3. A necessidade de reaproximação do direito processual ao direito material e a contribuição da tutela inibitória
Ao longo deste ensaio foi possível caracterizar a insuficiência da tutela processual clássiva (reparatória) a fim de dar vazão à tutela jurisdicional dos direitos não patrimoniais, sobretudo diante da rápida evolução dos "novos direitos", pondo-se em risco os escopos do direito processual civil. Deveras, a ausência de uma tutela jurisdicional apta e adequada a estabelecer a proteção jurídica inibitória em face dos direitos não patrimoniais decorre, essencialmente, do isolamento e distanciamento do direito processual frente o direito material.
Nessa direção, sintetiza o isolamento e distanciamento do direito processual civil e a necessidade de retomar-se o caráter instrumental do processo a doutrina de Daniel Mitidiero:
É claro, porém, que esse clima processualista acabou por isolar em demasiado o direito processual civil do direito material e da realidade social. Paulatinamente, o processo passa a perder o seu contato com os valores sociais. Quanto mais precisos ficavam os seus conceitos, quanto mais elaboradas as suas teorias, mais o processo se distanciava de suas finalidades essenciais. Ganha consistência, então, a idéia de que o direito processual civil, sem se descuidar de sua dogmática, já conquistada, deve ser encarado, precipuamente, como um instrumento a serviço do direito material, atento às necessidades sociais e políticas de seu tempo. Exsurge, portanto, a perspectiva instrumentalista do direito processual civil, cujo arauto maior, no Brasil, veio a ser Cândido Rangel Dinamarco. [21]
Frente a esse quadro, foi preciso que se relativizasse o binômio direito processual e material, trazendo-se para o debate a necessidade imperiosa de que o processo potencialize a consecução dos escopos do direito processual civil, quer tomando-o como instrumento de tutela do direito material, quer buscando-se soluções, tanto quanto possível, preventivas de uma futura violação dos direitos, em especial quando se cuide de tutelar direitos fundamentais (novos ou não), cuja aplicabilidade e eficácia é plena e imediata por força da cláusula inserta no artigo 5º, § 1º da Constituição.
Nessa perspectiva, a dogmática processual civil avança de uma fase instrumentalista – cuja ideologia guarda valia até os dias de hoje, para uma fase em que o processo é interpretado pelo formalismo-valorativo, cujos valores sintetizam a tentativa de resgatar a base axiológica que conformou a promulgação da Constituição de 1988, vale dizer, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no artigo 3º da Carta da República, os quais se traduzem, em síntese, nos ideais de justiça, liberdade, desenvolvimento (sustentável) e igualdade.
A questão do formalismo-valorativo, base de um processo civil instrumental e cooperativo, foi tratada pela doutrina de Daniel Francisco Mitidiero, in verbis:
O formalismo-valorativo no Brasil desembarca com a Constituição de 1988. É nela que devemos buscar as bases de um processo cooperativo, com preocupações éticas e sociais. Superado aquele estágio anterior de exacerbação técnica, de vida breve entre nós, recobra-se a consciência de que o processo está aí para concretização de valores, não sendo estranho à função do juiz a consecução do justo, tanto que se passa a vislumbrar, no processo, o escopo de realizar a justiça no caso concreto, como bem prelciona Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, convocando-se uma racionalidade prática para condução do debate judiciário. Mais: a tomada de consciência de que a força normativa da Constituição deve alcançar todo o direito processual civil, não sendo esse outra coisa que não o próprio direito constitucional aplicado, fez acentuar os poderes do juiz no processo, armando-o de técnicas capazes de proporcionar ao jurisdicionado o efetivo acesso à ordem jurídica justa, sem que, no entanto, essa incrementação de poderes redunde em arbítrio, porque se deve agir lealmente no processo, observando e fazendo observar a garantir do contraditório, sobrando evidente que, nesse panorama, o próprio conceito de jurisdição transforma-se sobremaneira, consoante já tivemos a oportunidade de registrar alhures e teremos o ensejo de retomar em seguida. A Constituição de 1988 imprimiu o método instrumentalista, próprio do formalismo-valorativo, bem aproveitando a doutrina o ambiente cultural propício para a transformação de nosso processo civil, que, afinal, ainda é uma empresa a destrinchar. [22]
Consequentemente, é inegável a atual formatação da tutela inibitória, quer sob a perspectiva individual ou coletiva, contribui para o desenvolvimento de um processo civil impregnado pelos métodos instrumental e formal-valorativo. A tutela preventiva, em essência, por encontrar-se vocacionada à proteção jurídica efetiva dos direitos não patrimoniais - em especial quando se está a cuidar de direitos alçados à condição de fundamentais, contribui para a imprescindível reaproximação do direito processual ao direito material, assegurando-se, dessarte, o acesso à ordem jurídica justa ou à justiça substancial.
