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Meio ambiente laboral futebolístico e responsabilidade civil

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Agenda 04/06/2012 às 14:15

Abordaremos apenas alguns aspectos da temática da responsabilidade civil e suas implicações junto ao complexo mundo do atleta de futebol.

1. INTRODUÇÃO

O mundo do atleta de futebol – geralmente tratado, no senso comum, com um ar fantasioso, recheado de noções ligadas à fama e ao dinheiro – contém uma dimensão pouco refletida: sua específica facetalaborativa.

Uma vez que detentora de uma estruturação fático-jurídica extremamente peculiar, as poucas tentativas de aproximação científica praticadas em direção ao contexto laboral futebolístico acabam por ser enormemente dificultadas. Mas essa missão se torna bem mais espinhosa quando o ponto de vista do intérprete volta-se à rica teoria da reparação de danos.

Neste breve texto, ousaremos dar alguns passos nesse terreno assaz pantanoso. Para tanto, abordaremosapenas alguns aspectos da temática da responsabilidade civil e suas implicações junto ao complexo mundo do atleta de futebol.

Desde logo fica o alerta: o objetivo do escrito não se volta aoferecer respostas prontas e acabadas. O escopo de qualquer incursão científica, que busca entrecruzar teoria e prática, sempre será uma empreitada marcada, ao mesmo tempo, pela ousadia e cautela, pela ânsia de compreender e pela humildade de respeitar. Eis o espírito que norteou este breve arrazoado, do início ao fim.

Cuida-se, aqui, portanto e por ora, de um punhado de pequenas reflexões, a merecer prosseguimento investigatório, lançando luz sobre um tão específico e muitas vezes negligenciado campo da vivência juslaboral.


2. NECESSÁRIO ALICERCE TEÓRICO: MEIO AMBIENTE LABORAL FUTEBOLÍSTICO E PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA ENQUANTO ATLETA DE FUTEBOL

Permitimo-nos alinhavar, adiante, mesmo que rapidamente, algo do que forma o alicerce teórico deste estudo, a fim de conferir maior inteligibilidade às colocações que se seguem e maior cientificidade às singelas reflexões que almejamos ofertar.

2.1. Rede Protetiva Geral: Aproximando-se da Esplendorosa Axiologia Constitucional

A Constituição Federal fixou como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), tendo como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos (CF, art. 3º, IV), ficando garantido, também a todos, o direito à igualdade e à segurança (CF, art. 5º, caput), firmando-se, no plano juslaboral, um valioso fomento à ampliação de uma rede protetiva cada vez mais intensa e garantidora da dignidade humana do trabalhador (CF, art. 7º, caput), resguardando-se também a todos os trabalhadores – inclusive quando atleta de futebol – o direito de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (CF, art. 7º, XXII).

Nosso ordenamento jurídico exige ainda que tanto a propriedade quanto o contrato atinjam sua função social[1]. Noutras palavras: o empregador–mesmo sendo entidade de prática desportiva–,seja na dimensão jurídico-patrimonial de seus bens, seja na dimensão jurídico-contratual de seus trabalhadores, precisa se realizar, como pessoa jurídica, no cotidiano, dentro das asas da “livre iniciativa”, todavia vinculado ao desiderato maior de, em última instância, sempre prestar homenagem à dignidade humana e aos demais princípios substanciais incrustrados no bojo constitucional. No fundo mesmo, a verdade é que a iniciativa empresarial nada tem de “livre”, à vista da sua necessária adstrição à função social que a Constituição se lhe impõe.

Não sem razão nossa Constituição Federal, ao elencar os fundamentos da República Federativa do Brasil, também aponta como tal “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (CF, artigo 1º, IV). Perceba-se, por oportuno, que, pela clara dicção do texto constitucional, nem o “trabalho” e nem a “livre iniciativa”, em si mesmos considerados, constituem fundamento da República Federativa do Brasil, mas, isto sim, a expressão social desses fenômenos, a sua incontornável conformação axiológica aos ditames constitucionais, ou seja, se e somente se densificados na realidade prática enquanto elementos que se harmonizem para a construção de uma sociedade cada vez mais livre, justa e solidária (CF, artigo 3º, I), com a promoção do bem de todos (CF, artigo 3º, IV).

