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Alguns comentários sobre a Lei 9.615/98

Agenda 01/10/2001 às 00:00

A Lei Pelé, cheia de injustiças, é fruto de desavenças pessoais entre seu criador e a CBF.

1- Noções Introdutórias

A Lei 9.615/98 instituiu normas sobre o desporto brasileiro. Procurou tratar o desporto de uma forma geral, mas sem sombra de dúvida teve no futebol seu alvo principal. Estes breves comentários sobre a "Lei Pelé" não possuem a pretensão de esgotar o assunto acerca do tema, mas procurarão apresentar uma análise crítica deste ordenamento, que trata de questões polêmicas como o "passe livre" e a obrigatoriedade dos clubes virarem empresas comerciais. Muitos outros temas, também de salutar relevância, poderiam ser analisados, como a Justiça Desportiva e a possibilidade de criação de ligas, regionais ou nacionais, com autonomia e independência, desvinculadas da CBF e consequentemente da FIFA. Contudo, procuraremos nos deter naqueles dois temas específicos.

O esporte sempre foi fator necessário e constante na busca da fuga das inquietudes do cotidiano humano. Desde as mais antigas civilizações, como na Grécia, é o desporto utilizado como forma de demonstrar a destreza e a força física dos competidores, bem como o maior ou menor poder de uma nação. E com este desenvolvimento progressivo, também assim evoluiu as formas de disputas e organizações esportivas. Esses acontecimentos nas práticas desportivas foram acompanhados, como não poderia deixar de ser, pela evolução de outros aspectos da vida humana, como as artes, as ciências, as indústrias e também pelo Direito. Muitos atletas deixaram de ser apenas amadores e hoje são profissionais, geralmente bem remunerados.

O crescimento esportivo trouxe uma série de novidades e modificações nas relações entre aqueles de competem, aqueles quem os atletas representam e os que organizam tais competições. E quando há um inter-relacionamento entre diversos agentes há a necessidade da presença do ordenamento jurídico para regular tal relação, haja vista estar a prática desportiva cada vez mais ligada a interesses econômicos de grandes mercados "consumidores" deste lazer.

Temos, pois, uma dicotomia: de um lado o homem que encontrou no esporte uma maneira de se refugiar das incomodações rotineiras, procurando o isolamento e lugares reservados para praticá-lo, criando suas próprias regras, onde impera e é soberana a lealdade entre os adversários, e o Direito Comum não deve entrar; de outro, a necessidade que tem o Estado de regular a prática desportiva quando essa atente contra a dignidade da pessoa humana, criando normas que protejam aqueles que, na disputa, sofreram atos que prejudicaram o bem-estar do desportista, ou que criem relação de exploração entre o atleta e a entidade que ele representa.

Não podemos pensar em aplicar a Legislação comum ao desporto se as leis que forem aplicadas não estiverem dotadas do espírito desportista, pois o esporte não pode ser tratado como tão somente mais um ramo do Direito. O desporte é dotado de seus princípios próprios, de suas singulares características e qualquer lei que não busque tais conceitos bailares será injusta. E assim é a "Lei Pelé", cheia de injustiças, incongruências e incosntitucionalidades, fruto de desavenças pessoais entre seu criador, Edson Arantes do Nascimento, um jogador incomparável, um Ministro de parca inteligência, e a Confederação Brasileira de Futebol, comandada pelo Sr. Ricardo Teixeira, genro de João Havelange, ex-presidente da FIFA, desafetos do "rei".


2- A Evolução da Regulamentação do Desporto no Brasil

Quando se fala em desporto do Brasil, é normal que se pense, rapidamente e em primeiro lugar no futebol. E isto não é de se estranhar, haja vista ser o esporte mais difundido no país e de já ter dado ao povo quatro Copas do Mundo e uma infinidade de outros títulos. Só há alguns poucos anos atrás é que outras modalidades começaram a se tornarem conhecidas e populares, o que não significam que já não eram praticadas no país. Para se ter apenas um exemplo, clubes de futebol hoje tradicionais iniciaram suas atividades com outros esportes, como é o caso do Clube de Regatas Vasco da Gama e o Clube de Regatas do Flamengo, que primordialmente competiam nas modalidades de remo. Contudo, foi na popularização do futebol que se massificou a prática desportiva, outrora atrelada às classes mais abastadas. Com o crescimento do futebol, fez-se necessário a criação de entidades que tratassem dos interesses dos desportistas e que organizassem as competições. Outros esportes já possuíam suas federações.

