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Garantismo “positivo” é garantismo?

Agenda 18/04/2012 às 07:55

O garantismo dito positivo pode até estar relacionado com os direitos fundamentais de dimensão positiva, como o direito à segurança (direito meta-individual, coletivo), mas não com o conceito de garantismo, que se confunde com o de garantismo negativo.

I

Segundo Ferrajoli, garantismo designa um modelo normativo de direito, um modelo de estrita legalidade, que se caracteriza, no plano político, como uma técnica capaz de minimizar a violência e maximizar a liberdade, e no plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à potestade punitiva do Estado em garantia dos direitos do cidadão.[1]

É uma teoria que defende um sistema de poder mínimo, de crítica do direito positivo, a partir da separação entre direito e moral e da exigência de que somente atos que provoquem danos sejam proibidos.  Os princípios do garantismo penal são: 1) nulla poena sine crimine; 2) nullum crimen sine lege; 3) nulla lex (poenalis) sine necessitate; 4) nulla necessitas sine iniuria; 5) nulla iniuria sine actione; 6) nulla actio sine culpa; 7) nulla culpa sine iudicio; 8) nullum iudicium sine accusatione; 9) nulla accusatio sine probatione; 10) nulla probatio sine defensione.[2]

A grande maioria dos axiomas garantistas já estão previstos no ordenamento jurídico positivo brasileiro, tais como: não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal (art. 1º do Código Penal); não há ação sem culpa, pois a culpabilidade é requisito do crime ou pressuposto de aplicação da pena(art. 20, § 1º; art. 21, ambos do Código Penal); é necessário um Processo judicial para avaliação da culpa (art. 5º, LIV, da Constituição); há um órgão para acusação diferente do órgão julgador (art. 129, I, da Constituição); é necessário que em qualquer processo criminal o réu seja assistido por um defensor (art. 261 do Código de Processo Penal).

O garantismo assemelha-se com o direito penal mínimo e o liberalismo penal, que buscam privilegiar as liberdades individuais.  Ele é marcado por uma profunda preocupação em que sejam respeitados, pelo Estado, os direitos fundamentais dos indivíduos.  Não nega a necessidade do direito penal, até porque não é uma teoria abolicionista, mas minimalista.  Visa apenas garantir o respeito aos direitos humanos.

Todavia, uma corrente de juristas, alegando preocupação com o aumento da criminalidade e da impunidade, dividiu o garantismo em duas vertentes.  A primeira, que chama de garantismo negativo, seria aquela que se preocupa somente com a restrição indevida da liberdade do cidadão. A segunda, que denominam de garantismo positivo, cuida de proteger os direitos fundamentais de terceiros da serem violados pelos criminosos, bem como o direito de ação do Estado para punir estes últimos.

Essa divisão, contudo, afigura-se-nos completamente inadequada.

Primeiro, porque o uso do adjetivo negativo,  para se referir ao garantismo idealizado por Ferrajoli, passa a ideia de que este seria algo ruim, deletério, prejudicial à sociedade, enquanto  garantismo positivo seria uma coisa boa, edificante, útil a todos.  Essa intenção difamatória fica bastante clara, tendo em vista as críticas que são dirigidas contra o garantismo negativo pelo  garantismo positivo. Este seria uma forma de corrigir aquele, uma teoria “incompleta” que se preocuparia apenas em proteger criminosos.

Segundo, porque o assim denominado garantismo positivo não reflete o conceito de garantismo penal.  Garantismo é a preocupação com os direitos do indivíduo, com a forma como a lei penal é criada e aplicada em relação ao cidadão, com a restrição indevida do direito de liberdade deste pelo Estado.

Não questionamos que a sociedade deve ser protegida dos criminosos, que o Estado precisa persegui-los e puni-los, mas isso não é garantismo. Não é garantismo defender um direito penal eficaz ou uma ação mais firme contra os delinquentes.