2.2. Rede Protetiva da Pessoa Humana: Confrontando Papéis Sociais

Cogitemos de estar emum belo sábado, ocasião em que determinada pessoa dirige-se ao supermercado, assumindo, ipso facto, de modo preponderante, o papel social de consumidor. Enquanto tal, usufrui, no campo da teoria da reparação de danos, de toda uma prodigiosa rede protetiva que lhe reserva a possibilidade de buscar reparações sem qualquer necessidade de demonstrar culpa por parte do lesionante, ou seja, é de ordem objetiva. Não é só: havendo mais de um ofensor, a responsabilidade que se impõe a cada qual é compartilhada e direta, ou seja, é de matiz solidário[2].

Estamos, agora, no domingo, quando a mesma pessoa dirige-se ao estádio de futebol, assumindo, precipuamente, o papel social de torcedor[3]. Nesse cenário, na mesma esteira do que ocorre quando compra um liquidificador ou um sanduíche, passa a gozar de uma rede protetiva que garante ressarcimento que prescinde de prova do elemento culpa (objetiva) e engloba, em uma inarredável responsabilidade solidária, todos aqueles que concorreram para uma eventual lesão que venha a sofrer (Lei n° 10.671/2003, art. 39-B).

Invadimos, neste momento, a temida segunda-feira, quando o mesmo cidadão então se desloca ao seu local de trabalho – o mesmíssimo supermercado que visitou no sábado. Agora, investindo-se, preponderantemente, do papel social de trabalhador, tem para si, segundo a exegese que tradicionalmente se faz do ordenamento jurídico, uma responsabilidade civil subjetiva (CF, art. 7º, XXVIII[4]), a demandarinequívoca prova do fator culpa, resguardando, em face daqueles que se agregam para lhe causar dano, uma responsabilidade meramente subsidiária[5].

Ora, chega mesmo a ser gritante a discrepância de tratamento que o sistema jurídico confere à pessoa humana, a depender do papel social em que preponderantemente está investida.Causa espécie a falta de razoabilidade das conclusões que brotam de um tal cenário jurídico, onde a pessoa humana consumidora e torcedora é mais valorizada que a pessoa humana trabalhadora. Noutras palavras: não se pode aceitar a fixação de um modelo de sociedade em que o homem que vai ao supermercado e ao estádio de futebol goza de maior proteção social que aquele que está no trabalho.Aqui, a nosso sentir, sucede franca violação do postulado constitucional da igualdade material (CF, art. 3º, IV, e art. 5º, caput).

Registre-se, por oportuno, que quando o texto constitucional fala no bem de todos, não abarca apenas a noção comum, presa a uma ótica meramente quantitativa, alusiva à necessidade de que tal benesse abarque o maior número de pessoas. É preciso ir além, injetando na expressão “bem de todos” o máximo de eficácia existenciale socialque sua dicção permitir, de modo a legitimar a conclusão de que esse bem deve alcançar a integralidade da mesma pessoa, seja em face de toda a sua especial conformação psicossomática (corpo, alma e espírito), seja em face de todos os papéis sociais que lograr assumir em sua complexa trajetória de vida (pai, filho, trabalhador, contratante, eleitor, consumidor, torcedor etc.).

2.3. A Permanente Construção de uma Específica Rede Protetiva Destinada a Tutelar a Dignidade Humana do Trabalhador no Âmbito da Teoria da Responsabilidade Civil

Muito embora seja comum se afirmar que, no particular da responsabilidade civil patronal, há de incidir a responsabilidade subjetiva, por força do que dispõe o artigo 7º, inciso XXVIII, da Carta da República, é preciso lembrar, também, que no caput desse mesmo dispositivo está consagrada, em semelhante nível constitucional, a cláusula devedação de retrocesso quanto às condições sociais do trabalhador, quando reza serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais aqueles ali relacionados, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Na verdade – é bom que se diga –, o que pretendeu mesmo o legislador constituinte não foi simplesmente fixar uma cláusula de não retrocesso social, como corriqueiramente divulgado nos sítios doutrinários. In vero, foi bem mais além, na medida em que tencionou mesmo foi prescrever, em termos mais precisos, uma cláusula de crescente avanço social, como expressão de algo maior, qual seja, a cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana (CF, artigos 1º, inciso III, e 5º, § 2º)[6].