Inúmeras foram as legislações desportivas que trataram do desporto brasileiro. Merece destaque o ordenamento de 1941, o Decreto-Lei 3.199, obra do respeitável jurista e já falecido João Lyra Filho. É de se lembrar que o país vivia sob a égide do Estado-Novo de Getílio Vargas. Contudo, sua obra teve o mérito de estruturar o desporto brasileiro criando normas gerais. Pela delicada situação política, o controle das entidades desportivas era de controle nacional, que controlava a participação de equipes brasileiras em competições estrangeiras, bem como a vinda de equipes "alienígenas" para confrontarem-se com equipes do país. Mas o que realmente tornou este regramento em um marco no ordenamento desportivo, foi a restruturação de desporto brasileiro, através do Conselho Nacional de Desportos. O futebol brasileiro vinha de um período catastrófico, que iniciou com a criação de uma Federação Brasileira de Futebol, de uma Federação Paulista, e de uma Federação Carioca, em oposição à Confederação Brasileira de Desportos, à Associação Metropolitana de Esportes Atléticos e à Associação Paulista de Esportes Atléticos que enfraqueceu o futebol brasileiro na Copa de 1934, haja vista esta divisão, pois apenas os clubes filiados a entidade oficial, a CBD, puderam participar do campeonato.

Outras Legislações vieram com o passar dos anos, como a Lei 6.257/51 e os Decretos 81.102/77 e 82.877/77. Contudo, foi em 1993 que a Legislação desportiva começou a sofrer suas maiores transformações. A Lei 8.672, a "Lei Zico", de autoria do Secretário de Esportes Artur Antunes Coimbra jamais teve aplicação, mas teve real influência na "Lei Pelé". Esta simplesmente copiou a maioria dos dispositivos daquela. Impelido por razões que nos fogem discutir, o Ministro Extraordinário dos Esportes Edson Arantes do Nascimento entendeu que a legislação desportiva não deveria chamar-se de "Lei Zico", e sim de "Lei Pelé". E assim nasceu este atentado os desporto brasileiro, repleto de inconstitucionalidade e desrespeito ao desporto nacional.

Em desrespeito ao preceito do art. 24 IX e parágrafo 1ºda CF/88 que preconiza que compete, no âmbito da legislação concorrente, à União limitar-se a estabelecer normas gerais sobre desporto, a Lei 9.615/98 desceu a minúcias não autorizadas pela Carta Magna, desrespeitando além da Constituição a autonomia das entidades desportistas e associações, que deveriam, elas próprias organizarem seu funcionamento, como autoriza o art. 217 da CF/88.


3- O Desrespeito aos Artigos 5 XVII, XVIII e 217 da CF/88

Toda a lei ordinária que desrespeita normas constitucionais, é por conseguinte, inconstitucional. É uma regra que qualquer acadêmico de direito, por mais que curse as primeiras cadeiras do faculdade sabe. Assim são os artigos 22 e 27 da Lei 9.615/98. Eles desrespeitam sensivelmente o ordenamento constitucional regrado no artigo 5º XVII, XVIII e 217 I da Carta Magna brasileira.

O artigo 5º XVII, e XVIII encontra-se no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais" da Constituição Federal. Autoriza tal dispositivo a liberdade de da criação de associações para fins lícitos, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.

Reza o artigo 217 ca Constituição Federal:

"É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I- a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;" (...).

