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“Justiça de Deus”: terreno infértil do Direito (?)

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Claro que as leis humanas são inspiradas pelas leis divinas, porém as crenças religiosas que cada magistrado possui – o que é totalmente diferente das inspirações de ensinamentos religiosos que adquiriram as legislações – não pode jamais incorporar os atos decisórios proferidos pelos mesmos.

RESUMO

O estudo em torno das possíveis ligações existentes entre Deus/religião e o Direito deve ser compreendido primeiramente a partir de elementos colhidos da Filosofia e da Psicologia, sobretudo dos pensamentos elucidados por Nietzsche. A Filosofia contemporânea, igualmente, é fonte inegável de saber no sentido de responder questões de cunho mais metafísico. O Direito não está longe das inspirações da Religião, posto que são todos objetos culturais, achando-se em permanente interação. Nesse sentido, muito se tem presenciado no meio jurídico a presença de Deus e de convicções e crenças religiosas, até mesmo a fundamentar importantes decisões. Ao Estado não cabe de maneira alguma impor, mesmo que indiretamente, isto é, mediante tarefa incumbida aos juízes, determinada crença religiosa em detrimento das demais, sob pena de grave violação do direito fundamental à liberdade religiosa e ao pluralismo religioso.

ABSTRACT

The study about the possible links between God/religion and the Law must be understood primarily from elements drawn from Philosophy and Psychology, especially from the thoughts elucidated by Nietzsche. The contemporary philosophy also is undeniable source of knowledge in order to answer questions of a more metaphysical way. The Law is not far from religion´s inspiration, since they are all cultural objects, finding themselves in constant interaction. In this sense, much has been witnessed in the legal world the presence of God and the religious beliefs, even in the reasons of important decisions. The State can not impose in any way, even indirectly, like through the task entrusted to the judges, particular religious belief at the expense of other, under penalty of serious violation of fundamental right to religious freedom and religious pluralism.

PALAVRAS-CHAVE: Justiça de Deus; liberdade religiosa; Nietzsche; objetos culturais.

KEYWORDS: Justice of God; religious freedom; Nietzsche, cultural objects.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. A CONTRIBUIÇÃO DOS PENSAMENTOS DE NIETZSCHE: O “BOM” E O “MAU”, A CULPA E A (IN)EXISTÊNCIA DE DEUS 3. A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA: O HOMEM OU DEUS NO CENTRO DO UNIVERSO? 4. “JUSTIÇA DE DEUS”? ILUSTRAÇÃO DE ALGUNS PONTOS DE CONTATO EXISTENTES ENTRE A RELIGIÃO E O DIREITO 5. CONCLUSÃO 6. REFERÊNCIAS


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo articula questões referentes ao Direito, Filosofia e Psicologia, tendo como base elementos do pensamento do filólogo alemão Friedrich Nietzsche e a jurisprudência pátria neste estudo analisada, mostrando e problematizando as ligações existentes entre Deus/religião e o Direito.

Entende-se que os pontos de contato que adiante serão ilustrados necessitam, decerto, de fundamentação filosófica e não apenas estreitamente jurídica, eis que o assunto evidentemente se concatena com aspectos outros, menos materiais e mais metafísicos.

Uma gama de assuntos existe quando se trata deste polêmico tema, que é justamente a religião. Porém, o corte metodológico aqui se direciona a aspectos relacionados ao Direito e ao que se pretendeu rotular de “Justiça de Deus”, conforme doravante se analisará.


2. A CONTRIBUIÇÃO DOS PENSAMENTOS DE NIETZSCHE: O “BOM” E O “MAU”, A CULPA E A (IN)EXISTÊNCIA DE DEUS

Uma das obras consideradas mais importantes de Nietzsche, principalmente no que se refere às questões relacionadas à justiça e direito, é a Genealogia da Moral, onde investiga a procedência dos juízos de valor moral. Nesse livro, escreveu três ensaios: inicialmente tratou de verificar a origem do juízo de valor “bom”; posteriormente discorreu sobre o surgimento da noção de culpa, má-consciência e do castigo; e por fim realizou uma análise sobre ideais ascéticos e a influência destes no pensamento hegemônico contemporâneo.

Ao examinar a procedência do conceito moral de “bom”, Nietzsche ao mesmo tempo colocou em questão o valor que este juízo possui, isto é, interrogou se aquilo que é avaliado como “bom” realmente promove a superação do tipo homem, se favorece o aprimoramento e o progresso da humanidade, se se constitui um valor em favor da vida:

Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor eles têm? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem sua certeza, seu futuro? (NIETZSCHE, 2001, p. 9).

