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Atuação tardia do Estado em áreas de exclusão social extrema: o poder biopolítico na invasão do Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro

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Agenda 04/01/2012 às 08:05

O Estado espetaculariza a ocupação das comunidades sob o apanágio de retomar a ordem e o progresso, mas os criminosos se articulam e migram para áreas menos policiadas, no centro, junto ao cidadão comum, desempregado, subassalariado, nu, desprotegido dentro de um Estado que não lhe pertence, não lhe existe e de completa exceção.

RESUMO

No dia 25 de novembro de 2010, com a atuação das forças armadas e de segurança de âmbito estadual e federal, o governo carioca invadiu e estabeleceu residência em duas favelas do Complexo do Alemão, cidade do Rio de Janeiro, comunidades extremamente pobres e marginalizadas. O objetivo da operação foi a ocupação de áreas, dominadas a décadas por criminosos, em especial, traficantes de drogas e grupos paramilitares. Seria uma atividade elogiosa se não fosse a repetição de uma mega operação ocorrida em 2007, se não fosse o vergonhoso e intrigante abandono estatal dessa e de tantas outras favelas de um Brasil de marginalizados submetidos aos caprichos de uma biopolítica economicamente interesseira. A ocupação de áreas de exclusão social extrema nos aparece, na verdade, travestida de interesses financeiros ao ser desencadeada com o pano de fundo de proteção para a realização de grandes eventos na cidade maravilhosa, dentre os quais, a copa do mundo de 2014 e as olimpíadas de 2016, que certamente atrairão vultosas cifras de recursos. Por um lado o Estado espetaculariza a ocupação das comunidades sob o apanágio de retomar a ordem e o progresso, por outro, os criminosos se articulam e migram para áreas menos policiadas, no centro, o cidadão comum, desempregado, subassalariado, nu, desprotegido dentro de um Estado que não lhe pertence, não lhe existe e de completa exceção.


Sumário: 1 Introdução; 2 O Estado Social Brasileiro; 2.1 O crescimento desordenado da cidade do Rio de Janeiro e o aparecimento das favelas; 2.2 A realidade das comunidades existentes no Complexo do Alemão; 3 O Estado Soberano Brasileiro; 3.1 A (i)legitimidade da força na invasão do Complexo do Alemão; Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

Um Estado Democrático de Direito deve propiciar a todas as pessoas nele inseridas as mesmas oportunidades e garantir que todos sejam tratados com respeito e dignidade, observando-se os princípios constitucionais, os tratados e as convenções de Direitos Humanos que invocam a igualdade, a liberdade e a fraternidade para todos os homens, entretanto, operações de força desencadeadas em áreas de exclusão social extrema, comumente chamadas de favelas, tem evidenciado uma ação tardia e desproporcional do Estado nessas comunidades, constituídas, em regra, por um amontoado de pessoas em condições de extrema pobreza e total precariedade.

Para análise do problema, determinamos uma linha de estudo de pesquisa qualitativa, partindo de informações bibliográficas, fonte de estudos privados, dados estatísticos e documentos oficiais, a fim de tentar entender e justificar um cenário de mega operações policiais desencadeadas na cidade do Rio de Janeiro, detentora de inúmeros territórios de exclusão (ou de exceção), os quais se mostram emblemáticos e se prestam de parâmetro para explicar acontecimentos similares ocorridos em todo o território brasileiro.

Inicialmente, contrastamos a norma constitucional e as propostas sociais nela inseridas que, se fossem cumpridas pelos governantes, certamente anularia toda e qualquer possibilidade de verdadeiras guerras civis urbanas desencadeadas entre classes de pessoas que, no pensamento de Aristotélico, vivem (zên) e vivem bem (eû zên) (apud AGAMBEN: 2007, p. 14).

Na sequência descrevemos os fatores que propiciaram o aparecimento de favelas, como as que compõem o Complexo do Alemão, nosso território de exceção, e pudemos constatar que o crescimento desordenado da cidade do Rio de Janeiro, sem o devido acompanhamento do poder público, foi um aspecto determinante para a construção de um ambiente informal e decadente. Aqui relatamos a dramática situação dos moradores das favelas, divididos entre uma minoria de criminosos infiltrados e uma maioria de cidadãos desempregados e subempregados, submetidos a duas estruturas de poder, legal e ilegal, igualmente excludentes e opressoras.