Para conflitar com tais preceitos constitucionais, a "Lei Pelé" instituiu o art. 27, que assim narra:

"As entidades relacionadas a competições de atletas profissionais são privativas de:

sociedades civis de fins econômicos;

sociedades comerciais admitidas na legislação em vigor;

entidades de prática desportiva que constituírem sociedade comercial para administração das atividades de que trata este artigo.

Parágrafo único. As entidades de que tratam os incisos I, II, III deste artigo que infringirem quaisquer dispositivos desta lei terão suas atividades suspensas, enquanto perdurar a violação.

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Também assim dispõe o art. 29 do Decreto 2.574/98 que regulamenta a Lei 9.615 do mesmo ano.

Já o art. 22 da Lei 9.615 prevê a organização dos processos eleitorais do Sistema Nacional de Desporto, elencando do inciso I ao V princípios informadores de tal processo. Isto também é encontrado no art. 24 do Decreto supra referido.

Estamos diante de uma inconstitucionalidade que salta os olhos beirando a um verdadeiro absurdo.

Quando a "Lei Pelé" prevê a obrigatoriedade dos clubes transformarem-se em empresas comercias e interfere claramente na organização das entidades desportivas ataca de morte preceitos constitucionais. Não se pode admitir que o legislador e administração pública interfiram em preceitos consagrados constitucionalmente.

Nenhuma associação pode ser compelida a transformar-se em sociedade comercial. A ofensa constitucional ao art. 5°, XVII, e XVIII é tão séria que implica em ferir uma cláusula pétrea, consagrada no art. 60 parágrafo 4° IV da CF/88. A liberdade de associação é garantia individual. Sendo, pois, garantia individual não pode ser modificada nem mesmo por emenda à constituição. Note bem. Mesmo que o legislador quisesse não poderia mudar tal dispositivo, a não ser é claro, se fosse detentor de um Poder Originário para feitura de uma nova constituição. Mas este não é o caso. Contudo, a "Lei Pelé", simples lei ordinária, tenta mexer, como diria um Ministro anos atrás, no "imexível", passando por cima de todas as regras do Direito Constitucional.

Ademais também ofende seriamente o art. 217, I da CF/88, pois implode o postulado constitucional da autonomia desportiva. Vale lembrar que todo o ordenamento deve encontrar-se em harmonia com as regras e princípios constitucionais. Nessa medida, os postulados constitucionais superar as demais leis. E quando uma lei desobedece preceitos elencados na Constituição Federal, esta lei deve sofrer uma "sanção"(como se lei pudesse sofrer sanção) que é sua invalidade, ou melhor, a declaração de inconstitucionalidade. E assim é o art. 22 e o art. 27 da Lei 9.615/98.

Não desejamos que o desporto profissional seja tratado de uma forma amadorística. É claro que para se obter êxito em seus objetivos os clubes devem buscar gerir-se profissionalmente. Contudo para se alcançar isto, não importa se a entidade será civil ou comercial. O que importa é a competência daqueles que a administram. Se formar uma sociedade nos moldes comercias fosse garantia de sucesso, não se teria cada vez mais empresas falindo.

No que tange a interferência desmedida do legislador e da administração pública na organização dos processos eleitorais do Sistema Nacional de Desporto, as regras do art. 22 da "Lei Pelé", desrespeitam a autonomia das associações consagradas no art. 5° XVIII e 217, I da CF/88. Além disso, o referido artigo trata de matérias supérfulas que contrariam o art. 24, IX e parágrafo 1°, onde se prevê apenas a competência para editar normas de caráter geral.


4- O "Passe Livre" A "Lei Áurea" do jogador de futebol?

Questão de imensa importância cerca a discussão do "passe livre" instituído pela "Lei Pelé". Para uns significa a liberdade tão almejada pelos jogadores profissionais de futebol que não terão mais seus passes vinculados a nenhum clube, estando "livres" para jogarem onde quiserem. Para outros, estamos diante do princípio do desmantelamento de incontáveis clubes, que sobrevivem da venda de jogadores, bem como do aumento do desemprego no futebol. Com quem está a razão?