Assim, além de elucidar hipóteses sobre a origem da moral, sua experiência genealógica significou mais propriamente uma análise do valor da moral. Observou que, em determinado período na história da humanidade, os valores foram considerados como algo absoluto, dado, efetivo, além de qualquer questionamento, sendo atribuído ao conceito de “bom” um valor mais elevado do que “mau”, isto é, no sentido de promoção, elevação, utilidade, fecundidade para a humanidade. Nesse viés, o autor põe em discussão:

E se o contrário fosse verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico (…) De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que a moral seria o perigo entre os perigos?... (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

Nesse contexto, Nietzsche distinguiu dois tipos principais de valoração, as quais denominou de moral dos senhores (moral do forte) e a moral dos escravos (moral dos fracos). Assim, Nietzsche pôde perceber que os valores se tratam de invenções criadas pelo homem, não sendo fruto de uma causa transcendente ou divina, mas produto de uma autoavaliação de uma classe superior, hegemônica, senhorial. Foi a moral dos senhores que inicialmente cunhou para si e para seus atos o sentido de “bom”:

Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu (NIETZSCHE, 2001, p. 19).

Desse sentido de distância entre aquilo que era concebido “bom”, oriundo de uma classe nobre, afirmativa, e o que era baixo, plebeu, simples, e, portanto ruim, se originou o direito de atribuir para seu próprio grupo o significado de superioridade. Destaque para a semelhança entre os termos “ruim” e “simples”, em alemão schlecht e schlicht, respectivamente. A própria origem da linguagem está associada ao poder da classe senhorial, na medida em que toma para si o direito de atribuir nome às coisas.

Deve ser ressaltado que o conceito de “ruim” nesse contexto inicial, sob o viés da valoração do forte, não era algo depreciativo, que merecesse castigo, vingança, mas apenas uma oposição ao nobre, aristocrático, bem nascido, privilegiado.

Com o declínio do poder dessa supremacia aristocrática, ocorreu uma inversão desses valores, e a casta sacerdotal passou a assumir a hegemonia, e sobre essa questão, Nietzsche afirma: “Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa” (NIETZSCHE, 2001, p. 25).

Nesse caminho, aquilo que era tido como “bom” pela moral aristocrática passou a significar algo “mau” na valoração sacerdotal, algo que merece castigo, que merece ser alvo de vingança, mesmo que imaginária, se não nessa vida, em outra:

Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão [...] (NIETZSCHE, 2001, p. 26).

A ideologia judaico-cristã, portanto, realiza uma “revolta dos escravos na moral”, transformando o conceito de “bom” em algo mal, e o que era então tido como ruim, passou a significar “o bem”, passou a ser valorizado positivamente em detrimento dos “maus”, os fortes, os poderosos; uma vitória da moral do “homem comum”, uma rebelião escrava da moral, fundamentada no ressentimento, produzindo uma reação que inverteu os valores e também criou uma vingança imaginária: “vocês, os maus, pagarão no inferno”.

A partir da moral do ressentimento, então, a justiça ganha a conotação, o sentido de vingança, ideal que até a atualidade triunfou sobre os demais. Com essa inversão de valores, o que em uma época era concebido como bom através do modo de valoração proveniente da moral do homem forte, se transformou em algo reprovável, a ser condenado, a partir do modo de valoração dos sacerdotes, os quais passaram a se julgar como homens bons:

Bons homens, que nunca dizem a verdade, que crucificam aqueles que escrevem novos valores, que são extemporâneos. Bons homens – sedentos de vingança. Os bons foram sempre o começo do fim... O dano causado pelos bons é o mais danoso dos danos. Veja só o dano desta justiça injusta... (GALVÃO JUNIOR, 2010).

Bôas Neto argumenta que a partir do pensamento de Nietzsche pode ser entendido que a origem da Justiça ocorreu de forma nada pacífica e pouco convencional, nascendo de conflitos de valorações e interpretações, de confronto entre classes. Dessa maneira, o desenrolar da história da humanidade (assim como o desenvolvimento da consciência, da responsabilidade, das obrigações morais) estaria fortemente ligado à ideia de culpa, por sua vez originada a partir da crueldade, do castigo, estando assim justiça associada ao sentimento de vingança.

Nesse viés, o castigo teria a função de adaptar o indivíduo a um contexto social, a um padrão de existência comum, de modo a promover certo controle: “o que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna ‘melhor’” (NIETZSCHE, 2001, p. 72).

Para Galvão Junior, conceitos como pena, crime, lei e justiça foram produzidos de forma a depreciar a vida, que, sob o estatuto de “verdade”, direcionam o foco para além de questões que precisariam ser levadas a sério como nutrição, habitação, assistência, direitos, entre outras. Diante disso, declara:

Eis aqui, todavia, a mais pura verdade: desconfiem de todos os que sentem poderosamente o instinto de castigar! São pessoas que se animam pela vingança; por eles assomam a polícia e forças armadas parasitárias. Desconfiem de todos os que falam muito da sua justiça! Que são a justiça perante a lei... (GALVÃO JUNIOR, 2010).