Finalmente, buscamos destacar e evidenciar um poder estatal soberano atuante em ambientes de exclusão extrema, caracterizado por entes biopolíticos construídos nas democracias latino americanas pós ditaduras e que se firmam negativamente ao se comportarem em clara inobservância e desrespeito aos preceitos constitucionais, excluindo categorias de pessoas do direito de viver e viver bem. Assim como enfatiza Campos (2000, p. 239), "embora tenham ocorrido flutuações no panorama social da América Latina ao longo do século XX, como decorrência das diferentes fases de acumulação do capital e das distintas formas de mediação entre o Estado e a sociedade, a estrutura social perversa é uma constante".

Um histórico de promessas não cumpridas afastou o povo de seus governantes e a obtenção de um novo ambiente biopolítico passa necessariamente, por um resgate da confiança e da comunicação, que somente será alcançado por ações educacionais que possam ser medidas, no sentido de produzir uma mudança de comportamento social pelo resgate da autoestima dos moradores de favelas, no momento em que passam a usufruir dos benefícios públicos, influenciando diretamente na tomada de decisões que lhes garanta qualidade de vida. Como bem enfatiza o pensamento de Einsten (SÃO PAULO: 2000, p. 28): "A educação deve ajudar o jovem a crescer num espírito tal que os princípios éticos fundamentais sejam para ele como o ar que respira".


2 O Estado Social Brasileiro

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) destaca uma profunda preocupação com os direitos sociais, notadamente, em seu preâmbulo quando enfoca que a assembleia nacional constituinte se reuniu para "instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)". Alguns desses princípios são tão importantes que se encontram enumerados em tratados e convenções internacionais, originando dentre eles a Declaração Universal de Direitos Humanos que proclamou a igualdade, a liberdade e a fraternidade como princípios fundamentais em matéria de direitos humanos, em um mundo onde os esforços devem ser no sentido de que todas as pessoas "(...) gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade (…)" (COMPARATO: 2007, p. 228), resumindo a mais alta aspiração do homem comum.

A partir dessa premissa devemos concluir que o estado brasileiro volte seus esforços para assegurar com qualidade seus fundamentos, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais, dispostos no art. 1º da CRFB/88, pois "(...) todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...)". Assim, os poderes executivo, legislativo e judiciário, respeitadas as independências funcionais, devem atuar com harmonia (art. 2º, CRFB/88) para que tenhamos uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolvimento econômico, com o propósito de erradicarmos a pobreza, a marginalização neste país. Esse esforço visa possibilitar que cada um dos brasileiros, mais que simples viventes, passem a atuar politicamente como verdadeiros cidadãos onde, segundo Junior e Nery (apud AFONSO: 2009, p. 151), "(…) é também aquele que participa da vida do Estado, pessoa humana titular dos direitos fundamentais (CF, art. 5º), cuja dignidade humana (CF, art. 1º, III) tem de ser respeitada pelo Estado e demais concidadãos".

O Brasil, diferente do que se possa imaginar, não carece de recursos econômicos, entretanto, possui um padrão de distribuição de renda inexplicavelmente injusto, levando-se em conta que, de acordo com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (BRASIL: 2010, p. 54),

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(...) se mais de 75% da população mundial vivem com uma renda per capita inferior à brasileira, é forçoso reconhecer que as precárias condições de vida de seguimentos importantes da sociedade brasileiro advêm não de uma escassez absoluta de recursos, mas sim da má distribuição desses. Em conformidade com o Relatório sobre Desenvolvimento Humano da ONU de 1998, no Brasil 20% dos mais ricos controlam mais de 64% da renda, enquanto os 20% mais pobres sobrevivem com 2,5% da renda.

Destaca-se que, em parte, o século XXI tem sido um pouco diferente para a história desse país, haja vista que inúmeros programas (BRASIL, 2008. 244p) vem sendo implementados pelo governo brasileiro e disponibilizados aos entes estatais, os quais, em última análise, buscam diminuir as desigualdades sociais. Esses programas do governo federal, considerados instrumentos auxiliares, buscam melhorar a gestão pública e estreitar a relação de parceria entre a União e os municípios brasileiros, para que "(...) o gestor municipal e sua equipe disponham de informações sobre a totalidade das iniciativas federais que podem auxiliá-lo na execução de seu plano de governo e que muito contribuiu para a criação e fortalecimento de um espaço de debate federativo denominado Comitê de Articulação Federativa" (BRASIL, 2008: p 09). Tantos programas evidenciam um lamentável estado de exclusão social que impulsionou a pobreza e um ambiente de violência nos centros urbanos brasileiros, destacados por classes de pessoas colocadas em uma tal de "(...) simples vida natural e, porém, excluída, no mundo clássico, da pólis propriamente dita e resta firmemente confinada, como mera vida reprodutiva" (AGAMBEN: 2007, p. 10).