O "passe" tem reconhecimento da FIFA que entende que aquele clube que revelou o jogador e que possui sua vinculação deve ser indenizado quando da transferência deste atleta para outra agremiação. É, pois, o "passe" uma fixação indenizatória que estipula aquele clube que investiu no jogador ainda quando ele era desconhecido, que projetou este jogador para os olhos dos demais, quando da mudança clubística pelo atleta.

Já não é de agora que se discute sobre a legalidade e até mesmo a cerca da moralidade do "passe". Inúmeros autores, como Amauri Mascaro Nascimento escreveram sobre o tema. Assim alude o professor:

"A relação jurídica que prende o jogador de futebol profissional ao clube é trabalhista. Trata-se, portanto, de um contrato de trabalho, regido pelas leis trabalhistas, pelas leis desportivas e pelos regulamentos da Fedération International de Football Association (FIFA). (...)

O passe é uma instituição combatida.

Consiste numa liberação dos serviços do profissional, que sem essa cessão de direitos não poderá transferir-se de empregador. (...) É criticado por Russomano nos seguintes termos: "Nesse sistema em matéria de direito do trabalho, não existe nada mais obsoleto o trabalhador é reduzido à condição de res, e como tal submetido a poder arbitrário e despótico de deliberação do empregador. O direito do passe ou direito de transferência unilateral coloca o atleta sob a deliberação soberana do empregador, que decide a seu respeito como decide a respeito das coisas d sua propriedade.(...)". (Nascimento 1996, p. 361-365)

No que pese a opinião do ilustre jurísta, não concordo com ela. Entendo que o "passe" de forma alguma pode ser comparado a uma forma de escravidão. O "passe" é instituto jurídico-desportivo sui generis, como o futebol é formado por seu princípios próprios. Está o "passe" mais regulado pelo direito privado do que pelo direito do trabalho. É um instituto eminentemente contratual que deve existir para evitar uma imprevista liberação de jogadores, no meio de uma competição, esvaziando-a e ocasionando o caos desportivo. Assim transcrevemos a opinião do professor e advogado especialista em Direito Esportivo, Evaristo de Moraes Filho:

"Em verdade o passe não cerceia, quando regulamenta a liberdade do atleta, não chegando nem de longe a poder ser acoimado de inconstitucional.

Trata-se de instrumento adotado em toda a parte, regulado pela legislação internacional como única medida capaz de impedir a concorrência desleal e o aliciamento ilícito dos jogadores, dentro ou fora do país.

Vivendo os clubes de renda auferida pelas exibições que dão, muitos dependem do renome e da fama dos seus atletas, como atrativos para uma grande platéia.

Não raro, é o clube que faz a fama do atleta, educando-o, burilando as suas virtudes praticamente inatas e a sua própria personalidade. Tudo isso pode e deve ter uma correspondência patrimonial, que se traduz, afinal de contas, no direito, que ambos os contratantes possuem, de plena certeza de segurança do vínculo que os prende, manifestado no contrato por prazo determinado.

Sem o instituto do passe, na ganância de auferir altas rendas nos espetáculos públicos, juntamente com o significado econômico e moral das vitórias, e dos campeonatos, não haveria mais certeza nem garantia alguma nas contratações, de cuja insegurança seriam vítimas e algozes, ao mesmo tempo, os atletas e as associações desportivas."

É a "Lei Pelé" mais um capítulo que contribuirá, de forma nunca antes vista, para a desestruturação do desporto nacional, mais especificamente, do futebol brasileiro. Dispõe o parágrafo 2º do artigo 28:

"O vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho."

Deixando de lado a discussão se o "passe" importa ou não em uma maneira de escravizar o atleta, faz-se necessário verificar qual a sua importância no cenário brasileiro. É sabido que o Brasil é um formador por excelência de grandes jogadores, que normalmente seguem o caminho dos países europeus ou de outros continentes que oferecem verdadeiras fortunas. Nossos times investem, atualmente, uma considerável quantia de dinheiro nas categorias de base para formar bons jogadores. Em centenas de clubes, os atletas iniciam suas preparações ainda infantes, recebendo auxílio material, como moradia, alimentação, vestuário, auxílio médico, odontolólico, ajuda de custo, além de ajuda psicológica, fundamental para o bom aperfeiçoamento do jogador. Estima-se que em um grande clube gaste-se mais de R$300.000,00 (trezentos mil reais) mensais para manter todas as categorias de base. São centenas de atletas em uma única agremiação que possuem a possibilidade de, em um futuro próximo, tornarem-se profissionais. Contudo, somente alguns poucos alcançarão a condição de craques de futebol.