O instinto de liberdade forçosamente domado, a potência que não pode mais se efetivar, voltando-se para dentro, isto é, o homem domesticado, foi adquirindo assim uma má-consciência que o acompanha até os dias atuais. Esse processo foi produzido principalmente a partir da relação entre credor e devedor, possibilitada no momento em que o homem, pela via da crueldade, se torna um animal capaz de fazer promessas, adquirindo assim uma memória.

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Essa relação entre devedor e credor, surgida em comunidades tribais e tendo originado o sentimento de culpa, foi introduzida em um contexto diverso do que ocorria até então: ingressou na relação entre os vivos e seus antepassados, processo em que uma geração reconhece com a antecessora uma espécie de obrigação jurídica, produzindo uma convicção de que a comunidade só subsiste em função do reconhecimento das realizações dos antepassados e dos sacrifícios destinados a estes.

Nesse segmento, pode ser observado certo temor de determinada comunidade em relação aos seus ancestrais, assim como um sentimento de possuir dívidas para com eles. Assim, considera-se que quanto mais cresce esse medo, essa consciência de dívida e obrigação com os antepassados, mais se fortalece a comunidade, mais se torna vitoriosa e temida, ao mesmo tempo em que esse antepassado passa a ser divinizado:

Imaginemos essa crua espécie de lógica conduzida até o fim: os ancestrais das estirpes mais poderosas deverão afinal, por força da fantasia do temor crescente, assumir proporções gigantescas e desaparecer na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente transfigurado em deus. Talvez esteja nisso a origem dos deuses, uma origem no medo, portanto! (NIETZSCHE, 2001, p. 78)

A consciência de estar em dívida com deus, o sentimento de culpa em relação às divindades, herança de comunidades tribais, prosseguiu durante milênios, ao passo que o conceito máximo de divindade estabelecido, ilustrado pelo deus do cristianismo, conferiu também para a humanidade a copiosa parcela de culpa: “O advento do deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa” (NIETZSCHE, 2001, p. 79).

Segundo Paulo Queiroz, apesar da suposição de que exista uma crise em torno de valores contemporâneos, tanto o direito quanto a ética e a moral estariam fundamentadas nos valores judaico-cristãos, e a utópica separação entre direito e religião se daria apenas em um nível aparente, teórico, uma vez que dois mil anos de história e hegemonia do pensamento judaico-cristão ainda agiriam moldando e forjando os indivíduos, e do mesmo modo juízes e tribunais estariam atuando, mesmo que despretensiosamente, em nome de Deus:

Assim, o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição moral cristã por outros meios, já que todos aqueles que dele se utilizam (legisladores, juízes, promotores, advogados etc.) seriam meros portadores, conscientes ou não, dos valores cristãos; por sua vez, a moral seria a continuação da religião; o conhecimento, um continuum da moral e da religião, embora por meios diversos (QUEIROZ, 2008).


3. A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA: O HOMEM OU DEUS NO CENTRO DO UNIVERSO?

Sabe-se que, popularmente, há três assuntos que não se pode “conversar”: futebol, política e religião. Claro que, quando um ateu sustenta que “Deus não existe”, logo virão milhões de críticas em cima dessa preposição.

A filosofia, sobretudo a contemporânea, assim, também recebe suas críticas ao duvidar da existência material de um Deus. Ora, é exatamente esta a tarefa da filosofia, que prima por combater e duvidar de dogmas e verdades definitivas, representando uma ciência aberta para o levantamento de questionamentos acerca do mundo e de seus elementos no qual o homem interage.

Para melhor analisar o pensamento filosófico, escreve Pietro Ubaldi que “uma guerra contra Deus é absurda, porque é uma guerra contra a primeira fonte de nossa própria vida” (UBALDI, 1985, p. 55). O autor ainda compreende que “se desaparecessem as religiões atuais, ainda assim Deus sobreviveria de outra forma, cada vez mais sentido no íntimo, e cada vez mais amplo como universalidade. Este será o melhor canto que a ciência positiva poderá elevar à glória de Deus” (Idem, 1985, p. 55).

Giuseppe Staccone, por outro lado, assevera que foi a religião quem desviou o homem, distraindo-o, assim, de sua vocação terrestre, “pendurando-o nos espaços das fantasticações religiosas e alienando-o de si e do mundo verdadeiro” (STACCONE, 1989, p. 119). Por isso, conclui o autor que “a crítica da religião é algo essencial que deve preceder qualquer outra ação para a auto-emancipação do homem” (Idem, 1989, p. 119).

