SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 NOCÕES PRELIMINARES. 1.1 o estado e as funções estatais. 1.2 o direito administrativo. 1.3 o regime jurídico-administrativo: a teoria de Celso Antônio Bandeira de Mello. 2 A TEORIA DA DESCONSTRUÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO. 2.1 supremacia do interesse público sobre o privado não é norma-princípio. 2.2 supremacia do interesse público não condiz com a idéia de bem comum. 2.3 supremacia do interesse público conflita com os direitos fundamentais. 3 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO. 3.1 natureza jurídica: princípio?.3.2 fundamento: interesse público ou bem comum? 3.3 finalidade: supressão ou salvaguarda dos direitos fundamentais? CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Concebido como um dos pilares do regime jurídico-administrativo, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem sido questionado. O debate assume contornos de verdadeira disputa para fazer prevalecer os antagônicos pontos de vista, entre os juristas que o defendem, em contraposição aos juristas que pregam a sua “desconstrução”. A motivação pela escolha do tema reside na elevada importância que o princípio em voga tem para o Direito, especialmente para o Direito Administrativo.
Em busca da melhor compreensão do tema, a análise do instituto da supremacia do interesse público sobre o privado partirá do exame das bases do Estado Moderno, trilhando pelo seu conceito, origem, evolução e finalidades, a fim de chegar à exata noção de como inspirou o nascimento do Direito Administrativo e como, até os dias atuais, define os contornos deste, que por sua vez, será analisado em suas características principais, especialmente no que diz respeito à natureza das normas jurídicas que o caracterizam e o tornam um ramo autônomo do Direito, ou seja, as normas atinentes ao regime jurídico-administrativo.
A intenção, uma vez identificado o regime jurídico-administrativo, bem como as normas que o caracterizam e orientam, é encontrar os fundamentos que levaram CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO a formular a sua teoria, durante muito tempo amplamente aceita no cenário da doutrina publicista brasileira, por meio da qual definiu como pilares do regime jurídico-administrativo os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Ao cabo destas noções preliminares, será possível traçar um corte metodológico, isolando o princípio da supremacia, que passará a ser examinado mais aprofundadamente. Neste passo, será analisada a novel doutrina que busca a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, utilizando-se para tanto, de três linhas de argumentação basicamente.
A primeira delas, concerne à não aceitação do princípio em voga como princípio jurídico, no sentido de princípio-norma, correspondente à terceira fase da evolução do conceito de princípio jurídico no âmbito da Ciência do Direito. Em linhas gerais, a teoria crítica afirma não ver na supremacia um padrão aceitável como princípio jurídico, tendo em vista que não apresenta as características necessárias para tanto, podendo ser resumidas como a possibilidade de ter sua aplicação afastada sem que isso implique em sua exclusão do ordenamento jurídico ou a presença de uma exceção, a carga valorativa com diferentes pesos a depender da situação concreta que demande sua aplicação e, por fim, a aplicação mediante a lei da ponderação.
Outro argumento apresentado contra o princípio da supremacia consiste na sua suposta incompatibilidade com a noção de bem comum. Segundo o argumento, a supremacia admite a contraposição entre interesses públicos e privados, e define de forma predeterminada e recorrente a preponderância dos primeiros sobre os últimos. Nestes termos, não pode coadunar-se com o bem comum.
Por fim, o princípio da supremacia é acusado de representar séria ameaça aos direitos fundamentais, tendo em vista que sua predisposição para a preponderância do interesse público, somada à indeterminabilidade do conceito de interesse público, pode levar o aplicador do Direito ao cometimento de vários abusos justificados na supremacia do interesse público sobre o privado.
Apresentados os argumentos contrários à supremacia, passar-se-á ao objetivo principal deste trabalho, que é o cotejo entre estes e os fundamentos do princípio à luz de apontamentos da Teoria Geral do Estado e do Direito. O intuito é rechaçar cada um dos argumentos contrários, pela demonstração de que partem de premissas equivocadas, e, ao final, reafirmar a subsistência do princípio da supremacia no ordenamento jurídico brasileiro.
1 NOÇÕES PRELIMINARES
1.1 O Estado e as funções estatais
O Estado pode ser conceituado como “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” (DALLARI, 2009, p. 119). Esta concepção atende aos desideratos do presente trabalho, tendo em vista que, a despeito de sua simplicidade, contempla os quatro elementos do Estado, dos quais dois serão fundamentais para o desenvolvimento da idéia central pretendida. São eles o Estado como ordem jurídica e a finalidade de atingir o bem comum. A relação entre os conceitos e o princípio da supremacia do interesse público será demonstrada mais a frente.
A princípio, no entanto, cumpre destacar que o Estado surgiu da necessidade humana de viver em comunidade. Com efeito, não restam dúvidas de que ao homem é mais proveitoso associar-se, como forma de tornar mais eficiente a defesa da integridade física e dos bens de cada indivíduo. Isto é fato, independentemente da concepção adotada quanto ao fundamento desta associação, se inerente à própria natureza humana (teoria naturalista) ou se decorrente simplesmente de ato de escolha (teoria contratualista).