Agora vejamos: os clubes brasileiros necessitam de ressarcirem-se deste enorme investimento que fizeram nesses atletas. A grande maioria destes clubes mantêm-se da venda desses jogadores, formados nos seus quadros, para continuarem a participar de competições, empregarem outros jogadores, e investirem em novos talentos. Com o implemento da nova Lei, todos as atletas, no final seus contratos com os clubes brasileiros, terão seus "passes" desvinculados dos mesmos, podendo jogarem em qualquer time. Será mesmo?

Esta dita liberdade certamente importará na ida cada vez mais prematura de jovens profissionais para clubes do exterior, detentores de grandes capitais, representantes de megas-empresas que ditarão o comportamento do mercado de jogadores. Ou alguém acha que nossos clubes farão frente as propostas salariais milionárias que chegarão a estes atletas? O Brasil será um grande atrativo para a exploração desmensurada dos clubes estrangeiros, que verão em nossa legislação uma autorização para entrarem em nosso território, retirarem nossos jogadores mediante propostas tentadoras, passarem por cima de sentimentos alheios e não indenizarem os clubes. Qualquer semelhança com outras épocas históricas, onde países desenvolvidos exploravam nossas riquezas, não será mera coincidência!

O tema é muito intrincado e por que não dizer ainda muito movediço. Estamos diante de uma verdadeira revolução no campo da relação profissional entre jogadores e clubes. Muitas conjecturas podem ser feitas. A primeira é que temos a perspectiva de vermos cada vez mais cedo nossos melhores atletas deixarem os clubes que os revelaram e partiram para o exterior países que inegavelmente ainda pagam altíssimos salários. Certamente teremos uma avalanche desenfreada dos clubes europeus, que munidos de milhões de dólares, farão propostas irrecusáveis aos jovens atletas. A segunda, é a sangria que pode se desencadear nos clubes de futebol que investiram anos em suas categorias de base para formarem alguns poucos jogadores e verão estes dando adeus sem que tenham aqueles qualquer direito de compensação. Isto pode acarretar a "bancarrota" de inúmeras agremiações que necessitam dos recursos provenientes da venda dos passes de seus atletas para se manterem em atividade. A terceira previsão que podemos fazer é a diminuição significativa que os clubes brasileiros farão em suas categorias de base, haja vista não ser mais vantagem aplicar vultuosos investimentos nesta área por se saber que num futuro bem próximo o jogador, lapidado no clube, terá "passe-livre" e poderá deixar a qualquer momento a agremiação.

Contudo, ainda estamos falando daqueles times de elite, que disputam as maiores e mais rentáveis competições nacionais. Estes clubes representam uma parcela muito ínfima no que tange ao mercado empregador. A grande maioria dos atletas brasileiros estão empregados em times de médio e pequeno porte que pagam salários baixos e disputam competições muitas vezes deficitárias. Tais clubes participam de torneios que se estendem apenas por alguns meses do anos, poderão, respeitando o tempo mínimo de contrato, demitir o jogador assim que saiam fora da competição, aumentando avassaladoramente a mão-de-obra desempregada num país de desempregados. É a outra face da famigerada "Lei Pelé". Sobre pretexto de "libertar" os jogadores profissionais das amarras que os prendiam aos clubes de futebol, criou-se um monstro que pode ao mesmo tempo, condenar inúmeros clubes ao fechamento de usas atividades, entregar todos nossos melhores jogadores, ou aqueles poucos que ainda estão no Brasil, ao exterior, e ademais, fadar ao desemprego uma parcela assustadora de profissionais que vivem da bola para sustentar suas famílias.

