Resumo
Esta pesquisa pretende discutir a constitucionalidade da decisão proferida pelo juiz togado na fase do Sumário de Culpa (procedimento do Tribunal do Júri), quando ele absolve sumariamente o acusado. Visa a analisar, portanto, se esta decisão pode ser tomada sem que isso implique invasão à competência do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida. Durante o artigo, serão expostos os caracteres gerais do procedimento do Tribunal do Júri, bem como será analisada a maneira como a doutrina trata o tema, ou seja, se consideram que a decisão é constitucional ou não. A pesquisa concluiu pela constitucionalidade da absolvição sumária no procedimento do Tribunal do Júri, desde que respaldada por fortes argumentos do julgador, baseados nas provas coletadas.
Palavras-chave: Absolvição Sumária. Tribunal do Júri. Constitucionalidade.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho visa a debater a possibilidade de o juiz singular, na fase do Sumário de Culpa do procedimento do Tribunal do Júri absolver sumariamente o réu nos crimes dolosos contra a vida, tendo em vista a competência do Tribunal Popular para exercer tal atribuição. A Constituição da República, em seu artigo 5°, inciso XXXVIII, d[1], estabelece a competência do Júri para julgar aqueles que praticam crimes dolosos contra a vida de outrem. Com efeito, este procedimento é subdivido em duas etapas: a fase instrutória, denominada de Sumário de Culpa e a fase do Tribunal do Júri em si ou fase do Plenário. O presente artigo pretende discutir se a decisão, proferida pelo juízo sumariante, é contrária ou não à precitada competência estabelecida na norma constitucional, uma vez que ele analisa o mérito do fato, algo que só poderia ser realizado pelo Conselho de Sentença.
O principal problema deste trabalho reside em discutir a viabilidade ou não da utilização do instituto da absolvição sumária no procedimento referente aos crimes de competência do Tribunal do Júri. Na fase do sumário de culpa, é cabível, ao julgador, absolver sumariamente o acusado? Assim agindo, estaria invadindo competência estabelecida pela Constituição da República de 1988 para que o Tribunal do Júri julgue os crimes dolosos contra a vida? Em quais hipóteses ou incisos do art. 415 do Código de Processo Penal brasileiro haveria essa possível inconstitucionalidade?
Para responder ao problema formulado, propõe-se, como uma hipótese inicial que se admita a possibilidade dessa absolvição, tendo em vista que o procedimento é dividido em duas etapas e o juízo sumariante realiza uma análise do caso, na qual pode ser vislumbrada tal decisão. Assim, se após a análise inicial do caso, ele perceber “claramente” que as hipóteses estão configuradas, será possível a utilização do instituto, sem que essa decisão afronte a competência do Tribunal do Júri.
2 DO PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI
Neste capítulo, ainda que superficialmente, far-se-á uma exposição acerca das principais características do procedimento do Tribunal do Júri, como uma forma de contextualização do tema a ser abordado.
João Batista Barroso, em artigo referente ao procedimento do Tribunal do Júri, estabelece que:
Trata-se de um órgão colegiado, constituído de um juiz togado (presidente) e de sete juízes leigos (jurados), escolhido por sorteio. O procedimento do Júri é especial e divide-se em duas fases: SUMÁRIO DE CULPA e JUDICIUM CAUSAE. (BARROSO, 2005, p. 1)
Por sua vez, Guilherme de Souza Nucci (2011) diz que o procedimento do Júri é dividido em três fases, a partir da reforma legislativa de 2008:
Após a reforma do capítulo concernente ao júri, torna-se clara a existência de três fases no procedimento. A primeira, denominada de fase de formação da culpa (judicium accusationis), estrutura-se do recebimento da denúncia ou da queixa até a pronúncia (ou outra decisão, proferida em seu lugar, como a absolvição sumária, a impronúncia ou a desclassificação). A segunda fase, denominada de preparação do processo para julgamento em plenário, tem início após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia e segue até o momento de instalação da sessão em plenário do Tribunal do Júri. A terceira, denominada de fase do juízo de mérito (judicium causae), desenvolve-se em plenário, culminando com a sentença condenatória ou absolutória, proferida pelo juiz presidente com base no veredicto dado pelos jurados. (NUCCI, 2011, p. 788)
Nesta medida, pode-se inferir que o julgamento (análise do mérito em si), via de regra, é realizado por jurados (juízes leigos) e que a decisão é apenas ratificada pelo juiz presidente através da sentença, o juízo de mérito é feito pelos jurados. Assim, e na esteira do que foi precitado acerca dos dispositivos constitucionais que lhe instituíram, se fará uma análise, sobretudo do corolário “competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.