3.1 estudo de caso: breves considerações sobre a relevância do precedente judicial oriundo da Apelação Cível nº 89.04.01659-2/RS
Por último, abordados alguns dos inúmeros aspectos relevantes envolvendo a temática em estudo, cumpre relembrar, rapidamente, um precedente judicial havido pelo Tribunal Regional Federal – TRF da 4ª Região, dentre outros, envolvendo, marcadamente, a prevenção ou inibição coletiva do ilícito, vale dizer, o julgamento da Apelação Cível na Ação Civil Pública nº 89.04.01659-2/RS [23].
Trata-se de causa envolvendo a importação e comercialização de "carne com radiação de Chernobyl-1989", onde o TRF da 4ª Região confirmou a sentença havida pelo Juízo Federal a quo (4ª Vara Federal de Porto Alegre, RS), privilegiando-se de forma correta a tutela preventiva coletiva do ilícito, assegurando-se assim o direito à saúde em face da liberdade de comércio.
Sob a égide deste julgamento, sobreveio a seguinte ementa de julgado:
EMENTA
Constitucional. Administrativo. Processual Civil.
1.A saúde é direito de todos e dever do Estado. Como tal, é bem social e individual indisponível e está, desse modo, inserido no ordenamento jurídico brasileiro. O direito à saúde como dever constitucional está garantindo por ações e serviços que proporcionem assistência, bem como, preventivamente, por políticas sociais e econômicas que afastem o risco da doença.
2.A ação civil pública é procedimento adequadado para prevenir riscos à saúde e está inserida na constituição como função institucional do Ministério Público.
3.Na ação civil pública predomina o princípio de que o réu tem responsabilidade objetiva, bastando o nexo causal entre ação ou omissão lesiva ao bem protegido no processo.
4.Recursos desprovidos.
(TRF da 4ª Região, 1ª Turma, Apelação Cível nº 89.04.01659-2/RS, Juiz Cal Garcia, 26/19/1989, julg. por maioria).
Destacou-se, no bojo deste julgamento, com substanciosos fundamentos, a função preventiva da Ação Civil Pública e a função institucional do Ministério Público para a sua propositura, confirmando-se a sentença que proibiu a comercialização, movimentação e industrialização da carne contaminada e apreendida dos réus. O voto vencedor, da lavra do Juiz Cal Garcia, referendou a sentença sob o pálio de que a radioatividade contida nos produtos apreendidos, independentemente dos índices de contaminação oferecerem, ou não, riscos à saúde da população, segundo patamares definidos pela CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear, conduziria à impossibilidade de consumo da carne apreendida. Ainda que a contaminação não alçasse riscos imediatos à saúde humana, entendeu-se que o perigo decorrente da contaminação por radiação, ainda que inferior a determinados limites, não é amenizado por decreto, resolução ou qualquer tipo de ato ao alcance da burocracia estatal.
Louvou-se o julgado do chamado efeito cumulativo da radiação a fim de estabelecer-se o risco de lesão à saúde coletiva dos consumidores, modo preventivo.
Trata-se de um relevante precedente judicial onde a tutela inibitória coletiva do ilícito preponderou, protegendo-se a inviolabilidade do direito à saúde de um número indeterminado de seres humanos que seriam expostos ao consumo desta carne (direito difuso à incolumidade da saúde), o que está a demonstrar a importância da tutela judicial preventiva.
Conclusões:
Em razão do exposto e considerado, reforçando a idéia de que o presente ensaio não tem por objetivo abordar e esgotar os inúmeros aspectos envolvidos na dogmática da tutela inibitória do ilícito, passa-se a extrair as seguintes conclusões:
1. O processo civil clássico foi o grande responsável pelo isolomanto do processo em relação ao direito material, mostrando-se inapropriado para a tutela preventiva do ilícito, notadamente em questões envolvendo situações não-patrimoniais (v.g., meio ambiente, intimidade, etc.).
2. A tutela inibitória guarda distinções fundamentais com a tutela reparatória e/ou ressarcitória do dano, bem como em relação à tutela cautelar, não havendo atualmente mais parâmetros que justifiquem o manejo das chamadas "cautelares satisfativas", tampouco do interdito proibitório, como substitutivos da autônoma ação inibitória. A tutela inibitória é veiculada através de ação inibitória (cognitiva), necessariamente autônoma e independente em relação a outro processo.
3. O princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional é fundamento jurídico bastante para a deflagração da tutela jurisdicional preventiva. Logo, o fundamento da tutela inibitória deita raízes no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição. Negar o direito à prevenção significa dizer, em outras palavras, ser tolerável a ocorrência do ilícito, o que é ilógico.
4. É imperioso desmistificar-se a idéia de que a tutela ressarcitória seja capaz de dar uma resposta jurídica adequada e garantir a inviolabilidade do direito. Ao revés, na essência, a tutela ressarcitória é absolutamente inapropriada à tutela que atue contra o ilícito, justamente por aquela pressupor a ocorrência do ilícito (e do dano), como se o tratasse de um mal necessário para permitr a tutela jurisdicional, o que não guarda lógica com o espírito do ordenamento jurídico constitucional que privilegia a tutela da ameaça no âmago do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV da Constituição).