Talvez no intuito de reconhecer veladamente seus erros ou, como forma de manter suas regalias, o Estado implanta uma nova realidade de benefícios sociais que evidentemente não pode representar outra medida senão a de resgatar ao ambiente comum todos os cidadãos deste país, mas, em especial, aquele ser vivente marginalizado que aos poucos foi sendo afastando e se escondendo em territórios desconhecidos da cidade formal. Em referência a essa situação é que Foucault (apud AGAMBEN: 2007, p. 11) afirma que:

(...) nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começou, por sua vez, a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a politica se transforma em biopolitica: "Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente.

Conforme dados oficiais (BRASIL: 2010, p. 05), nos últimos oito anos, "(...) o Brasil tirou 28 milhões de brasileiros da pobreza e levou 36 milhões para a classe média (...)", entretanto, "(...) ainda restam 16 milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza" e esse processo de ascensão social poderá ser decisivo para a redução das desigualdades, o fortalecimento da economia e a aceleração do crescimento do país". O estudo sobre os extremamente pobres constatou que (BRASIL: 2010, p. 10):

A insuficiência de renda é um relevante indicador de privações, mas não é o único e fatores sociais, geográficos e biológicos multiplicam ou reduzem o impacto exercido pelos rendimentos sobre cada indivíduo. Entre os mais desfavorecidos faltam instrução, acesso à terra e insumos para produção, saúde, moradia, justiça, apoio familiar e comunitário, crédito e acesso a oportunidades.

Constatamos que o ciclo da extrema pobreza derivada dessa política social excludente, elevou os patamares da violência em todo o país, em localidades e envolvendo pessoas com características especiais (BRASIL: 2010, p. 05), entretanto, considerando que as operações de força realizadas pelo estado se mostram mais midiáticas em grandes cidades, direcionamos nosso foco de estudo para as consequências resultantes da não atuação estatal, pontualmente, na comunidade (favela) do Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro. Segundo estudos de Cortez e Oliveira (1999, p. 67), "considerável parcela desta população (25,7%) é proveniente de outros estados do Brasil (destacando-se a região nordeste com 69,7% dos não residentes). Esta parcela é ainda maior nas pessoas com 40 anos ou mais de idade (51,0%)".

Neste aspecto destacamos que o Plano Brasil Sem Miséria estabelece como metas de atuação nas cidades, "gerar ocupação e renda para os mais pobres, entre 18 e 65 anos de idade, mediante cursos de qualificação profissional, intermediação de emprego, ampliação da política de microcrédito e incentivo à economia popular e solidária, beneficiando dois milhões de brasileiros" (BRASIL: 2010, p. 11). Replicando as observações de Aristóteles (apud AGAMBEN: 2007, p. 14), nos parece que o governo brasileiro retoma um paradigma de fazer com que todas as pessoas deste país, mais do que viver (zên), necessitam viver bem (eû zên), de modo a restabelecer o princípio da dignidade da pessoa Humana, tão importante que é na visão de Junior e Nery (2009, p. 151), um princípio que "se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico" e "uma ciência que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito".

2.1 O crescimento desordenado da cidade do Rio de Janeiro e o aparecimento das favelas

O empobrecimento da população brasileira pode ser representado pela fotografia urbana observada nos morros da cidade do Rio de Janeiro, diríamos sem nenhuma conotação pejorativa, tratar-se de "(...) um exemplo privilegiado, pois aqui a crise do Estado e as políticas econômicas neoliberais transformaram a favela em parte da solução para o problema habitacional, anulando a imagem cultivada durante décadas de um problema a ser resolvido" (BARREIRA e BOTELHO: 2008, p. 05).