Garantismo positivo nada tem a ver com garantismo propriamente dito.  É como se alguém resolvesse classificar o capitalismo em capitalismo negativo (no qual os bens de produção pertencem aos empresários, assim como a maior parte dos lucros decorrentes do trabalho dos empregados) e capitalismo positivo (no qual os bens de produção pertenceriam ao proletariado e os lucros seriam divididos entre todos).  Na verdade, essa pessoa é simplesmente contrária ao sistema capitalista, devendo, simplesmente, defender o comunismo ou o socialismo, e não tentar criar uma nova espécie de capitalismo, que não tem nada a ver com o conceito deste.

Em suma, o denominado garantismo positivo não é garantismo, por mais repleto de razão e boas intenções que esteja.  Qualquer pessoa tem o direito de discordar da doutrina garantista e a ela se opor, mas não tem sentido fazer isso afirmando que defende um “garantismo positivo”.  É um absurdo que defensores do direito penal máximo, punitivistas, membros do movimento “Lei e Ordem”, declarem-se “garantistas” num sentido “positivo”.

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Sabemos que muitos daqueles que usam a expressão garantismo positivo fazem-no  com a intenção, legítima, de defender as vítimas de crimes, a sociedade, o direito de punir do Estado.  Entretanto, esses objetivos, por mais louváveis que sejam (e realmente o são), não são objetivos do garantismo.  Este, assim como o direito penal mínimo e o liberalismo penal, preocupa-se em defender os direitos fundamentais do indivíduo perante o Estado. 

Assim, o garantismo positivo precisa encontrar outra expressão para se auto-designar, a fim de evitar contradições e confusões.  Não tem sentido que ele se valha da aparência de novidade e modernidade (falsa, diga-se de passagem, pois a preocupação em defender os direitos individuais nas lides criminais vem desde Beccaria), de que goza o garantismo, mudando totalmente seu sentido original.

Pode-se alegar que um (garantismo positivo) não exclui o outro (garantismo negativo).  Mas são teorias diferentes, com objetivos distintos (defesa dos direitos da sociedade versus defesa dos direitos individuais ), por isso precisam de designações diversas.


II

Sabe-se que existem diversas classificações, no direito, que usam os adjetivos negativo e positivo.  Há, por exemplo, conflito de competência positivo (quando dois juízes se declaram competentes para julgar uma determinada causa) e negativo (quando dois juízes se declaram incompetentes).

Não se pode esquecer, também, da tradicional classificação que divide os direitos fundamentais em negativos e positivos.  Os primeiros são os direitos de defesa (liberdades individuais); os segundos, os direitos de natureza prestacional (liberdades sociais).  Em síntese, os de natureza negativa exigem uma abstenção do Estado, um não fazer, enquanto os de natureza positiva pedem que o Estado faça alguma coisa, atue positivamente.[3]

O garantismo positivo não poderia, então, ser identificado com os direitos fundamentais de natureza positiva (pois exigem um fazer do Estado em defesa da sociedade), enquanto o garantismo negativo com os direitos fundamentais de defesa (vez que exigem uma abstenção do Estado), justificando, assim, tal divisão?

A nosso ver, não. 

Preliminarmente deve-se observar que o chamado garantismo negativo não requer apenas comportamentos omissivos do Estado, mas também obrigações de fazer, como a concessão de defensor, pelo Estado, a todo acusado da prática de crime.

Além disso, o auto-denominado garantismo positivo postula comportamentos omissivos por parte do Estado, como que este (em especial o Estado-Juiz), de maneira geral, não  invalide ações preventivas dos órgãos de segurança pública ou ações repressivas legítimas dos órgãos de repressão criminal.

Mas aquilo que diferencia mesmo garantismo positivo de garantismo negativo, que impede que o primeiro sejam denominado de garantismo, é o antagonismo que existe entre eles.

Enquanto os direitos de defesa, as liberdade civis, denominadas negativas, são direitos fundamentais (são direitos humanos positivados numa Constituição), da mesma forma que o são (pois também são direitos humanos positivados numa Constituição) os direitos subjetivos prestacionais, positivos (direito à saúde, por exemplo), garantismo positivo, entendido como dever do Estado de proteger a segurança dos cidadãos através da restrição a direitos fundamentais individuais, não é garantismo (doutrina direcionada à proteção dos direitos individuais). 

O garantismo dito positivo pode até estar relacionado com os direitos fundamentais de dimensão positiva, como o direito à segurança (direito meta-individual, coletivo), mas não com o conceito de garantismo, que se confunde com o de garantismo negativo.