A propósito, vale discorrer, ainda que de forma sintética, sobre tais correntes. A concepção naturalista sustenta que a propensão à vida em sociedade é uma característica natural do home, inerente mesmo à sua própria natureza, independentemente das necessidades materiais das quais necessita. Conforme explica DALLARI: “Assim, pois, não seriam as necessidades materiais o motivo da vida em sociedade, havendo, independente dela, uma disposição natural dos homens para a vida associativa” (2009, p. 10).
Por outro lado, a teoria contratualista ressalta que a natureza humana levaria ao caos, pois cada indivíduo, “temeroso de que outro venha a tomar-lhe os bens ou causar-lhe algum mal, pois todos são capazes disto, [...] toma a iniciativa de agredir antes de ser agredido” (DALLARI, 2009, p. 13). No intuito de evitar a situação de desordem, os homens, num ato puramente racional, firmam o contrato social, em que cada um sede uma parte de sua liberdade, nome da estabilidade e segurança para todos.
DALLARI sem adotar posicionamento firme a favor de qualquer das correntes, informa haver uma predominância nos dias atuais pela aceitação da teoria naturalista, contudo, sem excluir a importância do contratualismo, sob o fundamento de que, embora a associação seja inerente à natureza humana, é inegável o papel da manifestação da vontade para que seja viabilizada a convivência em sociedade (DALLARI, 2009, 18/19).
Com efeito, a teoria contratualista, sobretudo defendida por ROUSSEAU, teve importante papel na formação do Estado Moderno. Foi inspirada nos ideais contratualistas, assentados na premissa fundamental de que todos os homens são livres e iguais, que a Revolução Francesa de 1789 pôs fim ao Estado Absolutista. Isto significou a mudança radical da titularidade do poder soberano que, antes pertencente ao monarca, passou a ser do povo, ou seja, de cada cidadão e de todos. Mas, como explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, diante da impossibilidade material de que todos os homens governassem concomitantemente “[...] era preciso que cada homem cedesse uma parte de sua liberdade, a fim de poder existir um Poder comandante para a boa organização da vida social” (2010, p. 48).
Neste contexto, o Estado surge como representante desta associação, como instrumento para que seja levada a cabo. Sobre o tema, são elucidativas as palavras de DALLARI:
É então que ocorre a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos a favor de toda a comunidade. Neste instante, o ato de associação produz um corpo moral e coletivo, que é o Estado, enquanto mero executor de decisões, sendo o soberano quando exercita um poder de decisão. O soberano, portanto, continua a ser o conjunto das pessoas associadas, mesmo depois de criado o Estado, sendo a soberania inalienável e indivisível (2009, p. 17).
O Estado, portanto, adquire a finalidade de promover o bem comum, como resultado da vontade geral. A idéia de bem comum como fruto da vontade geral será objeto de maior aprofundamento posteriormente. Cabe neste momento da exposição, em que são colocados alguns conceitos úteis ao desenvolvimento do trabalho, enfatizar o caráter instrumental atribuído ao Estado Moderno.
Neste sentido, pode-se afirmar que o Estado exerce função, que, nas palavras de SANTI ROMANO, significa o “poder que se exerce, não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas sim, por interesse de outrem” (1977, p. 145). O Estado, enquanto ser abstrato nasce com a finalidade precípua e inafastável de garantir o bem comum, o interesse público, e assim, tornar viável a vida em comunidade, harmonizando os interesses estritamente particulares aos interesses comuns.
Excelente noção de função é fornecida por BANDEIRA DE MELLO, que considera função pública como a “atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso de poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” (2010, p. 29). Exercer uma função consiste, portanto, em agir no cumprimento de uma finalidade em prol do alheio, mas para isso, utilizando-se de certas prerrogativas necessárias à consecução deste dever.
O enunciado supramencionado também resolve possível indagação quanto à eleição do meio para a fixação destes poderes e deveres que o Estado deve exercitar e garantir. A resposta: a lei. O ordenamento jurídico determina quais as finalidades a serem perseguidas pelo Estado e quais os poderes de que dispõem para garantir o cumprimento destas finalidades. Daí fazer parte do conceito a menção a ordem jurídica.
O Estado Moderno é submisso à lei, tanto quanto os cidadãos. Aliás, aquele tem campo de atuação mais restrito. Neste sentido, é célebre a afirmação de HELY LOPES MEIRELLES sobre o tema: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (2006, p. 87). É certo que esta afirmação refere-se unicamente à Administração Pública, que consiste em apenas uma parte do Estado. Contudo, A idéia preconizada pode ser aplicada ao Estado com um todo. No enunciado encontra-se a exata dimensão do Estado de Direito, que tem como princípio fundamental o da legalidade.