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) convencionou denominar as favelas em aglomerados subnormais, caracterizando-as por "grupos de mais de 50 unidades habitacionais dispostas de modo 'desordenado e denso', sobre solo que pertence a terceiros, e 'carente de serviços públicos essenciais'. Opõem-se aos setores normais que, por exclusão, constituem a cidade formal" (RIO DE JANEIRO: 2002, p. 01) e de acordo com o estudo elaborado pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro no intuito de se averiguar as causas determinantes do aparecimento e crescimento das favelas no município, essa divisão de classes sociais estipuladas pelo IBGE se prestaria mais para efeitos de organização do trabalho de coleta de dados em campo. Verificou-se que no último período intercensitário (RIO DE JANEIRO: 2002, p. 02), a taxa média de crescimento demográfico na cidade carioca foi:

(…) de 0,73% ao ano, maior que os 0,67% anuais do período anterior (1980 a 1991). Considerando separadamente setores normais e subnormais, a diferença é bem grande. A taxa de crescimento dos setores subnormais é de 2,4% ao ano, enquanto que o resto da cidade cresce apenas 0,38% ao ano. Isso quer dizer que as "favelas" crescem em um ano o que o "asfalto" leva mais de seis anos para crescer, no conjunto. E o crescimento das "favelas" se acelerou recentemente, pois na década anterior a população dos setores subnormais havia crescido apenas 1,91% ao ano. Em resumo, éramos 5.480.778 residentes no Rio em 1991, e passamos a ser 5.851.914 em 2000. E o número de "favelados" já passa de um milhão.

Em meio a uma crise econômica a que foi submetido o Brasil entre as décadas de 70 a 90, a melhor alternativa para o problema da moradia entre esse contingente crescente de excluídos foi politizar a não-solução do problema e programas como o Favela-Bairro, tiveram como objetivo "(...) facilitar o acesso do poder público às ‘comunidades’ através da abertura de ruas e alargamento de vielas e corredores" e assim, vimos implantado aqui ao que se denominou "Estado mínimo" (BARREIRA e BOTELHO: 2008, p. 07). Um Estado que, historicamente, não se envergonha e não se intimida com as promessas vazias, com os programas de ação futura, pois de nada adiantam "(...) normas de eficácia contida ou limitada se os Poderes Públicos não as cumprir plenamente, criando, para tanto, as condições necessárias (...)", obrigando que outras entidades e segmentos "(...) cobrem a execução concreta dos preceitos constitucionais, principalmente num país de significativa inflação legislativa e de reformas inoportunas e despropositadas como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o respeito ao homem é quase inexistente" (BULOS: 2007, p. 620).

Não é difícil de entender que diante da presença inexpressiva do poder público e da presença maciça do poder político, as portas dessas comunidades fossem franqueadas para que traficantes de drogas e organizações paramilitares obtivessem o domínio desse território e transformassem a vida de seus moradores em um apenas viver, confirmando a ideia de que "a vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens" (AGAMBEN: 2007, p. 15). Importante observar que segundo Barreira e Botelho (apud RIBEIRO e LAGO: 2001, p. 01):

Nas ultimas décadas a expansão demográfica do Rio de Janeiro foi sempre acompanhada por um crescimento das favelas, num ritmo em media duas vezes maior que o restante da população. O significativo é que mesmo acompanhando a queda nos índices de crescimento populacional, a população das favelas continua a crescer e passou a abranger 17,57 % da população carioca em 1991, quando em 1980 totalizava 14,19 %.

Se por um lado o amontoado de excluídos crescia na informalidade e na ilegalidade para servir aos interesses e atender às necessidades econômicas da cidade, pois se constituía de uma mão de obra barata e uma solução para o problema da moradia, por outro, germinava em sua complexidade uma bem articulada escola de criminosos que mais à frente determinaria um intrincado e complexo lugar para atuação pacífica do próprio poder estatal. O tratamento despretensioso da política com o crescimento desordenado das favelas, na verdade, resultaria na mais difícil missão a ser resolvida pelos governos federal e estadual, uma verdadeira guerra civil a ser fortemente e ferozmente combatida neste território de exceção. Surpreendentemente, um território derivado, em um primeiro momento, da ausência de um poder constituído para em um momento posterior ressurgir com braços de ferro a implantar a ideia de reorganizar o desorganizado. Um conceito difícil de entender, pois "dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos" (AGAMBEN: 2004, p. 12).

