A criação de áreas naturais protegidas no uBrasil tem fundamento constitucional expresso: o art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição preceitua que incumbe ao Poder Público "definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção".
Para regulamentar o referido dispositivo constitucional foi editada pela União, no exercício da competência legislativa concorrente [01], a Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). O SNUC consolidou e organizou a até então esparsa legislação brasileira sobre unidades de conservação da natureza, prevendo uma série de princípios, objetivos, diretrizes, estrutura orgânica e classificação das unidades de conservação, entre outros dispositivos. Mais recentemente, através da Lei 11.516/2007, foi criada uma autarquia [02] para responder, no âmbito federal, pela Política Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
Parte considerável do SNUC brasileiro é inspirada nas categorias de áreas protegidas classificadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), respeitável organização internacional dedicada à conservação dos recursos naturais. Diversos outros países, respeitadas as peculiaridades locais, também se apropriaram ou se inspiraram nas orientações da UICN. No presente artigo, pretende-se analisar o modelo argentino, que, apesar de guardar semelhanças com aquele proposto pela IUCN (e, portanto, com o brasileiro), apresenta traços bastante característicos. Nesse sentido, pertinente o estudo da modelagem institucional das áreas naturais protegidas argentinas, que pode servir de exemplo ou ao menos de parâmetro para a tomada de decisão para os legisladores ou para as autoridades públicas ambientais brasileiras, em questões em que haja similitude com o marco legal pátrio, bem como para ampliar os horizontes dos estudantes brasileiros na matéria.
Há algumas diferenças basilares entre o modelo brasileiro e o modelo argentino. Neste último, não existe um marco normativo nacional tão abrangente como o SNUC. Isso porque, como no regime federativo argentino, conforme a Constituição de 1994 [03], os recursos naturais são de domínio de cada um dos seus 23 (vinte e três) estados provinciais, cada um desses estados tem competência para legislar sobre o tema, que inclui as áreas protegidas. Aliás, na Argentina, a maioria dos estados provinciais tem sua própria lei de áreas protegidas.
As exceções são as chamadas áreas protegidas de "jurisdição nacional", reguladas pela Ley Nacional 22.351/1980, que trata de Parques Nacionais, Monumentos Naturais e Reservas Nacionais. Entretanto, para que possa ser criada uma área protegida de "jurisdição nacional", antes as províncias precisam ceder a área na qual se pretende criar a área protegida ao Estado Nacional, através de uma lei provincial. Apenas depois disso é que a área protegida nacional pode ser criada, por meio de ato do Congresso Nacional, e será gerida pela Administración de Parques Nacionales (APN), uma espécie de autarquia vinculada à Secretaría de Turismo de La Nación) [04].
Inclusive, essa vinculação ao equivalente argentino do Ministério do Turismo brasileiro foi objeto de severas críticas e alguns elogios. O ponto positivo é que efetivamente houve benefícios tangíveis para a gestão dos parques nacionais, que passaram a receber mais recursos e a ter mais visibilidade no cenário turístico do país. Entretanto, o órgão terminou por ficar afastado dos temas ambientais básicos, que se relacionam (em muitos casos, diretamente) com as áreas protegidas, tais como a Estratégia Nacional de Biodiversidade, de 2003, e a coordenação do Conselho Federal de Meio Ambiente (CONFEMA) [05]. A APN deixou de ser vinculada à Secretaría de Ambiente y Desarrollo Sustentable (equivalente ao Ministério do Meio Ambiente do Brasil) no ano 2000.
No âmbito das províncias, "os órgãos a cargo das Áreas Protegidas tem um nível hierárquico e uma dotação de recursos quase insignificantes, salvo 2 ou 3 exceções" [06].
A despeito dos seus 37 (trinta e sete) artigos [07], a Ley Nacional 22.351/1980 é omissa na previsão de formas de efetiva integração e cooperação entre a APN e os órgãos correspondentes nos estados provinciais, para além da genérica possibilidade de celebração de convênios "con provincias, municipalidades, entidades públicas o privadas, sociedades del Estado o empresas del Estado o con participación mayoritaria estatal, ya sean nacionales, provinciales o municipales, para el mejor cumplimiento de sus fines" [08]. Também não há previsão para gestão territorial compartilhada, como se tem os mosaicos no SNUC brasileiro [09]. Além disso, o referido marco normativo não estabelece critérios ou ordem de prioridades para criação de novas áreas protegidas.
Todavia, esse vácuo normativo, no sentido de atribuir um caráter orgânico e sistêmico às áreas protegidas argentinas, tem previsão constitucional expressa no art. 41: "Corresponde a la Nación dictar las normas que contengan los presupuestos mínimos de protección, y a las provincias, las necesarias para complementarlas, sin que aquéllas alteren las jurisdicciones locales". Por isso, com base nesse fundamento constitucional, entende-se que o Congresso Nacional argentino pode avançar e fixar parâmetros mínimos de obrigatoriedade nacional para as áreas protegidas.
Fica claro, assim, que a Argentina não possui propriamente um sistema ou um marco legal geral para todas as suas categorias de áreas protegidas. Há, portanto, a lei nacional (Ley Nacional 22.351/1980) que se aplica apenas àquelas 03 (três) categorias de áreas protegidas nacionais (Parques Nacionais, Monumentos Naturais e Reservas Nacionais), e as leis de cada um dos estados provinciais.
Notas
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Competência legislativa
concorrente: art. 24, incisos VI e VII, da Constituição. No âmbito da
legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais, e a competência da União para legislar sobre normas gerais não
exclui a competência suplementar dos Estados (art. 24, §§ 1º e 2º).
- Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Instituto Chico Mendes ou ICMBio). As atribuições eram anteriormente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
- Art. 124º: Corresponde a las provincias el dominio originario de los recursos naturales existentes en su territorio.
- Uma exceção a esse procedimento complexo de criação foram aquelas áreas protegidas nacionais criadas antes da transformação dos antigos territórios nacionais em províncias (como foi o caso da Patagônia).
- O CONFEMA tem papel estratégico: integra a gestão ambiental do governo nacional com a das províncias.
- ADMINISTRACIÓN DE PARQUES NACIONALES. Las áreas protegidas de la Argentina: herramienta superior para La conservación de nuestro patrimônio natural y cultural. Buenos Aires, 2007. p. 6.
- A equivalente brasileira (Lei 9.985/2000 - SNUC) conta com 60 artigos.
- Ley Nacional 22.351/1980, art. 23, alínea "k".
- Lei 9.985/2000, art. 26.