sua mais alta expressão a partir do uso retórico de termos como ´relevância´ e ´importância´. Práticos dirão que não há grande relevância naquilo que muitos teóricos realizam, já que as implicações perante o mundo jurídico são mínimas, e suas constatações não ajudam resolver os casos mais intricados, ou as posturas mais questionáveis, seja por parte dos juízes (a arbitrariedade), como advogados (a dissimulação, o ardil desenfreado que transforma recursos jurídicos em verdadeiras armas jurídicas). Teóricos, em contrapartida, podem não ver grande relevância nas construções conceitualmente pouco sofisticadas dos práticos, sobretudo porque são passageiras, e transformam-se radicalmente ao sabor das mudanças no ordenamento. Em ambos os casos, o que se encontra por trás do "abismo", são noções distintas de problemas, fazendo com que aquilo que seja de fundamental importância para uns, torne-se trivial para outros.
  12. O problema não é o fazer, não é a decisão arbitrária, nem a manipulação do ordenamento jurídico. Esses elementos há muito se reproduzem no horizonte das decisões judiciais e do cotidiano forense, é algo que integra o imaginário popular sobre o direito e os juristas. O que é verdadeiramente problemático é o parecer, a forma como a arbitrariedade se expõe e se faz conhecer. O problema não é o juiz realizar uma decisão arbitrária, mas deixar claro que a sua decisão foi arbitrária.
  13. A utilização dupla do termo ´interpretação´ não está querendo expressar uma suposta redundância, mas sim uma meta-reflexão sobre a interpretação jurídica, e a sua história. Os juristas constantemente enfatizam os métodos interpretativos que utilizam para a resolução dos casos práticos, mas esquecem-se de prestar atenção sob a forma como essas teorias da interpretação são historicamente recepcionadas e interpretadas. A abordagem ao modo com que se interpretam as teorias hermenêuticas é a de que estas são suficientemente claras para serem problemáticas por si só. Sua eficácia, ou ineficácia, acaba sendo mostrada quando passam a ser utilizadas na resolução dos casos.
  14. Um exemplo simples seria o das empresas multinacionais que desempenham um duplo comportamento. O comportamento voltado aos países considerados de terceiro mundo enfatiza a responsabilidade social com que essas empresas sustentam perante a sociedade, gerando empregos, realizando doações, buscando proteger o meio ambiente, dentre outros pontos. O outro comportamento, voltado aos países subdesenvolvidos, expressa o contrário. A ideia é uma postura ética e protecionista ao meio ambiente voltada aos países desenvolvidos enquanto simultaneamente beneficiam-se da "flexibilidade" dos sistemas jurídicos dos países subdesenvolvidos para explorarem de maneira predatória o meio ambiente local.
Sobre o autor
Leonardo Monteiro Crespo de Almeida

Professor, Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR), Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Bacharel em Direito pela Faculdades Integradas Barros Melos (FIBAM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo. O império da interpretação enquanto poder simbólico.: A instrumentalização da hermenêutica jurídica a partir do pensamento de Pierre Bourdieu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3035, 23 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20197. Acesso em: 22 nov. 2024.

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