Segundo o § 1º do art. 102 da Constituição Federal, "a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei".
Logo após a Constituição de 1988 José Afonso da Silva[1] relacionava o instituto com o recurso constitucional alemão (Verfassungsbeschwerde). Sobre essa relação Clèmerson Clève[2] faz a seguinte observação: "o Verfassungsbeschwerde não pode, porém, sem mais, ser transplantado para o Brasil. A imensa maioria dos recursos constitucionais propostos, perante a Corte Constitucional alemã, impugnam decisões judiciais. Ora, no Brasil, o recurso extraordinário serve para a mesma finalidade. De modo que, entre nós, a lei haveria de conferir à argüição uma funcionalidade muito menor que a alcançada pelo recurso constitucional alemão".[3]
A Lei 9.882/99, ao menos na dicção de seus autores intelectuais, pretendeu criar um instituto mais drástico - o que merece a mais profunda reflexão, inclusive sobre o modo como são produzidas as leis no país - o do incidente de constitucionalidade ou avocatória.
O instituto, tal como definido, peca porque deixou de fixar o que se entende por preceito fundamental. É evidente que todas as normas constitucionais não são objeto da ADPF, no que teria o mesmo objeto do recurso extraordinário. Entre os preceitos, devem estar as normas que constituem o núcleo fundamental essencial do Estado de Direito Brasileiro, devendo necessariamente ser englobados os princípios contidos no título I, bem como nas garantias do art. 60 da CF, não sendo difícil reconhecer diferenças entre as normas que formam o edifício constitucional.[4] Esse conceito, por ser aberto e indeterminado, deverá ser preenchido pelo STF, ou seja, o Supremo deverá definir o que entende por preceito, qual o seu conteúdo normativo, se são apenas regras ou também princípios, e o que dá o caráter de "fundamentalidade" aos preceitos.
Em todo caso, como expresso na própria lei, o instituto têm natureza subsidiária pois "não será admitida a argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade" (§ 1º do art. 4º da Lei 9822/99).
No que concerne ao campo de aplicação temos duas possibilidades interpretativas:
a) entender que há dois fundamentos ensejadores da medida: a1) para os atos do poder público lesivos a preceito fundamental e a2) para resolver as controvérsias judiciais acerca da aplicação de toda e qualquer norma jurídica;
b) a aplicação do instituto só é possível para sanar atos do poder público permitindo-se que sejam aplicadas a leis ou atos normativos federais, estaduais ou municipais, incluídos os anteriores a constituição federal.
Gilmar Ferreira Mendes, um dos autores intelectuais da lei que regulamenta o instituto, defende a aplicação a todas as decisões judiciais e "permite a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio da interpretação autêntica do Supremo Tribunal Federal".[5] Nessa interpretação permite-se seja ele oposto contra decisões judiciais, simplesmente para resolver controvérsias, transformando a controvérsia de um norma frente à constituição em uma violação de um preceito fundamental.
Em sentido contrário, afirma-se que devido à possibilidade de recurso das decisões judiciais há sempre um meio capaz de sanar a lesividade do ato[6]
Se for adotada a primeira interpretação de Gilmar Ferreira Mendes, estaremos introduzindo uma verdadeira "avocatória". Estará estabelecido, por lei, verdadeiro incidente de inconstitucionalidade. Que a Constituição possa estabelecer esse incidente até se admite, cujo debate da conveniência e oportunidade deve ser feito com toda a sociedade. Agora, é de constitucionalidade duvidosa que possa a lei ordinária, a pretexto de regulamentar a hipótese de cabimento da ADPF, estender o campo de aplicação e depois criar novos efeitos com a possibilidade de suspensão do "andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria, objeto da argüição de descumprimento fundamental". Não se pode conceber esse sistema de avocação com graves conseqüências para a independência do Judiciário.
Assim, penso que a Constituição não autoriza a extensão da ação de descumprimento para resolver "controvérsias judiciais", mas apenas para suspender atos lesivos, cuja lesão deve ser concreta ou iminente. A simples controvérsia não é um ato lesivo, embora de decisões judiciais possam resultar atos concretos que possam descumprir preceitos fundamentais. Em outras palavras existem decisões judiciais que embora sejam controvertidas ainda não geraram efeitos no mundo dos fatos, apenas dentro do processo. Assim, uma sentença de procedência ou improcedência, de per si, não gera efeitos no mundo concreto. Dela cabem os meios impugnatórios normais. Assim, a interpretação, mais conforme a constituição, é de que este instituto apenas possa ser usado para atos lesivos, mas não atos judiciais (embora deles decorrentes), só podendo ser usado depois de vencidas as demais etapas impugnatórias, dado o caráter subsidiário da argüição.