A Lei procurou regular aqueles casos de jogadores que, quando da entrada em vigor de seus dispositivos, estarão com seus contratos de trabalho em plena vigência. Quando do término destes contratos, terão os atletas seus "passes" livres. Essa seria a situação idealizada pela Lei 9.615/98. Contudo, discussão cada vez mais se acalora referente aqueles jogadores que, na época da entrada em vigor da lei, estarão com seus contratos de trabalho encerrados. O parágrafo 2° da referida lei é claro ao afirmar que o "passe" dissolve-se com o término da vigência do contrato de trabalho. Se, no entanto, quando da vigência da lei, o contrato do jogador com o clube estiver vencido, não haverá "passe livre", pois não há contrato de trabalho. Esta deve ser a interpretação do dispositivo.

Uma nova lei não pode atacar situações jurídicas já definidas. É princípio basilar do direito pátrio, consagrado no inciso XXXVI do art. 5° da CF, que uma lei posterior deve respeitar o direito adquirido, ou seja, aquela situação de fato que a lei considera perfeitamente incorporada ao patrimônio de seu titular. Na hipótese supra referida, a aplicabilidade da lei dá-se no momento em que jogador e clube já não têm mais contrato de trabalho em vigor. É comum, atualmente, pela legislação desportiva, que mesmo após encerrado o termo final de um contrato laboral, atleta e instituição esportiva continuem negociando, buscando a renovação do vínculo empregatício. Entretanto, nem por isso, perde o clube o direito que tem sobre o "passe" do jogador.

Se na hipótese levantada, que certamente ocorrerá, a Lei entrar em vigor, ela não poderá atingir tal situação, sob pena de ofender o direito adquirido que tem o clube sobre o "passe" do profissional, haja vista não haver, naquele momento, contrato empregatício que possa a lei dissolver. O clube tem direito sobre o "passe" do jogador ainda amparado pela legislação anterior. A "Lei Pelé" só alcançará este atleta quando do término de seu novo contrato trabalhista. Pensar de outra forma é rasgar um direito fundamental, elevado a condição de cláusula pétrea, a qual impossibilita sua alterabilidade, tanto por via legislativa ordinária como por via constituinte derivada. Estando protegido por este manto, o direito adquirido não pode sequer ser objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional, pois é uma cláusula constitucional de exclusão sobre a qual não incide o poder de reforma. Caso a "Lei Pelé" vier atingir este dogma constitucional, ferir-se-á a essência, a natureza e a razão de ser da própria Lei Suprema.

Certamente haverá outras interpretações acerca do problema, principalmente provenientes daqueles atletas "maravilhados" com esta "Lei Áurea", bem como doutros que vêem no "passe livre", uma atrativa e reluzente "Serra Pelada". Para aqueles que entendem que a Lei 9.615/98 representa a primeira opção, a história não nos deixa esquecer que, quando libertos os escravos dos grilhões que os prendiam e passada a ressaca da comemoração, viram-se os negros em uma situação dramática: não haviam empregos disponíveis para os antigos escravos e também não podiam todos retornar para seus "ex-donos", que agora deveriam remunerar seus empregados. Alguns conseguiram retornar para as remotas fazendas e trocar seu trabalho braçal por um prato de comida e por umas poucas moedas. A grande maioria permaneceu perambulando pela rua, mendigando e desempregada. Portanto, apenas a abolição da escravatura não resolveu o problema racial no país, pois se de uma forma alvissareira ocorreu a libertação dos negros, de outra banda não houve qualquer preocupação com inserção na sociedade.

Para os outros que imaginam a segunda opção, também vale lembrar que milhares foram em busca do brilho do ouro nos solos daquela mina, fascinados pela promessa de enriquecimento fácil, feita por espertos, deixando famílias e bens para trás. Aqueles "vivos", que haviam prometido riquezas, utilizaram-se da esperança de milhares, para ganharem muito dinheiro. Daqueles que foram garimpar, poucos retornaram ricos; muitos voltaram sem nada, nem mesmo com esperança.

