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O autogoverno no Ministério Público brasileiro: alternativas para reduzir a politização da instituição

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Agenda 09/05/2012 às 16:21

5- Efeitos sobre a independência funcional

Há quem sustente que a influência do poder político sobre os membros do Ministério Público, quando existiu, nunca se exerceu diretamente, antes foi sempre amortecida pela figura do Procurador-Geral (Moura, 2002, p. 09). Tal entendimento é reforçado pelas garantias funcionais reconhecidas aos membros do MP pela Constituição e pela lei, com o objetivo de garantir-lhes a independência perante os governos ou governantes. Embora no âmbito administrativo, os membros da instituição submetam-se à hierarquia da Administração Superior, não é possível admitir a imposição a um membro do Ministério Público, no exercício de suas funções, por órgão da Administração Superior ou qualquer outra autoridade estatal, de um comportamento em relação a determinada matéria cuja solução dependa de sua convicção (Sauwen Filho, 1999, pp. 212-213).

A doutrina que prega o posicionamento acima esquece que pontos sensíveis da carreira de um membro do Ministério Público dependem basicamente da atuação administrativa do Procurador-Geral e dos demais órgãos da Administração Superior, como: gestão disciplinar, progressão funcional (promoções e remoções) e remuneração. Apenas quem já foi ou é promotor de justiça no interior recuado do país sabe dimensionar com exatidão a importância de uma remoção ou promoção. E diante da possibilidade de ficar esquecido por anos a fio (situação que não tem nada de rara ou excepcional nos anais da instituição), vendo suas pretensões serem preteridas sucessivamente, o agente tende a contemporizar. E é nesta contemporização para conseguir progredir na carreira que a independência funcional corre sérios riscos.


6- A hipertrofia de poderes do Procurador-Geral de Justiça

O Procurador-Geral concentra uma quantidade formidável de poder político dentro e fora da Instituição, fazendo dele o primus inter pares[15] ou inter stellas luna minores[16], numa espécie de apoteose da individualidade. Isso faz com que o Ministério Público apresente, usando as palavras de Durkheim (2008, p. 41), “o aspecto de um monstro, no qual apenas a cabeça é viva, tendo absorvido todas as energias do organismo”.

Não se vai tanto tempo da época em que os Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados eram nomeados e demissíveis ad nutum pelo chefe do respectivo Poder Executivo. Não se vai tanto tempo, pois os resquícios ainda são encontrados até hoje em quase todos os Estados, da época em que todo poder da Instituição emanava do Procurador-Geral de Justiça, que designava, removia e avocava atribuições, exercendo as que bem lhe aprouvesse; que compunha os órgãos colegiados com escolhas dos amigos do dia (Carneiro, 1996, p. 160).

Internamente, cabe ao chefe da instituição exercer uma série de atribuições, como: presidir os órgãos colegiados da Administração Superior; apresentar o Plano Anual de atividades do Ministério Público; elaborar as propostas de orçamento anual, fixação de subsídio, criação e extinção de cargos; decidir questões referentes à administração e à execução orçamentária; proceder à edição de atos que impliquem em movimentação na carreira, como promoção, remoção, permuta, convocação ou designação de membros e servidores; editar atos de aposentadoria; decidir processo disciplinar contra membro ou servidor e aplicar as sanções adequadas; rever o arquivamento de procedimento investigatório, nos casos legais.

Os poderes do procurador-geral de justiça se refletem no cenário político externo quando lhe compete processar criminalmente os Prefeitos, os Juízes Estaduais, os Membros do Ministério Público, os Deputados Estaduais e o Vice-Governador. E originariamente promover o inquérito civil e a ação civil pública quando a autoridade for o Governador do Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa ou o Presidente do Tribunal. E ainda representar ao Procurador-Geral da República para processar por crime comum o Governador do Estado, os desembargadores e os membros dos Tribunais de Contas.

Mas como observa o Ministro do STF Celso de Mello, “o poder do procurador-geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável”[17].

 


7- A democracia interna no Ministério Público

Uma coisa é a democratização do Estado (democracia política), obtida com a extensão do sufrágio (sufrágio universal), outra é a democratização da sociedade civil (da família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos) que se obtém pelo número de instâncias estruturadas e governadas democraticamente. Nem sempre a democracia política implica em democracia social. Dentro de um Estado democrático podem existir setores ou instâncias sociais (instituições, órgãos etc.) que não sejam estruturados ou governados democraticamente. Isso torna a democracia integral (democracia política + democracia social) um ideal distante.

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Muitas instâncias ou instituições sociais como o matrimônio, a família[18], a propriedade e a empresa, assim como os diversos grupos territoriais e pessoais, são, historicamente, anteriores ao Estado e, por conseguinte, não foram criados por força da correspondente função jurídica daquele, mas que são, na sua origem, resultado de forças sociais que o Estado não organizou (Heller, 1968, p. 226). Isso explica o desnível de democraticidade entre as duas esferas (social e política).