O Estado político permite o aparecimento na cidade do Rio de Janeiro de um estado paralelo dentro do estado legal, pois ao se afastar das medidas que deveriam conduzir a um plano diretor de crescimento urbano legítimo, deixa de ser um agente de responsabilização e solução de problemas sociais para representar um mero expectador dos indivíduos viventes a resolverem seus próprios problemas, como se houvesse delegado a todos e a ninguém suas responsabilidades estatais. Um ser humano qualquer é sempre um ser humano completo, "(...) não são sombras, não são aparências, são realidades concretas e vivas" e não podem ser tratados como instrumentos, mas como o fim último do poder político, uma vez que é "por causa do homem é que se constituiu todo o direito" (SÃO PAULO: 2000, p. 22 e 23).

Segundo estudo realizado por Barreira e Botelho (2001, p. 10), se por um lado a "população do Rio de Janeiro está se encaminhando gradualmente para as favelas, não é menos verdadeiro que um fenômeno concomitante e complementar está ocorrendo: a favela está descendo o morro e ocupando o asfalto, isto é, em várias áreas da cidade a decadência dos equipamentos públicos, a desestruturação do espaço urbano, a degradação urbanística está convertendo bairros em favelas". Torna-se relevante essa informação uma vez que o interior das favelas, anteriormente ocupado por desempregados e subempregados, agora se rende ao controle paraestatal de traficantes e outras modalidades de criminosos que passaram a controlar e a sobretaxar a prestação de serviços públicos, bem como o controle imobiliário de ocupação do solo, circulação de pedestres e isolamento de áreas para comercialização de produtos ilícitos.

A população amedrontada ou mais miserável, sem ter como permanecer neste território onde a lei formal se tornou obsoleta, e sem alternativa, se vê obrigada a migrar rumo ao asfalto a engolir a cidade. Nesse sentido diríamos que subsiste na cidade do Rio de Janeiro, em um sentido figurativo e contraposto, dois estados totalitários modernos, um legal e um ilegal, ambos, entretanto, podendo ser definidos como descreve Agamben (2004, p. 13):

(...) a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareça não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.

Mostra-se visível um amontoado de pessoas sem qualquer ambiente propício a se instalar, levados como ondas de um mar revolto em várias direções simultaneamente e a nenhum lugar em definitivo, alinhadas com o pensamento iluminado de Arendt (1989, p. 329) a descrever que "a calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades – mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade".

2.2 A realidade das comunidades existentes no Complexo do Alemão

O Complexo do Alemão, situado na zona norte do Rio de Janeiro, é composto por um agrupamento de doze favelas, dentre as quais o Morro do Alemão, como núcleo do complexo, sendo considerada uma das mais populosas do município. Neste sentido é que qualquer atuação estatal no complexo deve levar em consideração a sua própria formação que serviu de moradia, por muito tempo, a trabalhadores de indústrias instaladas na região, o que contribuiu para um grande fluxo migratório, "(...) fazendo com que até os anos de 1980, esses bairros se apresentassem como o principal pólo industrial da cidade" (OLIVEIRA: 2011, p. 03). Entretanto, como frisado anteriormente, a crise financeira entre as décadas de 70 a 90, obrigou o fechamento de muitas fábricas, gerando em consequência uma rápida perda de poder aquisitivo da população local que, somado a ausência efetiva do poder público neste território, desencadeou o aumento dos índices de violência e a submissão de famílias inteiras a situação de extrema pobreza ou miséria absoluta. De alguma forma, essa situação foi determinante para o aparecimento de classes de pessoas viventes (zên) que passariam a se submeter a longos anos de total exclusão do ambiente de democracia plena e, por outro lado, muito próximas do estado de democracia totalitário, uma vez que "(...) a vida e a dignidade de uma pessoa exigem a satisfação de valores, cabendo ao Estado assegurar um piso vital mínimo de direitos que devem ser assegurados para o desfrute da sadia qualidade de vida" (FIORILLO: 2005, p. 147).

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (OLIVEIRA: 2011, p. 03) revelam que,

(...) o Complexo possui IDH de 0,709 e está em último lugar no ranking do IDH das 32 Regiões Administrativas (R.A.) do município do Rio de Janeiro. Enquanto a média da renda per capita na R.A. Lagoa é de R$ 2228,78, na R.A. do Complexo do Alemão é de apenas R$ 177,31 (tabela 1). A mesma relação está para a média de anos de estudo (tabela 2). Enquanto a R.A. Lagoa possui uma média de 10,14 anos, na R.A. Complexo a média é de 4,21 anos, a segunda pior do município.