Destarte, o que se deduz é que nossas disposições constitucionais, quando consideradas com mais vagar, revelam-nos um estupendo estímulo a produções jurídicas que se prestem a dar contínua concretude ao comando de seelevar, cada vez mais, ao longo do tempo, a condição social do cidadão trabalhador, enquanto expressão de tutela da sua dignidade humana (CF, artigo 1º, III) e dos valores sociais do trabalho (CF, artigo 1º, IV, artigo 5º, caput, artigo 6º, caput, artigo 170, caput e artigo 193).

O artigo 7º, caput, in fine, da Carta da República, representa tão-somente a expressão específica de um comando muito maior, também expressamentevisualizadona CartaConstitucional. É algo como uma cláusula particular defomento ao contínuo processo de avanço das condições sociais de vida da classe obreira. E onde estaria a cláusula geral? Está situada no artigo 5º, § 2º, da Lex Legum, assim vazado: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifamos).Portanto, ambas incorporam notáveis cláusulas jurídicas que impelem a continuidade desse interessante fluxo normativo tendente à contínua proteção do trabalhador.

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Logo, incorrem em gravíssimo equívoco aqueles que se abraçam, de olhos fechados, à gramaticalidade do texto constitucional, para afirmar que a fixação da responsabilidade subjetiva do empregador aos casos de danos causados aos trabalhadores em geral representaria uma incontornável diretriz restritiva imposta pelo legislador constituinte, de modo a frustrar qualquer intenção em se aplicar, a favor da classe obreira, uma responsabilidade civil de ordem objetiva[7].

Pois bem. Diante da influência desse vetor, que almeja densificar, no máximo de sua potencialidade, a dignidade da pessoa humana do trabalhador, podemos concluir que, por exemplo, no caso de acidentes de trabalho, a regra seria a incidência da responsabilidade civil subjetiva, todavia, caso o empregador desempenhe atividade que induza risco diferenciado a desfavor do obreiro, incidirá a responsabilidade objetiva, mercê do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil[8], medida que se impõe como mais um fator de melhoria da condição social do obreiro, exatamente como propugnou a Constituição Federal na cabeça de seu artigo 7º.

Deveras, estamos mesmo convencidos que o Código Civil de 2002, ao estatuir uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade (artigo 927, parágrafo único), trouxe ao cenário jurídico uma disposição altamente útil para esse desiderato de aprimorar a condição social do trabalhador, já que no mundo hodierno há diversas atividades empresariais cuja execução implica natural indução do obreiro a riscos mais acentuados que aqueles suportados pelos demais membros da sociedade.

Noutras palavras: ao garantir a plena reparabilidade dos danos ocasionados aos obreiros, decorrentes do risco que sua dinâmica laborativa lhes impõe, por certo esse dispositivo cível se encaixa como uma luva no anseio constitucional de contínuo fomento à melhoria da condição social do trabalhador. Há, portanto, uma íntima conexão técnico-axiológica entre o artigo 7º, caput, da Carta da República, e o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, claramente lavrada na ambiência do paradigma contemporâneo da responsabilidade civil, que tem seguido na linha de se buscar ao máximo a plena reparação da vítima de danos injustos[9].

Há mais: em se partindo da perspectiva aqui defendida, também se descortina a possibilidade de refletir a incidência da responsabilidade civil objetiva, em prol da proteção da pessoa humana do trabalhador, quando se estiver diante de eventos danosos de cunho ambiental. 

Perceba-se, a propósito, que está inequivocamente sedimentado no âmbito do direito brasileiro que o meio ambiente laboral constitui relevante dimensão do meio ambiente em geral, fato que decorre do próprio texto da Carta Magna (CF, art. 200, VIII[10]) e que já ecoa altissonante na mais abalizada doutrina jurídica ambiental[11], bem assim na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal[12]. Por consequência, em determinadas ocasiões todo o plexo tuitivo afeto ao Direito Ambiental também há de ser canalizado, com seu intenso vigor normativo, perante os domínios do Direito do Trabalho, o que inclui, por certo, a responsabilidade objetiva e solidária que dele naturalmente floresce[13].

No caso em tela, a própria prática do futebol, reconhecidamente um esporte que exige elevado esforço muscular e constante contato físico com o adversário, é atividade cujos riscos implicados são mesmo patentes, na medida em que facilitadora, por exemplo, de lesões e fraturas[14]. Além disso, a natural exposição ao público torcedor também é elemento potencializador de riscos, o que é algo até certo ponto natural quando se está diante de grandes aglomerados de pessoas.Não há dúvidas, portanto, que sua atuação futebolística o insere em uma especial condição de risco, bem superior àquela que rodeia o cidadão comum[15].