A alegoria nietzschiana, na qual descreve um “louco” a correr pelo mercado, numa manhã, procurando por Deus e ele mesmo respondendo que “Deus morreu, e continua morto, e fomos nós que o matamos”, acaba exaltando, via de consequência, o protagonismo do homem no mundo e na história. Ou seja, esse abandono, esse desamparo do homem por Deus não existir, pode, por um lado, ser muito incômodo, porque, segundo Jean-Paul Sartre, “desaparece toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível” (STACCONE, 1989, p. 252). Mas, por outro lado, faz do homem a ser livre, a inventar sua essência, a criar-se e recriar-se, ou, como se salientou acima, faz sua “auto-emancipação”.

Sartre, citado por Giuseppe Staccone, afirma que “não há legislador além dele próprio (o homem) e que é no abandono que ele decidirá de si” (Idem, 1989, p. 253). Assim, é no humanismo existencialista que o homem aprende a ser o legislador dele mesmo. Nesse sentido, o filósofo francês conclui da seguinte forma:

[...] O existencialismo não é de modo algum um ateísmo no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele declara antes: ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão; esse o nosso ponto de vista. Não que acreditemos que Deus exista; pensamos antes que o problema não está aí, no da sua existência: é necessário que o homem se reencontre a si próprio e se persuada de que nada pode salvá-lo de si mesmo, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. Neste sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina de ação [...] (Idem, 1989, p. 253).

Nessa perspectiva filosófica, o homem, pois, é o centro do universo. Afinal, via de regra, correntes da Filosofia contemporânea baseiam-se no pressuposto da inexistência de deus, e nessa trilha o homem moderno segue seu caminho. Sartre acredita que o existencialismo é sim uma doutrina otimista, já que o destino do homem está em suas mãos. O homem é plenamente responsável, e essa responsabilidade acaba por envolver toda a humanidade.

Aquele Deus que é um “quebra-galhos”, aquele Deus que seria um “justiceiro e policial”, e aquele Deus que seria um “álibi” para refúgio e consolo, todos eles, já estariam mortos para o homem moderno (nesse mesmo sentido: STACCONE, 1989, p. 254-256).

A afirmação de Sartre de que “não há legislador além do próprio homem” faz eclodir a ideia de que as leis humanas devem, justamente, provir do homem e não de um ser outro que não tem sua existência materialmente comprovada.

Harold Kushner (1991, p. 18-19), por fim, traz interesse pensamento a respeito de se crer ou não em um Deus, e qual a real importância deve ser dada a esta adesão para com Deus no atual mundo em que se convive:

[...] Acreditar que Deus existe, da mesma forma que acreditamos na existência do Polo Sul, embora nunca tenhamos visto nenhum dos dois, acreditar na realidade de Deus da mesma forma que no teorema de Pitágoras, como uma afirmação abstrata e precisa, que realmente em nada afeta nossa vida diária, não é um posicionamento religioso. Um Deus que existe, mas que não interessa, que não interfere na maneira em que se vive, poderia também deixar de existir. (...) A questão não diz respeito a como é Deus. Trata-se de que tipo de pessoa nos tornamos quando a ele aderimos (destacou-se).


4. “JUSTIÇA DE DEUS”? ILUSTRAÇÃO DE ALGUNS PONTOS DE CONTATO EXISTENTES ENTRE A RELIGIÃO E O DIREITO

Quais seriam as relações que a religião e Deus em particular possuem com o Direito em solo pátrio, mesmo sabendo que o Brasil caracteriza-se por ser um Estado laico, isto é, sem religião, sem preferência por seguir determinada religião, crença ou seita?

De início, como o próprio preâmbulo da Constituição brasileira menciona (“sob a proteção de Deus”), Deus já estaria protegendo a Carta Magna e a Assembleia Nacional Constituinte originária, além de proteger, por via de consequência, o povo brasileiro.

Nessa linha, vale salientar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 2.076-5/AC, julgada em agosto de 2002, cuja relatoria coube ao Ministro Carlos Velloso e na qual se discutiu se o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 possui ou não força normativa. Sua ementa ficou assim redigida:

CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. CONSITUIÇÃO DO ACRE.

I – Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-Membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404).

II – Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.

III – Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

Nesta ADIn, o Partido Social Liberal fundamentou sua ação argumentando que, quando a Constituição do Estado do Acre, em sua parte preambular, deixou de mencionar a expressão “sob a proteção de Deus”, que deveria ter sido reproduzida tal como o fez a Constituição Federal, ofendeu o preâmbulo desta, visto que se trata de “ato normativo de supremo princípio básico com conteúdo programático e de absorção compulsória pelos estados”. Alegou o requerente também que “os destinatários da omissão são fundamentalmente os cidadãos acreanos, únicos no país privados de ficar sob a proteção de Deus, pela sua Assembleia Estadual Constituinte”, já que todos os estados brasileiros invocam a proteção de Deus em seu preâmbulo, exceto, justamente, o Acre.

