1. INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a analisar a possibilidade jurídica de plúrimos domicílios para o servidor público federal, especialmente em razão da compatibilidade entre o domicílio necessário e a fixação voluntária de domicílio. O tema transborda a mera questão teórica, na medida em que daí decorrerá a definição do órgão judiciário territorialmente competente para processar e julgar ações propostas em desfavor da União.
2. DESENVOLVIMENTO
Sabe-se que, em consonância com o art. 76, §único, do Código Civil, o servidor público possui domicílio necessário no local em que exercer permanentemente sua função. Confira-se:
Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.
Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.
Nada obstante, o fato de exercer o cargo público em uma determinada localidade não lhe retira a possibilidade de estabelecer, voluntariamente e com ânimo definitivo, seu domicílio em outro lugar - notadamente quando inexiste qualquer vedação para tal. Em outras palavras, a existência de domicílio necessário de servidor público não impede, de per si, a existência de domicílio voluntário.
Para tanto, considere-se que o Código Civil brasileiro admite a ideia da pluralidade de domicílios, como bem explicitado por seu art. 71, senão vejamos.
Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.
Nesse sentido leciona a doutrina do civilista Silvio Rodrigues (2000, p.99):
O Código Civil brasileiro admitiu a ideia da pluralidade de domicílios, adotando, assim, o critério da legislação alemã e fugindo à orientação do direito francês. Neste último sistema o domicílio é necessariamente um só, enquanto no Código alemão se admite a pluralidade de domicílios.
Em sentido semelhante, os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 239):
Nos sistemas da unidade domiciliar, o indivíduo perde instantaneamente o domicílio que antes tinha, e recebe por imposição legal o novo, que durará enquanto persistir a situação que o gerou. Mas no nosso sistema, da pluralidade, não se verifica a perda automática do anterior. Pode verificar-se, no caso de o indivíduo estabelecer-se com residência definitiva no local do domicílio legal; mas pode não se verificar, se a pessoa conserva ainda o antigo, o que terá como consequência a instituição de domicílio plúrimo: o legal, decorrente do fato que o impõe, e a aquele onde aloja a residência com ânimo definitivo.
Como se vê, a previsão de domicílios plúrimos se encontra positivada em nossa lei civil - decorrente da clara opção do legislador pela adoção do sistema alemão - conforme análise pacífica da doutrina pátria.
Assim, há de ser reconhecido, independentemente daquele legalmente estabelecido, o domicílio voluntário do servidor público
Afinal, como advém do art. 70 do Código Civil, "o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo". Interpretando o referido dispositivo, o mestre civilista Silvio Rodrigues (2000, p.98) esclarece que "há, portanto, conjunção de elemento material, representado pela ideia de residencia, com outro, psicológio, representado pelo requisito do ânimo definitivo".
O elemento subjetivo da fixação do domicílio (ânimo definitivo), por sua vez, decorrerá e será caracterizado pelo manifesto propósito de fazer de um determinado local o centro de suas atividades.
E tal propósito pode ser facilmente demonstrado, e.g., quando o domicílio voluntário coincide, dentre outros, com a) o mesmo de seu cônjuge, descendentes e ascendentes; b) domicílio eleitoral; c) local de inscrição e registro em órgão de classe ou de carteira nacional de habilitação.
Ora, a residência do cônjuge e descendentes em domicílio diverso bem demonstra o real intento do servidor fixar seu domicílio voluntário nesse último, o também ocorre quando seus ascendentes ali também residem – reforçando a voluntariedade de retorno a sua terra originária por vínculo afetivo-cultural.
O cumprimento das obrigações eleitorais no município que pretende fixar domicílio voluntário também indica esse último como o local de exercício da cidadania. Note-se que o local do exercício dos direitos políticos também possui implicância no âmbito da definição para a propositura de ação popular (art. 1º, §3º da Lei 4.717/65)
A inscrição e registro em órgão de classe e trânsito no município desejado também acarreta o cumprimento de obrigações inerentes ao exercício do trabalho e cidadania, corroborando com o restante do conjunto probatório.
Tal conjunto fático é suficiente a demonstrar o ânimo do servidor público, quanto à definitividade, em estabelecer domicílio na região desejada, onde segue exercendo direitos e cumprindo deveres. Afinal, pela conceituação de domicílio voluntário, temos ser esse aquele estabelecido livremente pelo indivíduo sem sofrer outra influência que não a de sua vontade ou conveniência.
Sob outra perspectiva, há de se ressaltar que as constantes mudanças de cidades decorrentes do exercício de cargo(s) público(s) também apontam no sentido da precariedade, no sentido de permanência e definitividade, do domicílio necessário.
Ora, constantes mudanças, especialmente em curto espaço de tempo, apontam para inexistência de ânimo definitivo de residência em qualquer outra região, que não seja a de sua região desejada.
Nesse sentido, a adoção de tese contrária, acarretaria sobremaneiramente a dificuldade de acesso do servidor público federal à Justiça, mormente quando por força da regra da perpetuatio jurisdictionis (art. 87 do CPC), a ação potencialmente tramitaria em município no qual o servidor não mais estaria lotado e para o qual não teria qualquer vínculo de caráter subjetivo.