5. A tutela inibitória do ilícito deve preferir à tutela da reparação do dano, por um singela razão, colhida da seguinte regra da experiência: "é melhor prevenir do que remediar". A tutela inibitória do ilícito visa a garantir a integridade do direito, voltando-se para o futuro, constituindo uma das modalidades de tutela específica, devendo ser priorizada em relação à tutela ressarcitória e/ou reparatória, porquanto esta é voltada ao aspecto patrimonial dos direitos. A tutela específica não está jungida ao princípio da congruência ou adstrição da lide aos limites do pedido, sendo a tutela jurisdicional mais apropriada à proteção de direitos não patrimoniais.
6. Os novos direitos exsurgem em um contexto histórico, podendo ser protegidos individual e/ou coletivamente pela tutela inibitória do ilícito. O direito à tutela inibitória é co-natural ao direito não patrimonial, independentemente de qualquer previsão na legislação infraconstitucional.
7. É admissível a ação inibitória coletiva pura destinada a assegurar a inocorrência de lesão a direitos transindividuais, mediante a compreensão de um sistema de processo coletivo, integrado, essencialmente, pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor.
8. A tutela inibitória do ilícito exsurge a partir da derrocada do processo civil clássico e da necessidade de se garantir um processo civil de resultados, instrumental e cooperativo, posto à disposição do direito material, servindo de elo entre este e o direito processual.
9. O isolamento do direito processual civil frente o direito material deve ser combatido, devendo-se resgatar a reaproximação sob a perspectiva instrumental e formal-valorativa do processo, mediante o emprego da tutela específica inibitória, quando for o caso, em especial quando se cuida de tutelar os direitos fundamentais, cuja eficácia e aplicabilidade é imediata por força da cláusula inserta no artigo 5º, § 1º da Constituição.
Referências bibliográficas
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Notas
- MARINONI, Luiz Guilherme; Tutela Inibitória.4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. págs. 8-9.
- Ibidem, pág. 37.
- Ibidem, págs. 297-298.
- OLIVEIRA, Paulo Rogério de; Aspectos da Tutela Inibitória. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. LEX: 230. pág. 13.
- OLIVEIRA, Germana Maria Leal de; Da inadequação da Ação Cautelar para Prestação da Tutela Inibitória e da Remoção do Ilícito. Revista de Dialética de Direito Processual n. 24. mar/2005, pág. 63
- MARINONI, Luiz Guilherme, Ações inibitória e de ressarcimento na forma específica no "Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Iberoamérica" (art. 7º), Rio de Janeiro: Revista Forense, 2005, vol. 381. pág. 124.
- Ibidem, pág. 57.
- OLIVEIRA, Paulo Rogério de; Aspectos da Tutela Inibitória. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. LEX: 230. pág. 19
- MARINONI, Luiz Guilherme; Tutela Inibitória. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. pág. 135.
- SARTORIO, Elvio Ferreira; Tutela Preventiva (Inibitória) nas Obrigações de Fazer e Não Fazer. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007, págs. 48-49.
- LECEY, Eladio; Novos Direitos e Juizados Especiais. A proteção do Meio Ambiente e os Juizados Especiais Criminais. Revista de Direito Ambiental n. 15. Ano 4. julho-setembro de 1999; pág. 9
- MARINONI, Luiz Guilherme, Ações inibitória e de ressarcimento na forma específica no "Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Iberoamérica" (art. 7º), Rio de Janeiro: Revista Forense, 2005, vol. 381. pág. 122
- <http://jus.com.br/artigos/2566>. Acesso em: 10/09/2009.
- "ninguém pode ser coagido a prestar um fato".
- ARENHARDT, Sérgio Cruz. Perfis da Tutela Inibitória Coletiva. Vol. 6. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. págs. 151-152.
- Ibidem. págs. 151-152.
- MARINONI, Luiz Guilherme; Tutela Inibitória. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. págs. 93-94.
- DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 5ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros. Mar/2005. pág. 134.
- Escopo social: pacificação e educação; escopos políticos: a) estabilidade das instituições políticas; o exercício da cidadania como tal; c) preservação do valor liberadade; escopo jurídico: atuação concreta da vontade da lei;
- STONOGA, Andreza Cristina; Tutela Inibitória Ambiental: a prevenção do ilícito.Curitiba: Juruá, 2003. pág. 26.
- MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil, pressupostos sociais, lógicos e éticos. V. 14. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2009. Pág. 34.
- MITIDIERO, Daniel. Elementos para uma Teoria Contemporânea do Processo Civil Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. págs. 38-39.
- Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Edição Especial. 20 anos do TRF. 1989/2009. Porto Alegre/RS: ano 20, nº 71. págs. 93-112.