Para versar sobre a legitimidade da atuação do Ministério Público na investigação criminal, é preciso fazer considerações sobre seu posicionamento dentro do sistema acusatório. Esse é o sistema em voga no Brasil, que tem como traços marcantes o contraditório, a igualdade das partes quanto às condições processuais, a publicidade do processo, a iniciativa da ação penal pela parte acusadora e a atribuição das funções de acusar, defender e julgar a três personagens processuais distintos[i]. Como se vê, trata-se de um sistema que reflete as bases judiciais de uma Estado Democrático de Direito.
Dentre as funções acima mencionadas, cabe ao Ministério Público a de acusar (quando a ação for pública; a ação privada cabe ao particular); ao acusado, a de se defender; ao juiz, a de julgar a lide. Partindo dessa divisão, verifica-se a existência de acusador e acusado como partes parciais, que defendem determinados interesses, e a figura central e imparcial do magistrado, a quem caberá solucionar o conflito. As provas produzidas por ambas as partes, ao ingressarem nos autos do processo, passam a formar um conjunto probatório unitário - princípio da comunhão da prova[ii] - voltado a um só sentido: a busca do que alguns chamam de verdade real.
Ocorre que a parte, consoante é sabido, é parcial. Por mais que se diga que atuam para auxiliar o juiz na busca da tal verdade real, cada uma pretende, em última análise, ver seu próprio interesse acolhido pela tutela jurisdicional. E o Ministério Público não foge à regra. Agindo no processo penal como dominus litis, sua pretensão primária, como representante do Estado-acusação, é aquela deduzida na denúncia, ou seja, a condenação da parte adversa. Isso não o impede de deixar de propor ação penal ou pedir no curso dela a absolvição do acusado. Mas, nesse caso, o que obsta ao pedido de condenação é a própria Constituição Federal, que impõe ao Parquet o respeito aos direitos nela previstos (art. 129, II), dentre eles o da presunção de inocência (art. 5º, LVII), que, ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, implicitamente pontua que somente o culpado (entenda-se culpa em sentido latu senso) deve ser condenado.
Partindo dessa premissa (Ministério Público como agente parcial na relação jurídico-processual), é perfeitamente aceitável sua atuação em investigações criminais. A parcialidade em nada macula as provas levadas aos autos pelo Ministério Público. Ao afirmar o contrário, estar-se-ia admitindo que o acusado, outro integrante parcial da lide penal, também não poderia produzir provas. Aliás, com base nesse pressuposto, somente o juiz produziria prova, e ao fazê-lo estaria, de certa forma, perdendo sua imparcialidade. As provas, portanto, devem provir de fontes legítimas e não imparciais. Cabe ao juiz, analisando todo o conjunto probatório, fundamentar sua decisão no sentido de condenar ou de absolver o acusado. Para tanto, ele pode conferir mais valor a uma prova que a outra. Há que se mencionar também o inquérito policial, dirigido pela polícia judiciária, que é considerado inquisitivo e não acusatório, e nem por isso deixa de ser aproveitado no processo penal, cabendo ao juiz atribuir-lhe o valor que possa merecer.
Do ponto de vista legislativo, se se tem aumentado os poderes do juiz de produzir provas, seria um contra-senso sustentar que o Ministério Público não poderia conduzir investigações. Qual o sentido de “imparcializar” o Ministério Público e atribuir mais carga probatória ao juiz, “parcializando-o”?
Sob a óptica constitucional, não há previsão expressa de investigação criminal por parte do Ministério Público. A leitura do art. 129 da Constituição da República revela isso, o que não implica afirmar, contudo, que não se possa atribuir-lhe tal prerrogativa. Em primeiro lugar, não há como se admitir que o Ministério Público possa ajuizar a ação penal pública (art. 129, I) e não possa atuar na produção das provas que formarão seu convencimento quanto à materialidade do fato e à autoria. Em segundo lugar, não existe previsão no ordenamento jurídico pátrio de incumbência da investigação criminal apenas à polícia judiciária. O fato de o art. 144, § 4º, da Constituição da República conferir à polícia civil a função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais não exclui essa “competência” de outros órgãos. Do contrário, o dispositivo contaria com o advérbio “privativamente” ou “exclusivamente” em seu texto, como se verifica em outras passagens da Constituição quando o legislador pretende delimitar competências e atribuições. Reforça essa interpretação o disposto no art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que atribui a apuração de infrações penais e respectiva autoria a outras autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma função (investigativa).
Como bem pontua Clèmerson Merlin Clève, não se deveria estar discutindo sobre a possibilidade ou não de o Ministério Público presidir investigações criminais (pois ela é perfeitamente cabível em nosso ordenamento jurídico), mas sim acerca dos limites que precisariam ser impostos ao órgão ministerial na atuação investigativa[iii]. As discussões sobre o assunto, aliás, relacionam-se justamente com algumas violações de garantias individuais constitucionais. Basta lembrar que o assunto ganha força sempre que se tem notícia de investigação em que o agente do Ministério Público viola sigilo fiscal e bancário sem autorização judicial, atua no processo mancomunado com o juiz, leva à imprensa como um troféu as pessoas detidas em flagrante etc. Logo, quem rechaça a idéia de atribuir ao Ministério Público poderes de investigação criminal está, a bem da verdade, tentando reprimir a atuação dele como meio de punição pelos excessos eventualmente cometidos.
Notas
[i] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 14. ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2003, p. 40.
[ii]BONFIM. Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 301.
[iii]CLÈVE, Clèmerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 450, 30 set. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5760>. Acesso em: 10 maio 2009.
Bibliografia:
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 14. ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2003.
BONFIM. Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 450, 30 set. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5760>. Acesso em: 10 maio 2009.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18. ed., ver. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.