Em pesquisa junto a importantes doutrinadores, o Ministro Carlos Velloso assentou que “o preâmbulo não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. [...] O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro”. Os princípios que, via de regra, são proclamados no preâmbulo e estão inscritos na Carta Magna é que devem ser reproduzidos pelas Constituições estaduais, sob pena destas, aí sim, serem declaradas inconstitucionais. Assim, embora não se possa concluir que o preâmbulo é juridicamente irrelevante, posto que possui a função de servir como elemento de interpretação e integração dos artigos que lhe seguem, ele não é norma constitucional nem pode prevalecer como paradigma comparativo para possíveis declarações de inconstitucionalidade (nessa linha: MORAES, 2010, p. 20-21).

Ainda em relação à decisão proferida nesta ADIn, mais especificamente à locução “sob a proteção de Deus”, assim analisou Carlos Velloso:

Não se pode afirmar que esse preâmbulo (da Constituição do Acre) está dispondo de forma contrária aos princípios consagrados na Constituição Federal. Ao contrário, enfatiza ele, por exemplo, os princípios democrático e da soberania popular. Só não invoca a proteção de Deus. Essa invocação, todavia, posta no preâmbulo da Constituição Federal, reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º), certo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (CF, art. 5º, VIII). A Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou ateístas (destaque nosso).

Ou seja, a invocação da proteção divina, para o mundo normativo, não possui conteúdo significante apto a fulminar, por si só, Preâmbulo de Constituição estadual qualquer que fosse.

Aliás, aproveitando trecho do voto de Carlos Velloso, vale consignar que a Argentina também invoca a proteção de deus no preâmbulo de sua Carta Constitucional de 1853, destacando, aliás, que é de Deus “a fonte de toda razão e justiça”.

Há também outras ilustrações interessantes a serem apresentadas, principalmente na jurisprudência coletada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ).

O Desembargador do TJ/RJ José Mota Filho, em diversas ocasiões quando a matéria ventilada poderia ensejar discussão em relação a conflito de atribuições e afastamento do relator do processo, teve oportunidade de assim redigir seus votos, em acórdãos nos quais era o relator:

Assinale-se, por último, que o Relator, como sempre fez ao longo de difícil caminhada na Magistratura do nosso Estado, não está recusando serviço e, a mercê de Deus, há de terminá-la brevemente com toda dignidade e respeito dos seus concidadãos (destaque nosso).

Em outro caso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Desembargador Ademir Paulo Pimentel, analisou apelação em que a recorrente, funcionária do Aeroporto do Galeão/Rio, se sentiu ofendida por cliente que desejava entrar em área restrita, chamando-a de “velha e feia”. Assim, o ilustre magistrado proferiu seu voto vencedor da seguinte forma, na parte tocante às palavras irrogadas (Apelação Cível nº 00098/2004, julgada em 13 de outubro de 2004):

[...] Por outro lado, não existem pessoas velhas e feias. Em primeiro lugar porque a Autora/Apelante não é velha. Hoje, quando se redige este voto, conta com 43 anos de idade. Portanto, uma jovem. Em segundo lugar, ser velho é estado de espírito. Há muito garoto aí com espírito velho. Há desembargadores que foram atingidos pela aposentadoria compulsória e aí estão nos dando verdadeira aula de como viver.

Quanto a ser feia, sabe-se que não há mulher feia. Apenas existe uma variação de beleza, como variáveis são os matizes e os perfumes das flores, valendo consignar que, dentro da mensagem cristã – e ao mencionar peço vênia aos que entendem de forma diversa, se dirigiu “a uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria” (Lucas 1:27), “o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré”, anunciando à mais bendita dentre as mulheres, que Deus, através dela, enviaria o Redentor da humanidade. Bastaria isto para considerarmos respeitáveis e belas, todas as mulheres (destacou-se).

Neste acórdão, verifica-se que a figura de Deus foi utilizada pelo Desembargador para buscar fundamentar a parte da decisão que exaltava a beleza das mulheres, em particular da Virgem Maria, “a mais bendita dentre as mulheres”.

O TJ/RJ também já teve oportunidade de julgar caso que envolvia pedido de gratuidade judiciária, no qual mencionava em seu acórdão que “a Casa da Justiça é como a Casa de Deus, acolhe a todos, pobres e ricos com a mesma igualdade de trato” (Apelação Cível nº 4.893/92, Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Ellis Figueira, julgada em 18 de maio de 1993) (destaque nosso).