Desta forma, caso não haja uma real preocupação com o futuro de todos os atletas, craques ou não, a simples liberação do "passe" não trará benefícios algum aos jogadores brasileiros que na sua maioria jogam em médias e pequenas agremiações. Apenas uma minoria de atletas beneficiar-se-ão com essa legislação.

A Lei 9.615/98 está a bater nas portas dos clubes brasileiros. Trás consigo a fome desmedida megas-empresas desportistas alienígenas, sedentas pela escassa matéria-prima de que carecem, tão abundante no Brasil. Invadirão as fronteiras do país sem respeitara nossas paixões clubísticas, e escorados na legislação desportiva tupiniquim tentarão levar os profissionais da bola, sem indenizar com uma moeda sequer, aqueles que investiram milhares delas na formação humana e esportiva dos atletas. Ademais, já respaldados pela lei, apostarão que a Justiça brasileira nada fará para impedi-los, compactuando com esta nova forma de colonialismo e exploração estrangeira. Oremos que isso seja um ledo engano.

Da Justiça, baluarte da humanidade, e utilizando as palavras do advogado Eduardo Machado, estudioso da "Lei Pelé", "se espera que também ela não seja instrumento desse neocolonialismo, bastando para tanto que exija sempre que os clubes estrangeiros quiserem levar nossos craques que não acenem apenas com a necessidade humana de libertá-los de suas raízes o que é puro cinismo - , mas antes indenizem nossos clubes pelo que despenderam na formação do atleta, ao invés de apenas ganharem às suas custas".


5- Notas Conclusivas

A "Lei Pelé", como muitas outras leis brasileiras, é fruto mais da demagogia, das relações de animosidade de alguns e da pequena cultura e intelectualidade de seus elaboradores, do que da preocupação em melhor estruturar o desporto brasileiro e dignificar a profissão desportiva. É pois, uma lei sufocada de inconstitucionalidades, ofendendo a gênese da Carta Magna, como o art. 217 e inúmeros incisos do art. 5°, este último elevado a cláusula pétrea. Tem-se, então uma lei que fere profundamente a Lei maior. Quais delas deve prevalecer? A resposta, sem sombra de dúvida, virá por via jurisprudencial com as decisões e arestos da Corte Suprema brasileira, devendo os jurista do país ficarem atentos ao desempenho que a esse respeito terá o Supremo Tribunal Federal, convertido em guardião constitucional. É ele que deve zelar pela nossa Constituição, impedindo que o legislador autorize as "aves-de-rapinas" de plantão, a sangrarem ainda mais as finanças combalidas de nossos clubes.

À guiza de conclusão, terminamos estes breves comentários com as palavras do mestre Valed Perry (1999, p. 46-47), advogado especialista em Direito Desportivo e estudioso da "Lei Pelé":

"A Carta Magna de 1988 pode ter sido um hino à liberdade e à democracia.

A Carta magna de 1988 pretendeu assegurar a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações.

Mas os legisladores desestruturaram o nosso desporto e destroçaram a Justiça Desportiva, e se esmeraram em impor uma autonomia castrada.

Algum dia esse quadro reverterá".


BIBLIOGRAFIA

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, (org.) Juarez de Oliveira, 16 ed. at e amp, São Paulo: Saraiva, 1999.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho, 12 ed., São Paulo: Saraiva, 1996.

NETO, J. S. de Assis. O Desporto do Direito, 1.º ed., São Paulo: Bestbook, 1998.

PERRY, Valed. Crônica de uma Certa Lei do Desporto, 1 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

Lei N .º 9.615, de 24 de março de 1998.

Decreto N.º 2.574, de 29 de abril de 1998.

Sobre o autor
Mauro Lima Silveira

advogado formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ex-aluno do Curso de Preparação à Magistratura AJURIS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Mauro Lima. Alguns comentários sobre a Lei 9.615/98: A lei Pelé. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. -639, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2178. Acesso em: 21 nov. 2024.

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