Como gizamos alhures, o trabalhador, segundo expresso comando constitucional, tem o direito à redução dos riscos inerentes ao seu trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (CF, art. 7º, XXII), sendo essa uma diretriz que invariavelmente também há de beneficiar aquele específico trabalhador que desempenha suas atividades no seio futebolístico.

Logo, quando um clube de futebol propicia, voluntária ou involuntariamente, o surgimento ou a continuidade de uma prática ou de um ambiente que produz riscos acentuados à saúde física e mental do atleta de futebol, com malferimento de sua dignidade humana, a estruturação jurídica advinda desse pacto de trabalho deixa de cumprir sua incontornável finalidade social, desbordando das balizas ético-sociais que lhe foram constitucionalmente impostas, seja por ofensa direta à dignidade dessa específica modalidade de trabalhador, seja por ofensa indireta à própria sociedade, que, ali, naquele “microcosmos” fático-social, vê frustrado o intento constitucional de garantir o bem de todos.


3.RÁPIDA INCURSÃO PRÁTICA: DANOS À SAÚDE FÍSICA E MENTAL DO ATLETA DE FUTEBOL – ALGUMAS SITUAÇÕES-TIPO

Constitui tarefa impossível esgotar as hipóteses em que podem ocorrer possíveis danos à figura do atleta de futebol, enquanto pessoa humana trabalhadora. Servimo-nos, então, a partir de agora, de alguns casos mais emblemáticos e que certamente suscitam enorme desafio às reflexões do jurista preocupado com a reparação de danos na seara futebolística. Vejamos.

3.1. Assédio Moral: Jogadores, Comissão Técnica, Dirigentes, Crônica Esportiva, Patrocinadores, Ostracismo e Torcida

O assédio moral é figura reconhecidamente multidimensional. Cuida-se de fenômeno altamente complexo e que se realiza de diferentes maneiras.

Infelizmente, a figura do assédio moral é muito comum no campo futebolístico.

Não raro se ouve falar do assédio de determinados jogadores em relação ao técnico, regra geral materializado pelo insistente “corpo mole” expressado em campo, no velado objetivo de, pela sequência de resultados insatisfatórios, proporcionar a demissão do líder do escrete. Esse instrumento de afetação da dignidade humana também sói acontecer através de um único jogador, seja pela sua capacidade de agregação, seja pelo seu nome e fama. Cuida-se de genuíno assédio moral vertical ascendente.

Também é comum o assédio do técnico em relação a um ou mais jogadores, deixando-os fora da escalação da equipe titular ou mesmo do próprio banco de reservas, por motivos alheios à qualidade futebolística.Acontece ainda de serem lançados a um injustificado treinamento ou preparo físico totalmente à parte do grupo, inclusive em local diverso daquele em que costumeiramente se reúnem,em circunstâncias claramente reveladoras de imposição de umadesocupação sistemática e arbitrária, com sérios prejuízos à dignidade humana e à carreira do atleta[16].

A realidade demonstraque essa péssima ocorrência, aliada a duras e contundentes cobranças,pode também advir da Diretoria do clube empregador. Logo em seguida a alguma derrota da equipe frente a um jogo relevante,já é mesmo notória a reunião que se segue nos vestiários, “a portas fechadas” edirigidaquase sempre pelo seu Presidente, cujo conteúdo, comenta-se, seriaexageradamente ríspido, confrontador e humilhante.

O assédio pode decorrer também da própriacrônica esportiva, que, a depender do grau de penetração de mídia e influência política na Diretoria do Clube, pode certamente perseguir determinado profissional pertencente ao elenco.

O mesmo pode ocorrer no que concerne à própria torcida, notadamente as torcidas organizadas, cujo envolvimento com a Diretoria do Clube podemcertamente redundar na mesma tática de perseguição e assédio. Não raro, os próprios membros da Diretoria do Clube autorizam que integrantes de torcidas organizadas ingressem no campo de treinamento com vistas a fazer cobranças de melhores resultados, inclusive buscando fazer influência na própria escalação do time.