Repita-se, tais circunstâncias são aptas a comprovar a real intenção do Excepto, inclusive, tal qual disposto no §único do art. 74 do Código Civil.
Art. 74. Muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar.
Parágrafo único. A prova da intenção resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem.
Grifou-se
No sentido aqui defendido, há, inclusive, pronunciamentos reiterados de Cortes Federais, quanto à possibilidade de domicílio voluntário para servidor público. Confira-se:
PROCESSUAL CIVIL – CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – SERVIDOR PÚBLICO MILITAR – DUPLO DOMICÍLIO – FACILITAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA – ART. 109, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Conflito negativo de competência suscitado pelo Juízo Federal da 1ª Vara de Niterói-RJ em face do Juízo Federal da 5ª Vara de São João de Meriti-RJ, em ação ajuizada por servidor público militar. 2. Não cabe ao Judiciário restringir a interpretação do domicílio do servidor público, para fins de fixação de competência, eis que o escopo das regras que culminaram com a regionalização e interiorização da Justiça Federal, foi o de facilitar o acesso à prestação jurisdicional de forma mais ágil e célere, na esteira da normatização emanada da Constituição Federal (art. 109, § 2º). 3. O referido artigo é claro ao estabelecer: "As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal". 4. In casu, o autor possui dois domicílios, visto que reside no Município de Nova Iguaçu e exerce suas atividades funcionais no Município de Niterói. A previsão legal de domicílio necessário para o servidor público não lhe retira a possibilidade de propor demandas no foro do seu domicílio voluntário, mais conveniente e que melhor atende à finalidade constitucional de facilitar e ampliar o acesso à Justiça. É de lhe ser facultada a escolha do foro, na forma do preceito constitucional aludido. 5. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 5ª Vara de São João de Meriti-RJ
(CC 200802010157949, Desembargador Federal FREDERICO GUEIROS, TRF2 - SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, 23/09/2009)
PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SERVIDOR PÚBLICO. DUPLO DOMICÍLIO. FACILITAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA. ART. 109, § 2º, DA CRFB/88. - Cuida-se de Conflito Negativo de Competência suscitado pelo Juízo Federal da 1ª Vara de Niterói, tendo em vista a decisão do Juízo Federal da 5ª Vara de São João de Meriti, que determinou a distribuição dos autos da ação ordinária n.º 2008.51.10.003524-0 àquele Juízo, sob o fundamento de que incide, na espécie, a regra do parágrafo único, do art. 76, do Novo Código Civil, devendo a expressão domicílio a que aduz a Constituição Federal ser compatibilizada com a condição profissional do autor, in casu, militar que serve no Navio Oceanográfico Antares, situado no Município de Niterói. - Não obstante o posicionamento esposado pelo MM. Juízo suscitado, esta Relatoria entende que não cabe ao Judiciário restringir a interpretação do domicílio do servidor público, para fins de fixação de competência, eis que o escopo das regras que culminaram na regionalização e interiorização da Justiça Federal, foi o de facilitar o acesso à prestação jurisdicional de forma mais ágil e célere, na esteira da normatização emanada da Constituição Federal (art. 109, § 2º). - O referido artigo é claro ao estabelecer que "As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal". -In casu, o autor possui dois domicílios, visto que reside no Município de Nova Iguaçu e exerce suas funções no Município de Niterói. A previsão legal de domicílio necessário para o servidor público não lhe retira a possibilidade de propor demandas no foro do seu domicílio voluntário, mais conveniente e que melhor atende à finalidade constitucional de facilitar e ampliar o acesso à Justiça. Dessa forma, é de lhe ser facultada a escolha do foro, na forma do preceito constitucional aludido. - Atente-se que tal competência será fixada mediante opção do autor, tendo em vista que a norma constitucional visa beneficiar o demandante da ação contra a União e, mais uma vez, facilitar seu amplo acesso à Justiça. - Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 5ª Vara de São João de Meriti-RJ, o suscitado.
(CC 200802010196517, Desembargador Federal LEOPOLDO MUYLAERT, TRF2 - SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, 23/01/2009)
(Grifou-se)
Verifica-se, portanto, que a tese aqui defendida já possui ressonância nas Cortes Federais, onde se reconhece a possibilidade de servidor público federal propor demanda judicial em desfavor da União na seção (ou subseção) judiciária federal de seu domicílio voluntário.
3. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se seja conferida interpretação sistemática ao art. 76 do CC, de modo a reconhecer a legitimidade de plúrimos domicílios do servidor público federal, inclusive, como forma de dar máxima efetividade à garantia fundamental de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV da CF) para, ao final, admitir seu domicílio voluntário para fins de fixação de competência territorial nas causas intentadas em desfavor da União Federal (art. 109, §2º da CF).
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. CC 200802010196517. Relator: Leopoldo Muylaert, Sexta Turma Especializada. Rio de Janeiro, RJ, 23 de janeiro de 2009.
______. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. CC 200802010157949. Relator: Frederico Gueiros, Sexta Turma Especializada. Rio de Janeiro, RJ, 23 de setembro de 2009.
PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Vol. I, 20 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Parte Geral. 31. ed. São Paulo: Sairava, 2000.