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“Justiça de Deus”: terreno infértil do Direito (?)

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5. CONCLUSÃO

Consoante analisa o Professor Dirley da Cunha Júnior (2008, p. 2-3), o Direito só pode ser entendido como objeto cultural, fruto da atividade humana, procurando trabalhar com dados reais de modo a realizar valores inerentes à Liberdade, à Segurança, à Ordem e à própria Justiça.

A Religião, assim como o Direito, a Moral, a Ética, a Política, enfim, são todos objetos culturais, de natureza material ou espiritual, e por isso mesmo acham-se em íntima conexão, interagindo entre si.

Não se pode – claro que com suas especiais exceções, como, por exemplo, para fins de estudo ou para melhor esclarecer determinadas teorias – pretender excluir de uma ciência valores que estão também nesta impregnados, mesmo que indireta ou implicitamente. Conforme ressalta Eduardo Bittar (2004, p. 154), “as tradições, os hábitos, os costumes, as crenças populares, a moral, as instituições, a ética, as leis... estão profundamente marcadas pelas lições cristãs”.

Ora, basta ler os dez mandamentos de Deus e todos os ensinamentos supostamente passados por Jesus Cristo aos seus discípulos, há mais de dois mil anos, para se constatar que as legislações humanas são inspiradas grandemente por esses valores. Jorge Miranda (2000, p. 34), aliás, pontua muito bem o que a doutrina católica dos direitos do homem, desde a Encíclica Rerum Novarum de 1891, afirma:

i) o reconhecimento da consciência de liberdade e dignidade dos homens do nosso tempo; ii) a igual dignidade de todas as pessoas, mesmo quando chamadas a serviços diferentes; iii) o primado das pessoas sobre as estruturas; iv) a conexão entre direitos e deveres e entre justiça e caridade; v) a opção preferencial pelos pobres; vi) a relação necessária entre libertação humana e liberdade cristã; vii) a relação também necessária, na perspectiva do bem comum, entre os princípios da solidariedade (de todas as pessoas) e da subsidiariedade (do Estado); viii) a função social da propriedade; ix) a relação ainda entre o desenvolvimento integral de cada homem e o desenvolvimento solidário de toda a humanidade.

Valores tais como a solidariedade, a preocupação, respeito e tolerância com o outro (alteridade), a dignidade das pessoas, a função social da propriedade, a vida como valor supremo, etc. demonstram como são enraizadas as pregações cristãs nas leis humanas. Voltando ao pensamento elucidado por Paulo Queiroz, a separação entre direito e religião seria, pois, apenas aparente, teórica, sendo aquele uma continuação da tradição moral cristã.

Por sua vez, deve-se compreender que não se pode conceber a figura do magistrado como vazia de valores, como um ser totalmente no vazio, no vácuo, desprovido de sentimentos, emoções, realmente computadorizado, mecanizado. É claro que o ordenamento jurídico priva pela imparcialidade do juiz na solução das avenças, porém esta não se confunde com neutralidade. Um juiz neutro seria algo, de fato, impossível, posto que este mesmo juiz, ao proferir determinada decisão, tende em trazer todos os valores, crenças e experiências arraigadas em sua vida e nas várias decisões e casos que presenciou. E, nessa esteira, poderiam aí estar presentes a religião.

Mas, qual é o perigo que há nisso? O juiz, como representante do Estado, deve exercer função jurisdicional, fazendo-a em nome do povo. Ocorre que muito se esquece disso ultimamente, em especial – o que é mais grave! – os próprios magistrados. Ora, o povo não é todo católico, ou todo protestante, ou todo ateu. Vive-se, mais uma vez se repete, num Estado laico. Assim, não se coaduna com esse entendimento uma decisão que se baseia, por exemplo, numa lição bíblica a fundamentar importante decisão judicial, mesmo porque a citação bíblica ou a citação de trecho de outro livro sagrado não pode – nem poderia – constituir argumento de autoridade.

Ou seja, a presença da religião no mundo jurídico nunca poderá ser extirpada, uma vez serem representações de objetos culturais nos quais interagem entre si. A grande questão que se coloca, no entanto, não são as expressões como “graças a Deus” ou “Deus seja louvado” nos votos dos juízes em suas decisões, nem aquelas mensagens intróitas nos livros jurídicos. O que aparece como crônico problema é justamente a questão de servir como argumento de autoridade as citações bíblicas e trechos de livros sagrados que, por vezes, colocam deus no centro de tudo e de todos, sem se preocupar efetivamente com as partes processuais e com os fatos relatados nos autos.

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Claro que as leis humanas são inspiradas pelas leis divinas, porém as crenças religiosas que cada magistrado possui – o que é totalmente diferente das inspirações de ensinamentos religiosos que adquiriram as legislações – não pode jamais incorporar os atos decisórios proferidos pelos mesmos, sob pena de afrontar o direito à liberdade religiosa e o pluralismo religioso, pois passará o Estado a impor, implicitamente, uma determinada religião ou crença em detrimento das demais.

Deve-se compreender que o Direito é fruto do homem, e seu valor deve, assim, derivar justamente do próprio homem. As leis estão sim inspiradas pelas tradições e ensinamentos religiosos, como a função social da propriedade e o respeito para com o outro. Entretanto, o homem, nesse mundo pós-moderno, deve estar no centro do universo, sendo que jamais poderá o Estado violar o pluralismo religioso e o direito fundamental à liberdade religiosa, como muito ocorre quando da prestação da tutela jurisdicional pelos magistrados.

Fábio Comparato, por fim, faz breve (e brilhante) análise a respeito do verdadeiro fundamento do direito:

Uma das tendências marcantes do pensamento moderno é a convicção generalizada de que o verdadeiro fundamento de validade – do direito em geral e dos direitos humanos em particular – já não deve ser procurado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, nem tampouco numa abstração metafísica – a natureza – como essência imutável de todos os entes no mundo. Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa, diante da qual as especificações individuais e grupais são sempre secundárias (COMPARATO, 1997, p. 6) (destacou-se).


6. REFERÊNCIAS

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BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

BÔAS NETO, Francisco José Vilas. Nietzsche e a justiça. ClubJus, Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.28556> Acesso em: 3 jul. 2010.

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COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos direitos humanos. Artigo apresentado ao Instituto de Estudos Avançados da USP, 1997, p. 01-21. Disponível em www.iea.usp.br/artigos. Material da 1ª aula da Disciplina Teoria Geral dos Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito do Estado – Anhanguera/Uniderp/Rede LFG.

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Sobre os autores
Pedro Machado Ribeiro Neto

Psicólogo, doutorando e mestre em Psicologia pela UFES

Vitor Gonçalves Machado

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO NETO, Pedro Machado; MACHADO, Vitor Gonçalves. “Justiça de Deus”: terreno infértil do Direito (?). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21236. Acesso em: 23 dez. 2024.

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