É possível ir mais longe. Ouve-se, aqui e acolá, acerca da enorme influência alcançada pelos próprios patrocinadorese empresários, que, investindo alto no grupo ou mesmo que apenas em determinado atleta, lançam mão de influenciar na silhueta tática da equipe e no grupo que comporá a escalação titular, de modo a favorecer aos seus exclusivos interesses comerciais.

Cuida-se, nessas últimas situações, de genuíno assédio moral vertical descendente.

Igualmente, sucede de ocorrer problemas entre os próprios jogadores, de modo a decidirem isolar, por completo, do ambiente coletivo da equipe, um ou alguns de seus integrantes. Cuida-se, já aqui, de típico caso de assédio moral horizontal[17].

3.2. Assédio Sexual: Categorias de Base, Confinamento e Escalação

Quanto ao assédio sexual, infelizmente também é fator muito presente no meio ambiente laboral futebolístico, principalmente nas categorias de base. Há denúncias dando conta de que o ambiente de alguns alojamentos e departamentos futebolísticos seria marcado pelo abuso em face de crianças e adolescentes, debaixo de simples promessas de fornecimento de alimentação, vale-transporte ou mesmo materiais esportivos, como chuteiras, luvas e uniforme. Esse é um combate extremamente difícil, haja vista as notórias dificuldades em se controlar tal tipo de agrupamento humano, aliado ao eloquente silêncio que expressa o medo em fazer a denúncia. Trata-se, aqui, de um aspecto que mereceria especial atenção por parte do Ministério Público do Trabalho.

O mesmo assédio sexual se potencializarianos constantes lapsos de tempo reservados à concentração, quando as dimensões física e emocional, em tese,deveriam ser inteiramente resguardadas e aplicadas na busca do êxito da equipe frente a determinado jogo ou torneio[18]. Registre-se, ademais, que o assédio sexual também pode ser fator de contundente influência na própria escalação da equipe, com prejuízo aos aspectos técnico e ético do certame, com franca violação da dignidade humana do atleta de futebol.

3.3.Preparo Físico Extenuante

Tem sido cada vez mais frequente a queixa de determinados jogadores quanto a um invocado excesso de exercícios impostos pelo preparador físico do Clube, gerando um grau de extenuação muscular altamente facilitador de lesões. Tal situação se agrava na medida em que sobre os atletas recai um grau de subordinação bem mais forte que aquele existente junto aos trabalhadores em geral[19], o que favorece uma mais fácil submissão a procedimentos físicos perigosamente exaurientes.

Efetivamente, impõe-se aos empregadores futebolísticos que atentem para uma programação de exercícios físicos adequada ao perfil psicossomático de cada atleta e dentro dos parâmetros clínicos consentâneos com as peculiaridades de organismo reservadas a cada qual.

3.4.Calendário Desportivo Desumano

Por vezes, esse incremento de ocorrência de lesões musculares chega a um grau tão elevado que não soa absurdo atribuir tão preocupante circunstância à frenética sequência de jogos a que muitos jogadores são submetidos, participando simultaneamente de diversos campeonatos, em algumas oportunidades até mesmo entrando em campo três vezes por semana.

A falta de razoabilidade na elaboração das tabelas de jogos também é circunstância que deveria merecer intensa fiscalização por parte das autoridades públicas e sindicais, à vista da necessidade de se garantir que a prática futebolística não engendre danos à vida e à saúde dos atletas.

3.5.Condições Climáticas Desfavoráveis: Temperatura e Altitude Ambientais

Questão que precisa ser igualmente avaliada concerne aos horários dos jogos. Em Belém do Pará, onde o calor é intenso, é mesmo comum a prática de jogos em pleno sol de meio dia, sob uma temperatura que pode suplantar os insuportáveis 40° graus, sujeitando a saúde do atleta de futebol a um risco desnecessário – expediente não raro praticado por força de interesse patronal exclusivamente financeiro, consistente na economiade valores pela não utilização dos holofotes do estádio. O mesmo problema ocorre com a prática do futebol em um ambiente reconhecidamente gélido, como se dá em partes da Europa.

Decerto, eventuais prejuízos decorrentes de uma tal opção de momento e horário de jogo devem ser ressarcidos perante o organizador do evento, e, solidariamente, também perante o clube de futebol, como empregador que anuiu com a realização de uma partida em condições climáticas notoriamentedesfavoráveis[20].