As relações estabelecidas entre o povo e os líderes governamentais de modo algum esgotam a democracia. A democracia é apropriada para todos os modos de associação humana: a família, a escola, a indústria, a religião ou qualquer outro local de interações entre as pessoas, amplas e duráveis, que as afetem mutuamente (Dewey, 1927:143).

Isso nos leva a uma conclusão parcial referendada por Bobbio (1986:28): quando se quer saber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este direito. Ou seja, se os valores democráticos penetraram nas diversas instâncias sociais (instituições, organizações etc.).

Essa expansão democrática (política e social), atingindo todas as instâncias, tem a sua importância localizada justamente no fato de fazer os cidadãos (nas mais diversas qualidades: servidor público, consumidor, trabalhador, empregador etc.) adquirirem hábitos, experiências e disposições democráticos.

No Ministério Público[19], em todas as leis estaduais de regência, sem exceção, percebe-se uma formidável concentração de poder de cúpula (estrutura de dominação), enfeixado nas mãos do Procurador-Geral de Justiça e Procuradores de Justiça (Conselho e Colégio de Procuradores)[20]. Os reais poderes do Ministério Público e da Magistratura, diz Mazzilli (2008, p. 53), com frequência não são efetivamente usados contra os governantes e os poderosos, pois se concentram propositadamente nas mãos de umas poucas pessoas, os procuradores-gerais e os colegiados políticos, que muitas vezes fazem parte da estrutura de poder.

O fluxo do poder, como diz Bobbio (1986:54), só tem duas direções: ou é descendente, ou seja, desce do alto para baixo (autocrático), ou é ascendente, quer dizer, vai de baixo para cima (democrático). No MP, o fluxo de poder é descendente e pouco expansivo, na medida em que todas as decisões importantes na carreira (progressão funcional, punição disciplinar, aumento de subsídios, elaboração/aprovação da proposta orçamentária anual, criação e extinção de cargos etc.) são tomadas pelos órgãos superiores que não têm nenhuma representatividade da classe. Encontramo-nos diante de uma estrutura vertical de poder, estrutura que é oposta à que corresponderia, por definição, a uma lógica democrática (Yannuzzi, 2007:217).

A teoria democrática toma em consideração o poder autocrático, isto é, o poder que parte do alto, e sustenta que o remédio contra esse tipo de poder só pode ser o poder que vem de baixo (Bobbio, 1986:60; Yannuzzi, 2007:217). Há, portanto, como decorrência desse esquema simplificado, a necessidade de distribuição de poder entre os diversos membros integrantes da instituição (pluralismo institucional) e da exaltação do poder de baixo contraposto ao poder de cima (poder hierárquico). Isso porque, as organizações e as instituições reproduzem, em escala reduzida, a estrutura do Estado democrático.

É uma contradictio in adjectu, uma instituição encarregada de defender o regime democrático com uma postura democrática, mas dependente de uma estrutura política interna com fortes traços autocráticos e hierárquicos. A explicação que se dá é a mesma dada para a hipertrofia do Executivo: aqui viabilizar o Estado; lá viabilizar a instituição do Ministério Público. Todo poder centralizado, todavia, é um convite ao abuso, ensina a teoria política (Dahl, 1998:86; Azambuja, 1945:25).

Como elementos autocráticos ou monocráticos podem encontrar solo fértil numa instituição com vocação democrática, encarregada, ainda por cima, de defender a democracia? Essa contradição confere certa ambigüidade ao Ministério Público, impedindo que sua identidade institucional seja traçada de uma vez por todas. Por esse ângulo, o MP só pode ser compreendido à luz dos objetivos de uma sociedade democrática, daquilo que busca alcançar com sua estrutura e organização.

Embora tenha a Constituição destinado o Ministério Público à defesa do regime democrático[21], não cuidou de instituir suficientes instrumentos para fazer dele próprio uma instituição mais democrática, ou seja, uma instituição cujos membros tenham investidura, ação e destituição mais bem controladas pelo titular último da soberania, que é o povo (Mazzili, 2007, p. 78).

O poder, enquanto categoria política, contém elementos fortemente antidemocráticos. O poder encerra em si mesmo um processo de perversão nunca superável. Poder e corrupção andam necessariamente juntos (Yannuzzi, 2007:227). E a concepção democrática não leva em conta esse aspecto há muito registrado por Maquiavel: a crua realidade do poder, objeto único e verdadeiro da política. Desse modo, o órgão ou instituição será estruturado e, principalmente, governado (ou gerido) de acordo com a relação que estabelece com o poder. Se o objetivo central da instituição, como o partido político, é alcançar o poder (vontade de poder), “por definição, este tipo de organização não pode ser democrática” (Yannuzzi, 2007:217)[22]. Se, todavia, a relação estabelecida é a de controlar e fiscalizar o exercício do poder (vontade de contenção), como se passa com o Ministério Público, sua estrutura e sua gestão hão de ser, necessariamente, cortadas pela lógica democrática e por uma inafastável contenção ética.