Ademais, são teorias bem diversas.  Uma visa restringir direitos individuais e ampliar o campo de ação do Estado; a outra, ampliar a liberdade individual e restringir a atuação do Estado. 

Enfim, quando falamos de garantismo positivo e negativo, não estamos falando de coisas parecidas, e sim completamente diferentes. Fazendo uma comparação com a biologia, não estamos tratando de espécies de um mesmo animal, mas de animais totalmente distintos, sendo que um vive tentando “engolir” o outro.

Noberto Bobbio escreveu que não se pode encher ou esvaziar, a bel-prazer, um termo de seu significado.  Mas é isso que uma corrente de juristas vem fazendo, ao classificar como garantismo positivo o movimento de reação ao garantismo, conceito construído por Ferrajoli.


III

Esclarecido o que é garantismo, surge uma questão interessante: existe promotor de justiça garantista?

A doutrina garantista vem recebendo, no mundo inteiro, e de maneira especial no Brasil, as mais severas críticas.  A coisa chegou a tal ponto que chamar alguém de garantista pode ser interpretado como uma injúria, pois no senso comum, garantista é quem defende criminosos, pouco se importa com as vítimas destes e com o bem da sociedade.

“Garantista” é a maneira de designar advogados que fazem qualquer coisa pra livrar bandidos da cadeia, através das chamadas “teses garantistas”.  Quando dirigido a um juiz, significa que se trata de um magistrado individualista, despreocupado com o bem social.   Talvez se salvem da pecha injuriosa os acadêmicos, pois estes, por viverem metidos em salas de aulas e bibliotecas, não conheceriam a realidade do mundo do crime.

Nessa conjuntura, ser membro do Ministério Público e garantista parece um  paradoxo, uma contradição, algo praticamente impossível de acontecer, a não ser que não se cumpra, devidamente, com os deveres funcionais de proteger o interesse público e atuar como parte acusadora nas ações penais.

Ocorre que quem pensa desse modo esqueceu-se que um dos deveres do Ministério Público, segundo o art. 127 da Constituição, é defender os direitos individuais indisponíveis (direitos da personalidade), dentre os quais encontra-se o direito à liberdade.  Assim, vez que o objetivo principal do garantismo é proteger a liberdade individual contra investidas desarrazoadas por parte do Estado, não há nenhuma incompatibilidade entre a doutrina garantista e a função ministerial.

O garantismo não visa a abolição do direito penal nem a impunidade de criminosos, mas sim que o direito penal, necessário para a preservação da sociedade, obedeça a alguns princípios, que respeite os direitos humanos.  Ainda que possa ser usado para defender um criminoso, isso não quer dizer que tal teoria foi feita garantir a impunidade.  O direito de defesa, de ter um defensor, de só ser acusado da prática de crimes previstos em lei, são postulados que visam evitar injustiças, não punições legítimas.  Há uma má compreensão do que é garantismo, em razão dos seus axiomas serem usados principalmente por advogados de defesa.  Pensa-se que ele visa a impunidade, o que não é verdade.

Por outro lado, defender os postulados básicos do garantismo não significa concordar com tudo que disse Ferrajoli.  Este defendeu, por exemplo, que nenhum crime deveria prever pena privativa de liberdade superior a 10 anos (a ser efetivamente cumprida).  Pensamos, contudo, que autores de determinados crimes deveriam receber prisão perpétua, sendo que a lei brasileira não adotou nem a posição de Ferrajoli nem a nossa posição, ficando num meio termo.

Dessa forma, ser garantista não é concordar inteiramente com Ferrajoli, mas tão só sustentar os postulados do direito penal mínimo, a primazia dos direitos fundamentais (que decorre da própria ordem constitucional), o que pode ser feito de maneira concomitante com o exercício da persecução criminal em juízo.


REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantimo penal. 8. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 298-299


Notas

[1] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantimo penal. 8. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2006, p. 851-852.

[2] Idem, p. 93.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 298-299.

Sobre o autor
Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Assunção. Garantismo “positivo” é garantismo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3213, 18 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21541. Acesso em: 17 nov. 2024.

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