Conforme expresso no Código de Processo Penal, a fase do Sumário de Culpa pode ser encerrada de quatro formas: pronúncia, impronúncia, desclassificação, absolvição sumária[2]. Pela especificidade deste trabalho, far-se-á uma análise mais detalhada desta última forma de encerramento do procedimento, tendo em vista a divergência acerca da possível legitimidade do juiz para proferi-la sumariamente.
Não obstante, como forma de evidenciar possível dúvida, pela proximidade de conceitos, segue trecho acerca da distinção entre a absolvição sumária e a impronúncia, proposta por Pedro Paulo Filho:
Na impronúncia, esgota-se o juízo de formação da culpa e a instância do processo penal condenatório, porque inexiste fundamento para a acusação; já na absolvição sumária, encerra-se o processo e a ação penal, vista que a pretensão punitiva estatal é julgada improcedente. (PAULO FILHO, 2000, p. 198)
No capítulo seguinte, far-se-á uma exposição mais detida acerca do instituto da absolvição sumária, bem como das hipóteses em que ela pode ser aplicada, segundo o Código de Processo Penal brasileiro.
3 DA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA
A absolvição sumária é um instituto previsto no Código de Processo Penal brasileiro que visa à extinção do processo, de maneira preliminar, ou seja, há um julgamento de mérito antecipado, favorável ao acusado. Nucci (2011, p. 803), a conceitua como decisão de mérito que coloca fim ao processo, julgando improcedente a pretensão punitiva do Estado. Pedro Paulo Filho (2000), também esclarece que se trata de uma sentença definitiva, porque deslinda e soluciona o mérito da causa.
O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 415[3], as hipóteses em que o julgador poderá absolver sumariamente o acusado. O que se observa é que, com a alteração legislativa ocorrida em 2008, houve ampliação das possibilidades de incidência da absolvição sumária no procedimento do Tribunal do Júri. É perceptível que o referido artigo agora contempla questões de direito, referentes a excludentes de ilicitude ou culpabilidade e questões relativas à inexistência do fato ou mesmo negativa de autoria (Oliveira, 2011).
Eugênio Pacelli de Oliveira, escrevendo sobre a absolvição sumária no Júri, com a mudança advinda na lei, esclarece que:
Parte da doutrina já sustentava a aludida ampliação de competência do Juiz togado, defendendo a tese segundo a qual o juiz deveria também absolver sumariamente o réu quando julgasse suficientemente provada a inexistência do fato ou quando provado ter sido outro o autor do crime. Agora o entendimento consta da lei. E continuamos à margem dele. (OLIVEIRA, 2011, p. 708)
Assim, o que se pretende nos capítulos seguintes é trazer à discussão argumentos da doutrina e jurisprudência favoráveis e contrários à possibilidade da absolvição sumária no Júri, bem como oferecer algumas considerações finais sobre o tema estudado.
4 DA POSSIBILIDADE DA ABSOLVIÇÃO
O que se pretende discutir neste tópico são argumentos e linhas de raciocínio que apontam para a constitucionalidade ou possibilidade constitucional de se que se tenha em um procedimento de competência do Tribunal do Júri absolvição sumária, desde que preenchidos os seus requisitos.
Neste sentido, entendendo pela possibilidade da absolvição sumária neste procedimento penal, escreve Nucci:
A possibilidade de o magistrado togado evitar que o processo seja julgado pelo Tribunal Popular está de acordo com o espírito da Constituição, visto ser a função dos jurados a análise de crimes contra a vida. Significa que a inexistência de delito faz cessar, incontinenti, a competência do júri. Estando o juiz convencido, com segurança, desde logo, da licitude da conduta do réu, da falta de culpabilidade ou da inexistência do fato ou de prova de autoria, não já razão para determinar que o julgamento seja realizado pelo Tribunal Popular. Não fosse assim e a instrução realizada em juízo seria totalmente despicienda. Se existe, é para ser aproveitada, cabendo, pois, ao magistrado togado aplicar o filtro que falta ao juiz leigo, remetendo ao júri apenas o que for, por dúvida intransponível, um crime doloso contra a vida (NUCCI, 2011, p. 804).