Recorde-se, aqui, também, a interessante questão ligada à saúde e segurança do trabalhador atleta de futebol, consistente em buscar o reconhecimento de que jogos em elevadasaltitudes podem acarretar sérios prejuízos ao equilíbrio corporal e à própria vida do atleta.

Questiona-se, por conta de tudo isso e muito mais, se, para além da reparação civil por danos, no campo repressivo individual, também não seria lícito, no campo preventivo coletivo, o fomento a investidas do ente sindical ou do Ministério Público do Trabalho com vistas a coibir determinados abusos lesivos à saúde dos atletas de futebol, realizando, quem sabe, um frequente controle do programa de exercícios físicos impostos a cada jogador ou mesmo propondo um calendário desportivo anual de perfil mais humano, alcançando ainda, no aspecto internacional, quanto ao Ministério Público do Trabalho, vedação expressa de jogos em localidades onde o nível de altitude alcance níveis arriscados para a saúde humana.

3.6. Torcida Organizada: Amor e Ódio

É preciso refletir, ainda, sobre os casos em que os danos perpetrados em face do atleta são praticados, por exemplo, pela própria torcida.

Embora, a rigor, das arquibancadas sempre se espere o necessário estímulo e incentivo para a boa prática futebolística, contribuindo para o êxito da equipe, tem sido fenômeno cada vez mais constante brotar dessa “apaixonada” torcida exatamente o contrário: ódio, rancor e ira, materializados, muitas vezes, em agressões físicas e verbais para com os atletas, imersos em pleno exercício de sua atividade laborativa. Tais fatos podem ocorrernão apenas no local do evento esportivo, podendo ser praticados, também, em suas imediações, no trajeto de ida e volta ou mesmo no local de treinamento.

Aqui, é preciso distinguir as situações, perquirindo se a lesão fora ou não praticada por torcida organizada.

Segundo a lei, considera-se torcida organizada a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade (Lei n° 10.671/2003 [Estatuto do Torcedor], art. 2°-A – incluído pela Lei nº 12.299/2010).

De acordocom o legislador, a torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 3 (três) anos (Lei n° 10.671/2003, art. 39-A – incluído pela Lei nº 12.299/2010), respondendo civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento (Lei n° 10.671/2003, art. 39-B – incluído pela Lei nº 12.299/2010).

Tratando-se, portanto, de dano praticado por integrantes de torcidas organizadas – formalmente constituídas ou não –, sua responsabilidade se impõe independentemente de apuração de qualquer culpa, o que, certamente, inclui prejuízos praticados em face dos atletas profissionais de futebol. Mas não é só: impõe-se também reconhecer às agremiações esportivas responsabilidade objetiva por danos causados a terceiros pelas torcidas organizadas, agindo nessa qualidade, quando, de qualquer modo, as financiem ou custeiem, direta ou indiretamente, total ou parcialmente[21].

Quanto ao torcedorem geral, a preocupação com a prevenção e repressão aos fenômenos da violência por ocasião de competições desportivas exigiu do legislador o estabelecimento de um extenso rol de condições de seu acesso e permanência no recinto desportivo, incluindo, dentre outros comandos semelhantemente relevantes: não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência; não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo; não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos; não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo; não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza; bem como não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores (Lei n° 10.671/2003, art. 13-A – incluído pela Lei nº 12.299/2010).

Vale pontuar que, muito embora tais disposições, em tese, sejam voltadas, pelo menos segundo a dicção da lei, à proteção do torcedor, é seguro afirmar que, na esteira do plexo teórico já destacado anteriormente – cujo nascedouro, reafirmamos, está na própria Constituição Federal –, a ratioda legislaçãoiniludivelmente está centrada na proteção da integridade física e psíquica de todo aquele que se encontra envolto na ambiência do recinto desportivo, o que inclui, pelo menos no que respeita ao futebol, não só os torcedores, mas também os comentaristas, os radialistas, os gandulas, os árbitros e, por óbvio, os próprios jogadores. Enfim, o objetivo da lei não está em proteger o torcedor, mas sim em proteger a pessoa humana inserta no ambiente desportivo, cuja dignidade ostenta o valioso posto de fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1°, III).