Há, inclusive, vários julgados, acerca do dano moral naquela Corte, os quais citam os autores Sylvio Clemente da Motta Filho e William Douglas Resinente dos Santos, os quais assim escrevem:

[...] A matéria-prima do Judiciário é a injustiça, em especial as inconstitucionalidades e ilegalidades praticadas constantemente pelo Governo. Assim, enquanto houver a matéria-prima, queira Deus que exista um Judiciário independente e capaz de manter em funcionamento a indústria da reparação dos erros cometidos contra a Constituição, as leis e a democracia (conferir os seguintes julgados: TJ/RJ, Apelação Cível 10.480/2002; TJ/RJ, Apelação Cível 21.039/2001) (destacou-se).

Outra decisão, igualmente referente a assunto envolvendo indenização por danos morais, trata-se do julgamento da Apelação Cível nº 16.063/2006, julgada em 31 de outubro de 2006, cujo voto do Desembargador Luiz Felipe Haddad, do TJ/RJ, possui o seguinte trecho:

Dano moral evidente, não fora o fator in re ipsa. Sofrimento, em considerável tamanho, de uma mãe, vendo sua filhinha ameaçada de ficar cega, por conta de óbices burocráticos injustificados; e que seria muito maior se a operação, graças a Deus, não fosse coroada de êxito (destaque nosso).

Interessante acórdão proferido por esta Corte diz respeito à venda e circulação de revistas com conteúdo marcadamente erótico, requerendo o MP/RJ que as mesmas só possam ser vendidas e exibidas dentro de envelope opaco, com escritos de advertência e outras cautelas, sob pena de busca e apreensão e imposição de elevadas multas. Na decisão, o relator assim se manifestou:

[...] Necessidade de renovação perseverante, em todas as esferas religiosas e por parte dos homens e mulheres de sadia consciência, para que no futuro, sem os erros do presente e do passado, o sexo, dom precioso de Deus, seja entendido e procedido retamente, com responsabilidade, por ser não só elemento de procriação mas sobretudo da felicidade dos Filhos e Adão e das Filhas de Eva (TJ/RJ, Terceira Câmara Cível, Apelação Cível 9199/2003, Relator Desembargador Luiz Felipe Haddad, julgada em 04 de maio de 2004) (destacou-se).

No caso em que idosa é retirada de coletivo sob o argumento de que apresentava documento em fotocópia, manifestou-se o mesmo tribunal assim: “Desde os tempos imemoriais houve, nas sociedades civilizadas, uma preocupação com os idosos – ‘Diante das cãs te levantarás, e honrarás a face do velho, e terás temor do teu Deus. Eu sou o Senhor’ (Levítico, cap. 19, v. 32)” (TJ/RJ, 13ª Câmara Cível, Relator Des. Ademir Paulo Pimentel, julgado em 02 de junho de 2004) (destaque nosso).

Assim, é possível perceber que em casos levados à apreciação do Judiciário, nos quais envolvem assuntos um tanto delicados, como aquelas ofensas proferidas contra a reclamante, a situação da idosa acima e a proibição de vendas de revistas pornográficas, os magistrados acabam levando consigo para suas decisões valores cristãos e trechos da Bíblia, a fim de fundamentar seus votos.

Saindo um pouco do estado do Rio de Janeiro, uma manifestação explícita de deus em acórdão ocorre quando se vislumbra a decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual serviu como relator o Des. Carlos Biasotti, em 12 de setembro de 2008, no julgamento da Apelação Criminal nº 993.08.012285-7. Durante o voto, o magistrado expressou o seguinte: “Embora já pertença à arqueologia jurídica – Deus seja louvado! – o argumento de que a polícia costuma extrair a confissão a infelizes juntamente com suas fibras musculares, a confissão perante a autoridade policial normalmente é repelida, pela suspeita de coação” (destacou-se).

Quando o assunto diz respeito a possíveis ligações entre deus/religião e o Direito, claro que não se poderia deixar de demonstrar questões que envolvem a liberdade religiosa e de crença, já mencionada quando da análise da ADIn 2.076-5/AC pelo STF.

Convém aqui salientar que nem sempre se consagrou a liberdade religiosa da forma como ela é hoje na atual Carta Magna, isto porque a Constituição brasileira do Império, de 1824, restringia a liberdade de culto, escolhendo a “Religião Catholica Apostolica Romana” (tal como se escrevia à época) para continuar a ser a religião do Império. Assim, apenas a partir da Constituição da República promulgada em 1891 é que as liberdades de crença e de culto passaram a ser plenamente contempladas no ornamento jurídico.