No cotejo entre o Ministério Público dos Estados e o Ministério Público Federal vemos que este apresenta uma estrutura interna mais democratizada. Enquanto no Ministério Público Federal o Colégio de Procuradores é integrado por todos os membros da carreira em atividade (de 1ª. e 2ª. instância)[23], no Ministério Público dos Estados é composto apenas por membros que atuam perante a 2ª. instância (Procuradores de Justiça). Ou seja, um grupo funcional minoritário.

Se as teorias da democracia requerem que os servidores públicos sejam responsáveis perante o povo e sejam controláveis pelos eleitores, não poderá o mesmo aplicar-se aos dirigentes das instituições públicas? Pode um Estado democrático coexistir com instituições públicas dotadas de estruturas internas autocráticas? O fato do MP não ser uma instituição representativa (pelo viés estrito da representação política) não impede que sua estrutura interna seja democratizada, permeável aos valores democráticos.

As corporações, organizações administrativas e instituições públicas (de caráter político ou jurídico) são um componente inevitável da vida moderna. Mas, infelizmente, como ensina R. Michels (s/d, p. 15), quem diz organização, diz tendência para oligarquia. Em cada organização quer se trate de um partido, de um sindicato, de uma união de ofícios, etc., a tendência aristocrática em seu funcionamento interno manifesta-se de forma bastante pronunciada. É a lei de bronze da oligarquia que vem limitar a democracia nas grandes organizações e instituições. Mas é preciso ir mais longe: a deterioração dessas organizações não é determinada exclusivamente pelos processos internos; relaciona-se com a história, com a conjuntura (Lapassade/Lourau, 1972, p. 124).

É certo que existem instituições dentro de um Estado democrático cuja estrutura interna não pode ser democraticamente desenhada. Exemplo é o Exército. O Exército, em si, não pode ser governado democraticamente, ou com justiça e humildade, no dizer de Sun Tzu (2007, p. 44), pois seria um instrumento ineficiente. Tem de funcionar dentro dos princípios da disciplina e da autoridade. As ordens devem ser obedecidas sem discussão (Lindsay, 1962:182). Todavia, instituições como o Ministério Público, criadas e estruturadas para servir de garantia a uma sociedade democrática, que não se subordinam aos princípios da hierarquia, disciplina e autoridade, não podem adotar outro modelo de organização que não seja essencialmente democrático. É possível imaginar um Procurador-Geral com a mesma autoridade incontrastável de comandantes de um exército? Ou o Colégio de Procuradores de Justiça ter a autoridade equivalente à de uma Junta Militar?

O que se impõe numa instituição como o Ministério Público com objetivos constitucionais tão nobres, onde a disciplina não substitui a discussão e nem a hierarquia predomina sobre a independência funcional? Impõe-se a democracia local em pequena escala em todos os assuntos internos ou a democratização do comando, no dizer de RUSSELL (2001, p. 20); órgãos monocráticos e colegiados de cúpula devem ser eleitos por aqueles sobre quem devam ter autoridade administrativa. Membros natos, indicados ou nomeados não conferem legitimidade e representatividade aos órgãos que compõem, sejam unipessoais ou colegiados. Se há uma grita em relação à forma de investidura do Procurador-Geral, esquecemos que a estrutura de direção (colegiada) da instituição não constitui melhor exemplo.

Passados 20 anos da promulgação da Constituição brasileira e do entusiasmo que cercou o novo perfil e as novas garantias do Ministério Público, é chegado o momento de repensar os mecanismos institucionais, verificando se os mesmos são compatíveis com a atual conjuntura histórica, política e social. É uma tarefa árdua, pois o passado continua exercendo influência sobre as instituições e seus hábitos procedimentais: ainda que as raízes já estejam mortas, a vida permanece nos ramos por certo tempo.

Uma coisa é certa: há espaço suficiente para mais democracia na estrutura administrativa do Ministério Público. Ao que já tem o verniz democrático (do ponto de vista procedimental[24]) como o dever constitucional de fundamentação das decisões, a publicidade oficial, a transparência dos gastos, pode ser acrescentado um reforço institucional a partir de mecanismos que extraiam maior grau de democraticidade. Nos pontos onde há um crônico deficit democrático como a gênese e a estruturação dos órgãos diretivos (Conselho Superior e Colégio de Procuradores) pode-se repensar o modelo para nele inserir novos princípios de contraforças e de equilíbrios.

Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. O autogoverno no Ministério Público brasileiro: alternativas para reduzir a politização da instituição . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3234, 9 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21722. Acesso em: 23 dez. 2024.

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