Os números revelados no Complexo do Alemão não se divergem daqueles registrados em todo o resto do Brasil, e mesmo com o fim do regime militar na década de 90 e o retorno do que deveria ser um regime democrático de direito, o Brasil continua a exibir vergonhosos índices de pobreza e exclusão. Conforme aponta Nogueira (2005, p. 24): "o número de brasileiros que sobreviviam com menos de US$ 1 por dia atingia 11,6% da população (...) e "cerca de dois terços da população (mais de 100 milhões de pessoas) obtinham uma renda mensal menor que US$ 150". Tanta desigualdade e distância a separar o topo da pirâmide da base economicamente desclassificada representa ao que Campos (2002, p. 238) chama de uma "nova ordem política" a refletir "(...) uma concepção minimalista de democracia, reduzida à institucionalização de um sistema legal centrado na governabilidade e na eficiência administrativa, alheio à realidade social plena de contradições que domina o cenário da região (...)".

Para minimizar toda essa desordem e injustiça social, e já evidenciados todos os programas implementados para a melhor gestão dos municípios e erradicação da pobreza extrema, resta destacar que no ano de 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em todo Brasil, por intermédio do qual se propôs a "(...) promover investimento em infra-estrutura e cidadania nas regiões mais pobres do País" (OLIVEIRA: 2011, p. 01). Em relação ao Rio de Janeiro, o programa existe desde abril de 2008, em várias cidades e bairros, inclusive em inúmeras comunidades como a do Complexo do Alemão.

O programa, em complementação aos diversos outros programas já em andamento, procura incrementar uma parceria com os governos estaduais e municipais a propiciar um modelo de desenvolvimento econômico e social de regiões periféricas que possa garantir investimentos em infra-estrutura e geração de emprego e renda, como também ações que estimulem o fortalecimento da sociedade civil e dos próprios moradores locais, contudo, constata-se que (OLIVEIRA: 2011, p. 01/02),

(...) os esforços para aproximação dos canais institucionais de interlocução que buscam o fortalecimento da participação popular em programas governamentais, por meio de uma gestão compartilhada, numa sociedade estruturalmente fundada sob relações assimétricas e de privilégios, tal esfera pública ainda se apresenta incapaz de incorporar sujeitos historicamente subalternizados e discriminados. Além da herança patrimonialista e personalista que a sociedade brasileira cultivou ao longo de sua trajetória republicana, o próprio alicerce ideológico que fundamenta o modelo de democracia no País, contribui para a permanente não-inclusão de grande parcela da sociedade em espaços de deliberação e tomada de decisão política.

A partir dessa análise, somos forçados a pensar que, de certa forma, os programas sociais do governo federal em comunidades como a do Alemão, parece ter chegado um tanto quanto atrasada e em meio a um contexto que dificulta ou impede a percepção dos objetivos finalísticos desses projetos. A desconfiança e a descrença das pessoas com a falta de seriedade estatal, somada à ideologia política criminosa implantada nas favelas chegaram a patamares tão elevados que obriga o poder político a adotar medidas extremas de força para conseguir implementar suas ações. Lembrando a "teoria política" contida no Leviathan de Hobbes (apud ARENDT: 1989, p. 168), "na qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural, seja contrato social – que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais".

A ausência extrema do estado em territórios de exclusão social reforça e confirma a ideia de ações políticas determinadas pelo critério da necessidade, exprimindo um conceito de estado de exceção segundo o qual "(...) a necessidade não reconhece nenhuma lei" e "a necessidade cria sua própria lei" (AGAMBEN: 2004, p.40), assim, esse comportamento biopolítico de agir por necessidades acaba por oportunizar o aparecimento e a multiplicação de criminosos capazes e dispostos a enfrentar o poder formal, de forma que por analogia ao espectro de ambiente alertado por Arendt (1989, p. 336), "(...) uma civilização global, universalmente correlata, possa produzir bárbaros em seu próprio seio por forçar milhões de pessoas a condições que, a despeito de todas as aparências, são as condições da selvageria".

Sobre o autor
Paulo Roberto de Medeiros

Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto. Atuação tardia do Estado em áreas de exclusão social extrema: o poder biopolítico na invasão do Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3108, 4 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20782. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Artigo jurídico apresentado como conclusão da disciplina de Teoria del Derecho, do Prof. Dr. Marcelo Rafin, do Curso de Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires.

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