O atual art. 5º, incisos VI e VIII, da Constituição brasileira, disciplina o direito aqui em relevo da seguinte forma:

VI – É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

VIII – Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Muitas colaborações sobre esse assunto têm fornecido a jurisprudência e a doutrina brasileira. Como primeiro exemplo, decidiu o STF, ainda em 19 de maio de 1981 – ou seja, antes da proclamação da atual Carta Magna –, um caso em que o magistrado criminal a quo proibiu uma detenta, beneficiada pela suspensão condicional da pena (sursis), a “frequentar, auxiliar ou desenvolver cultos religiosos que forem celebrados em residências ou em locais que não sejam especificamente destinados ao culto”.

Neste Recurso Extraordinário Criminal, de nº 92.916/PR, o então Ministro Relator à época, Antonio Neder, analisando as condições impostas no sursis pelo juiz monocrático, decidiu por excluir as de números 3 e 6, claramente inadequadas ao primordial objetivo do instituto, quais sejam: “3) Não frequentar, nem auxiliar ou desenvolver cultos feitos em residências ou locais não destinados especificamente a esse fim; 6) Carregar, para a cadeia pública local, seis latas de água um domingo de cada mês, trazendo água da mesma mina de onde seus filhos a carregavam”.

Segundo Antonio Neder, seria algo aberrante a condição imposta no terceiro tópico, visto que a prática da religião teria sua importância na ressocialização do criminoso pelo seu conteúdo pedagógico, podendo o culto ser praticado em qualquer lugar, seja em igreja, em casa ou até mesmo numa praça pública.

Aliás, José de Jesus Filho, em artigo científico que trata da liberdade religiosa e a prisão, demonstra que referida liberdade, mais especificamente no ambiente carcerário e em se tratando de direito que também dispõe o preso, se compreende a partir dos seguintes aspectos:

O direito de expressar sua própria religião, o direito de não declarar as próprias convicções religiosas, a liberdade de não professar religião alguma, a liberdade de mudar de religião, não ter religião, direito de afirmar sua religião, de receber representantes qualificados de sua religião ou fé e ter acesso privado a ele, de obter orientação espiritual, de receber uma dieta adequada à sua crença religiosa, ou ao menos que lhe seja permitido receber de sua família referida dieta, de acesso a objetos próprios de sua religião e inclusive o direito de crítica à religião (JESUS FILHO, 2010, p. 380).

Recente decisão do Excelso STF, a que teve no julgamento do Recurso Extraordinário 462153/SC, também deve ser aqui analisada.

Tratava-se de caso em que estudante universitário entrou com recurso contra a Universidade que estudava sob a alegação de que estava impossibilitado de frequentar determinadas aulas na mesma, entre as 18 horas de sexta-feira e 18 horas de sábado, por sua crença religiosa.

Na decisão, a Ministra Cármen Lúcia deixou assentado que “não houve irregularidade ou desacordo com a lei que rege a matéria, não restando, assim, desrespeitado qualquer direito adquirido”. Isto porque, quando o estudante argumentava que havia desrespeito ao direito expresso no art. 5º, inciso VIII, CF/88, pois dizia se tratar de “exercício de um direito seu de cursar um curso superior sem confrontar com sua fé religiosa”, sendo que “os professores em nada facilitam na aplicação de tarefas alternativas”, a relatora do processo no STF sustentou o seguinte:

Importante para dirimir a controvérsia é que o aluno, mesmo sabendo do resguardo de sua religião no que se refere às vinte e quatro horas entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado, na efetivação da matrícula, optou por cadeiras que deviam ser cursadas neste interregno. [...] Tenho que, mesmo se lhe fosse ofertado o cumprimento de atividades alternativas, tal prerrogativa não supriria os atos inerentes ao aprendizado e à frequência consubstanciada na imposição do dever da assiduidade na universidade, tais como participação às aulas expositivas, realização de provas, trabalhos, assiduidade e aproveitamento (STF, Recurso Extraordinário nº 462153/SC, Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 30 de novembro de 2009, publicado em 01 de fevereiro de 2010).

Sobre o problemático tema, o STF teve que decidir, em dezembro de 2009, caso que envolvia a realização da prova do ENEM em dia alternativo para um grupo de 22 pessoas que professavam a fé judaica (AgReg na Suspensão de Tutela Antecipada 389 Minas Gerais, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 03 de dezembro de 2009).

Primeiramente, deixou claro o Ministro Carlos Brito que seria impossível assegurar o mesmo grau de dificuldade para a prova do ENEM que realizaria o pequeno grupo de judeus e para o restante dos candidatos, algo em torno de quatro milhões de pessoas. Sendo assim, nas palavras de Carlos Brito, “seria praticamente instalar o caos no âmbito da Administração Pública, porque a mesma decisão que se adotaria aqui há de prevalecer para todo o tipo de competição pública”, e corriqueiramente as provas de concursos públicos são realizadas ou no sábado ou no domingo.