Assim, Nucci entende que o instituto pode ser utilizado na fase do Sumário de Culpa, porém reforça a ideia de que deve haver um convencimento alcançado com segurança pelo julgador, para que não se invada a competência do Conselho de Sentença.
Da mesma forma, está a orientação de Pedro Paulo Filho, em texto escrito anteriormente à modificação ocorrida na lei processual penal:
A questão da inconstitucionalidade do art. 411 do CPP está absolutamente superada com a decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu não haver afronta do dispositivo legal com o texto constitucional que atribuiu ao Júri a competência para julgar os crimes conta a vida (STF, Agr. 159.303, rel. Min. Celso de Mello, j. 15/05/95). (PAULO FILHO, 2000, p. 202).
Neste trecho, percebe-se que Paulo Filho (2000) utiliza uma decisão do SFT, para corroborar seu entendimento de que a decisão tomada pelo juiz sumariante não invade a competência do Júri para análise do mérito nos casos dos crimes dolosos contra a vida. Logo em seguida, o autor argumenta que ocorrendo quaisquer das hipóteses autorizativas do Código de Processo Penal, deve o juiz togado decidir pela absolvição sumária, pois nestas circunstâncias não haverá motivo para deixar a solução para o Conselho de Sentença.
Da mesma forma, é o entendimento de Rogério Sanches e Ronaldo Batista Pinto, os quais ainda fazem a ressalva do caráter excepcional do instituto, que deve ser utilizado nos casos em que não houver dúvida acerca das questões, pois caso contrário, deve ser acolhido o princípio in dubio pro societate, nesta fase do procedimento do Tribunal do Júri (no Sumário de Culpa):
A absolvição sumária se caracteriza pela excepcionalidade importando em exceção ao princípio geral que impõe ao Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, deve ser reservada para os casos em que a excludente de ilicitude (justificativas) ou de culpabilidade (dirimentes) restarem absolutamente demonstradas. Caso reste alguma dúvida, ela deve ser resolvida em favor da competência do Júri, de índole constitucional e, portanto, cabe ao juiz a pronúncia do réu. (CUNHA; PINTO, 2009, p. 153)
Pelo acima exposto, é possível apontar que grande parte da doutrina entende ser possível a absolvição sumária pelo juiz togado, desde que não reste dúvida sobre as razões que possibilitaram a convicção do julgador.
5 DA IMPOSSIBILIDADE OU INCONSTITUCIONALIDADE DA ABSOLVIÇÃO
O que se discute de primordial neste item é a possível interferência da decisão do juízo sumariante, que absolve de maneira antecipada o acusado, quando esta análise deveria ser reservada ao Conselho de Sentença por determinação constitucional. A decisão do juiz togado vai de encontro à exclusividade estabelecida pela CR/88 acerca da competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida?
Acerca da discussão, Eugênio Pacelli de Oliveira expõe os motivos pelos quais entende que, para a análise da constitucionalidade do tema, deve ser feita a divisão em hipóteses de matéria de fato e hipóteses de matéria de direito:
A razão é muito simples: a absolvição sumária é medida excepcional e, tendo em vista que, em princípio, cabe ao Tribunal do Júri a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Não porque queiramos, mas porque consta do texto constitucional.
Relembre-se que a matéria relativa às excludentes de ilicitude e de culpabilidade, que eram hipóteses de absolvição sumária antes da nova legislação, abrange questões verdadeiramente de direito, justificando-se plenamente a retirada de seu conhecimento ao tribunal do júri, desde logo.
Já os aspectos acerca da inexistência do fato e da prova da não-autoria ultrapassam, e muito, a fronteira do Direito, implicando julgamento de matéria unicamente de fato, e, por isso, suprimindo a competência do Tribunal do Júri.