Logo, por exemplo, se a torcida, em geral, entoar cânticos racistas em relação a determinado jogador, mesmo que não se podendo apontar se tratar de ato praticado ou insuflado por torcida organizada ou por qualquer torcedor em específico, ainda assim não pode haver dúvidas de que faz jus o atleta vitimado, na órbita da seara cível, a buscar a respectiva indenização pelo abalo de ordem moral que possivelmente tenha sofrido (Lei n° 10.671/2003, art. 13-A, parágrafo único – incluído pela Lei nº 12.299/2010[22]),

Isso se dá porque a tendência contemporânea da responsabilidade civil – reiteramos – está centrada na cada vez mais crescente ênfase na pessoa da vítima, e sua justa reparação, em detrimento da clássica ênfase na pessoa do ofensor, e sua reprovável conduta[23]. Logo, o fato de não se poder apontar, individualmente, o praticante da ofensa, não pode servir de justificativa para deixar sem ressarcimento a vítima de dano injusto[24].

Portanto, não sendo o caso de lesão praticada por torcida organizada, mas sim por um conglomerado de pessoas ou de grupo não identificáveis, pensamos que, para não se impor dano injusto à vítima, deveria responder pela reparação, independentemente de culpa, a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, por aplicação do art. 14, parte inicial[25],e art. 19[26], ambos da Lei n° 10.671/2003. Além disso, é possível defender também a responsabilidade solidária da entidade responsável pela organização da competição, legalmente equiparada a fornecedor, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, como expressamente pontuado pelo art. 3º da Lei n° 10.671/2003[27]. Cuidar-se-ia de uma proteção ancorada em uma espécie de responsabilidade pressuposta[28],com evidentepresunção de causalidade[29].

Certamente que o ajuizamento desse tipo de ação deveria ocorrer nos sítios da Justiça do Trabalho. Perceba-se, a propósito, que o artigo 114, inciso I, da Carta Magna, com a redação impressa pela EC 45/04, já não mais restringe os limites competenciais da Justiça Especializada Obreira a um debate que necessariamente deva envolver os dois principais atores da relação de emprego (“trabalhadores e empregadores”), como sempre firmara a tradição constitucional brasileira (foco nos integrantes da relação jurídica – matiz subjetivo), mas, de forma bem mais ampla, exige agora que tais ações sejam simplesmente “oriundas da relação de trabalho”, sem qualquer restrição, pois, quanto aos sujeitos envolvidos (foco na natureza da relação jurídica – matiz objetivo)[30].

Ora, o atleta que, na ambiência do recinto esportivo, sofre mordaz e inequívoca manifestação racista ou discriminatória, provinda da torcida presente ao estádio, faz jus a uma reparação por dano moral[31], haja vista o contido no art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, e artigos 186 e 927, ambos do Código Civil, sendo certo que, na medida em que praticada no contexto de sua função laborativa, a respectiva ação indenizatória há de ser processada e julgada perante a Justiça Federal Especializada do Trabalho, mercê do quanto dispõe o art. 114, I, da Constituição Federal[32].

Logo, por conta de todo o exposto, impor-se-ia reconhecer a favor do ser humano atleta de futebol uma proteção pelo menos similar àquela reservada ao ser humano torcedor, que, segundo a lei, tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas (Lei n° 10.671/2003, art. 13), logrando usufruir máxima reparabilidade de seus danos,na medida em que, equiparado a consumidor, tal reparação está lastreada em uma invejável responsabilidade de cunho objetivo (Lei n° 9.615/1998, art. 42, § 3°[33]) e de matiz solidário (Lei n° 10.671/2003, art. 19[34]), no que tange aos responsáveis pelo pagamento da indenização.

E, em assim sendo, uma tal ilação afinada estaria, sem qualquer sombra de dúvida, com aquele intenso fluxo protetivo, já acentuado, que tenciona alavancar, continuamente, a condição social do cidadão trabalhador, enquanto expressão de tutela da sua dignidade humana (CF, art. 1º, III, art. 5º, § 2º, e art. 7º, caput).

Sobre o autor
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: ney.maranhao@gmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney. Meio ambiente laboral futebolístico e responsabilidade civil . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3260, 4 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21913. Acesso em: 19 nov. 2024.

Mais informações

Este texto representa a versão escrita de intervenção oral realizada pelo autor junto ao II Encontro Goiano de Direito Desportivo. O evento aconteceu na cidade de Goiânia (GO), entre os dias 9 e 10 de maio de 2012, sob a coordenação do nobre Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, do Tribunal Superior do Trabalho.

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