Embora a Corte tenha, por maioria de votos, entendido que não cabe razão ao recorrente, isto é, ao grupo de candidatos judeus, ficou bem asseverado o seguinte, nos votos dos Ministros Carlos Brito e Gilmar Mendes, respectivamente:

O Estado brasileiro é laico, o que não significa indiferentismo, não significa um cruzar de braços diante de uma situação francamente facilitadora do exercício, do gozo da liberdade religiosa (trecho do voto do Ministro Carlos Brito).

[...] O direito fundamental à liberdade religiosa impõe ao Estado o dever de neutralidade diante do fenômeno religioso, revelando-se proscrita toda e qualquer atividade do ente público que favoreça determinada confissão religiosa em detrimento das demais. Entretanto, o dever de neutralidade por parte do Estado não se confunde com a ideia de indiferença estatal, devendo o Estado, em alguns casos, adotar comportamentos positivos, com a finalidade de afastar barreiras ou sobrecargas que possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé (trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes).

Seguindo essa orientação, de que o Estado e seus órgãos públicos não podem se manter indiferentes com essa questão, recentemente o CESPE/UNB, responsável pela organização do Concurso Público para provimento de cargos do Ministério Público da União, editou regulamentação sobre procedimentos a serem adotados para a solicitação de atendimento especial por motivos religiosos, uma vez reivindicado tal atendimento pelos candidatos da religião adventista (conferir os itens 1.1 e 1.4 do Edital nº 11 – PGR/MPU, de 2 de agosto de 2010).

De fato, a questão da liberdade religiosa e do pluralismo religioso é um tanto tormentosa no meio jurídico. No entanto, uma sociedade que aceita o pluralismo religioso, e onde há tolerância recíproca entre seus membros, a liberdade de crença, de culto e de religião se torna valor fundamental, verdadeira consagração de maturidade de um povo, sendo concebida como expressão da dignidade e autonomia da pessoa (nesse sentido: MORAES, 2010, p. 46; PERELMAN, 2005, p. 315). Inclusive, destaca o mestre J. J. Gomes Canotilho (2003, p. 383) que alguns autores, como Jellinek, veem na luta pela liberdade religiosa a verdadeira origem dos direitos fundamentais.

Nessa mesma linha, Jorge Miranda acredita que a liberdade religiosa está no centro da problemática dos direitos fundamentais, constituindo-se, contudo, direito ainda desconhecido ou negado em vários países, talvez por se tratar, segundo o autor, de uma aquisição ainda recente. “Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões”, continua Miranda, “não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política” (MIRANDA, 2000, p. 408)

Todavia, naquelas sociedades onde determinada religião é majoritária, então será nela, geralmente, que partem as inspirações do legislador.

Assim é que o domingo será proclamado dia feriado legal nos Estados cristãos, enquanto será a sexta-feira nos Estados muçulmanos e o sábado no Estado de Israel. De fato se estabelecerá, em cada Estado, um ajuste, variável conforme as circunstâncias, entre a liberdade de consciência e a primazia concedida a esta ou àquela religião (PERELMAN, 2005, p. 315).

Deixando um pouco de lado a jurisprudência, na doutrina jurídica não são poucos os autores que trazem algumas passagens cristãs e escritos do Livro Sagrado. Como exemplo, Alexandre de Moraes (2010) ressalta no começo do Curso de direito constitucional: “O Senhor é meu pastor, e nada me faltará... Guia-me pelas veredas da Justiça por amor ao Seu nome”.

Rogério Greco (2009), eminente penalista e seguidor da igreja Maranata, invoca no introito de seu livro: “Toda honra e toda glória sejam dadas ao Príncipe da Paz – Jesus Cristo”.

Paulo Rangel, também importante escritor sobre Direito Penal processual, traz a seguinte mensagem em seu livro (2009): “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos são os que entram por ela. Que estreita é a porta, e que apertado o caminho que leva para a vida, e que poucos são os que acertam com ela (Mateus, 7:13/14)”.

Verifica-se também que muitos outros autores há que buscam mensagens cristãs e divinas nas notas iniciais de suas obras, ou até mesmo em exemplos trazidos no bojo dos livros, a fim de ilustrar casos concretos que pretendem abordar.

Sobre os autores
Pedro Machado Ribeiro Neto

Psicólogo, doutorando e mestre em Psicologia pela UFES

Vitor Gonçalves Machado

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO NETO, Pedro Machado; MACHADO, Vitor Gonçalves. “Justiça de Deus”: terreno infértil do Direito (?). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21236. Acesso em: 23 nov. 2024.

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