Como já nos manifestamos, não nos agrada a instituição de qualquer julgamento sem a respectiva motivação, como ocorre com o Tribunal do Júri. No entanto, essa foi uma opção constitucional. Assim, quando se permite que o juiz togado absolva o réu ao entendimento de não ser ele o autor do fato, ou, mais que isso, de estar provado não ser ele o autor do fato, e também, por estar provada a inexistência do fato, está sendo subtraída a competência do Tribunal do Júri em relação à matéria que melhor lhe assenta: a matéria de fato.
[...]
Do ponto de vista pessoal, da preferência teórica de cada um, a tese pode até se justificar e a ela podemos até aderir. Mas, como interpretação da norma constitucional atributiva da competência do júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não!
Ainda que, na prática, os juízes não se utilizem dos aludidos dispositivos para a absolvição sumária, não se pode deixar de apontar a inconstitucionalidade das alterações, especificamente aquelas trazidas no art. 415, I e II, do CPP. (OLIVEIRA, 2011, p. 708 e 709)
Assim, referido autor entende que, se analisado à luz das questões de fato expostas no art. 415 do CPP, o juiz não tem competência para julgamento, pois tal competência é específica do Tribunal do Júri. Desta forma, ele não admite como constitucionais as alterações trazidas pela reforma infraconstitucional, concernentes a materialidade e autoria do fato doloso contra a vida.
6 CONCLUSÃO
Ante a pesquisa desenvolvida, podem ser ofertadas à crítica as seguintes considerações finais.
1. Não obstante restar evidenciado que a absolvição sumária é uma decisão que julga o mérito, entendemos que o juiz sumariante possui legitimidade para proferi-la.
2. Mesmo sendo uma decisão que adentra ao mérito de maneira antecipada, admitimos que ela não afronta o princípio constitucional que confere ao Tribunal do Júri a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
3. Entendemos que não há invasão da competência dos jurados, na medida em que o juiz togado é responsável pela instrução processual na fase do Sumário de Culpa e se restarem comprovadas as hipóteses do art. 415 do CPP, ele poderá absolver sumariamente o acusado, sem que isso implique inconstitucionalidade.
4. Para tal decisão, faz-se imprescindível uma forte demonstração das hipóteses pelas provas coletadas. Da mesma forma deve haver, por parte do magistrado, ampla fundamentação acerca das razões que possibilitaram seu convencimento. Havendo qualquer dúvida, não pode ele optar pela aplicação deste instituto, sob pena de agir em desconformidade com o texto da legislação infraconstitucional.
5. Por fim, admitimos que a decisão pela absolvição deve ser encarada como hipótese excepcional a ser aplicada de acordo com o item anterior, pois a competência originária para julgamento dos crimes dolosos contra é estabelecida pela Constituição da República de 1988 para o Tribunal do Júri (leia-se Conselho de Sentença ou Tribunal Popular).
REFERÊNCIAS
BARROSO, João Batista. Tribunal do Júri. Publicado em 21/09/2005. Disponível em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20050921154738162&mode=print Acesso em 17/04/2012
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado. 1988.
BRASIL, Código Penal (1940). Código Penal. In: GOMES, Luiz Flávio. RT Mini Códigos. 13 ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2011. p. 221-344.
BRASIL, Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. In: GOMES, Luiz Flávio. RT Mini Códigos. 13 ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2011. p. 344-477.
COSTA, Eduardo Ferreira. A nova Reforma do Código de Processo Penal: absolvição sumária e recurso de ofício na Lei nº 11.689, de 2008 hhtp://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/0152009.pdf Acesso em 29/02/2012.
CUNHA, Rogério Sanches ; PINTO, Ronaldo Batista. Processo Penal: doutrina e prática. São Paulo: jusPodivum. 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
PAULO FILHO, Pedro. Absolvição sumária nos crimes dolosos contra a vida. São Paulo: LED, 2000.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
TEIXEIRA, Eduardo José Garrido. O julgamento antecipado da lide no tribunal do júri. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2819, 21 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18721>. Acesso em: 28 fev. 2012.
Notas
[1] Art. 5° [...]
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
(Grifo nosso).
[2] Acerca das características de cada uma dessas decisões, conferir os artigos 413, 414, 419 e 415 do Código de Processo Penal, respectivamente.
[3] Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:
I – provada a inexistência do fato;
II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato
III – o fato não constituir infração penal
IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.