Quem fixará o âmbito da aplicação do instituto será o STF, que poderá usar o instituto para concentrar poderes em si, ou fazer uma interpretação conforme a Constituição, vinculando o parágrafo único do dispositivo ao caput, ou seja, vedar a utilização do instituto para resolver simples controvérsia judicial, enquanto não houver ato público que esteja descumprindo preceito fundamental.
Trata-se da aplicação do princípio de "direito estrito"[7], firmado pelo próprio STF, por haver aqui uma ampliação da taxatividade da competência do Supremo, agora por intermédio da Lei Ordinária e sob o pretexto de regulamentá-la. Do contrário, o Supremo destruirá o princípio que nem o Constituinte derivado pode dispor: o do juízo natural. Aniquilará, também, a idéia do controle difuso de constitucionalidade, negando vigência ao preceito do Recurso Extraordinário insculpido na Constituição.
Vencido esse âmbito de incidência do instituto, vamos examinar os demais incisos da lei regulamentadora.
A Argüição pode ser proposta por todos os legitimados à ação direta de inconstitucionalidade. O relator poderá indeferir a petição inicial se esta não preencher os requisitos da lei ou for inepta. Dessa decisão cabe agravo no prazo de cinco dias. O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Segundo a lei, a "liminar poderá consistir na determinação de que os juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada".
Aqui, a lei revela novamente, a intenção de tolher os juízes, permitindo uma decisão genérica, afetando a idéia de juiz natural e de independência na jurisdição. O fato de uma medida judicial "ter relação" com a matéria objeto da argüição não pode ser fonte de paralisação. O conceito de relação é genérico, e a Constituição exige "descumprimento" do preceito fundamental e não simples relação com o objeto de descumprimento de preceito fundamental. Se o juiz está julgando a matéria, ela, sim, pode ter relação com a matéria objeto da argüição, mas não estar descumprindo o preceito. A única forma de um ato judicial – ou uma medida - ser atingido – ao menos com legitimidade constitucional - é quando não haja mais recurso disponível e a própria decisão causar "a violação a preceito fundamental". Portanto, o dispositivo legal deve ser interpretado dessa forma sob pena de inconstitucionalidade.
Outro dispositivo que revela um certo conteúdo fascista, eis que incide num monopólio de interpretação total, anuviando o livre convencimento do juiz é o art. 10 da Lei 9.882/99, que prevê a possibilidade de o Supremo fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental", quando o esperado - e só até aí pode ir o intérprete - é que o Supremo fixe as condições e o modo para que cesse o descumprimento do preceito fundamental.
Não pode o Supremo fixar uma matriz interpretativa do preceito fundamental, eis que nada é mais variável do que a interpretação do preceito fundamental que vai se aplicar a uma série de casos dado a sua abertura normativa. O Supremo deve apenas sanar a violação do preceito fundamental, aí sim estabelecendo condições, modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental, eis que essa tem nítida relevância com o dispositivo do acórdão. A decisão apenas deve ser suficiente para que o preceito deixe de ser descumprido por aqueles atos determinados do poder público.
O art. 11 da Lei 9.882/99 preceitua a possibilidade de por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração de inconstitucionalidade incidente ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Aqui a matéria é estranha à argüição do descumprimento, entrando na seara do controle incidental de constitucionalidade e viola a disposição do art. 52, IX da CF, cujo poder de suspensão da lei ainda é – embora isso possa ser mudado – do Senado Federal.
A Lei finaliza estabelecendo que a decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido não pode ser objeto de ação rescisória, e o seu não-acatamento é objeto de reclamação.
Notas
1.José Afonso da Silva, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional positivo.7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997., p. 488.
2.Clèmerson Merlin Clève. A Fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2. ed., p. 408.
3.Idem, p. 408-9.
4.Nesse sentido: Thomas da Rosa Bustamante. "Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e sua regulamentação pela Lei 9.882/99", encontrado em http://www.jus.com.br/doutrina/lei9882b.html, jus navegandi, p. 5.
5.Gilmar Ferreira Mendes. "Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (§1º do art. 102 da Constituição Federal)", jus navegandi, p.7.
6.Nesse sentido Thomas da Rosa Bustamante. Ob. cit., p. 6.
7.RTJ 171/101.