Tendo por base as idéias de Estado de Direito e função pública, MONTESQUIEU delineou a teoria da tripartição das funções estatais. O pensamento do autor, que inegavelmente influenciou a maioria dos sistemas jurídico-constitucionais do mundo moderno, foi bem sintetizado por BANDEIRA DE MELLO, da seguinte forma:
Afirmava Montesquieu, como dantes se anotou, que todo aquele que detém Poder tende a abusar dele e que o Poder vai até onde encontra limites. Aceitas tais premissas, realmente só haveria uma resposta para o desafio de tentar controlar o Poder. Deveras, se o Poder vai até onde encontra limites, se o Poder é que se impõe, o único que pode deter o Poder é o próprio Poder. Logo, cumpre fracioná-lo, para que suas parcelas se contenham reciprocamente. Daí a conclusão: cumpre que aquele que faz as leis não as execute nem julgue; cumpre que aquele que julga não faça as leis nem as execute; cumpre que aquele que executa nem faça as leis, nem julgue. E assim se firma a idéia de tripartição do exercício do Poder (2010, p. 49).
Assim, vislumbram-se as três esferas da função estatal, exercidas por órgãos do Estado denominados Poderes Estatais. São elas: a função legislativa, cuja incumbência consiste em criar as leis, inovando no ordenamento jurídico, com a edição de normas gerais e abstratas, que têm por finalidade influenciar a conduta dos sujeitos de direito, de acordo com os interesses estabelecidos na Constituição; a função jurisdicional, voltada para a solução, com força de coisa julgada, de conflitos de interesses decorrentes da aplicação das leis; e a função executiva ou administrativa, concernente à aplicação da lei de ofício, ou seja, à atividade tendente a executar os comandos previstos na lei.
Sem embargo, insta registrar doutrina que defende a existência de uma quarta função, denominada função política ou de governo. Ela abrange uma categoria de atos, geralmente exercidos pelos órgãos integrantes do Poder Executivo, que não se encaixam no espectro de abrangência das demais funções contempladas pela teoria da tripartição. Para seus defensores, dentre eles OTTO MAYER, esta função não está ligada ao cotidiano da atividade estatal, mas apenas situações excepcionais, bem como abrange atos que extrapolam a ordem jurídica, incidindo em âmbito estritamente político como, por exemplo, as relações diplomáticas.
Tal como concebida na Europa, a função de governo exprime atos que não podem ser controlados pelo Poder Judiciário, o que de resto não se coaduna com o sistema jurídico-constitucional vigente no Brasil, no qual, por expressa previsão constitucional, nada escapa à apreciação do Judiciário.
As colocações até o momento expostas, permitem fixar algumas premissas: o Estado surgiu da necessidade do homem de viver em comunidade e assim maximizar suas chances de uma vida mais digna. O Estado é instrumento para o alcance do bem comum. Neste sentido exerce função. No Estado Moderno, o povo é o titular do poder e o exercício das funções estatais exprime muito mais um dever do que propriamente um poder. Por fim, as finalidades a serem alcançadas pelo Estado, bem como os poderes instrumentais de que dispõe para cumpri-las são definidos pelo ordenamento jurídico, ou seja, pela lei, à qual todos estão submetidos, inclusive os órgãos estatais encarregados do cumprimento das funções.
1.2 O Direito Administrativo
As noções estabelecidas no item anterior são de extrema importância para a definição do Direito Administrativo. Foi a partir da instauração do Estado de Direito e da implantação do sistema de tripartição dos poderes estatais que se tornou evidente – e possível – a necessidade de disciplinar as relações entre a Administração Pública e os administrados. Com efeito, a atuação do Estado em suas relações com os particulares passou a ser submetida à lei, e não se toleravam mais arbitrariedades e abusos.
Vale destacar que na França, onde o Direito Administrativo deu os primeiros passos, a tripartição dos poderes era bastante rígida, em razão do que o controle do exercício da função administrativa não podia ser realizado por outra esfera de poder. Neste contexto, coube ao Conselho de Estado francês disciplinar os comportamentos dos administradores públicos. Havia o que se denominou jurisdição administrativa. A observação é válida para que se realizem as devidas adaptações ao se tentar conceituar o Direito Administrativo à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, pode-se conceituar o Direito Administrativo como “[...] o ramo do Direito Público que disciplina a função administrativa, bem como as pessoas e órgãos que a exercem” (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 37). Para a obtenção de uma melhor noção do Direito Administrativo cumpre, não obstante já haver sido referenciada alhures, conceituar a função administrativa de forma mais completa, para o que se pode contar com a lição de BANDEIRA DE MELLO:
Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regimes hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário (2010, p. 36).
Observa-se na definição supracitada a presença de características exclusivamente da função administrativa, como a estrutura hierárquica e a atuação mediante comandos infralegais ou infraconstitucionais, sempre suscetíveis ao controle de legalidade pelo Judiciário. Esta última característica, como se observa, denota o traço distintivo entre os conceitos de função administrativa e, consequentemente, de Direito Administrativo, no Brasil e na França.
Contudo, o que realmente merece ênfase para a presente exposição, em especial neste primeiro capítulo, consiste na apresentação de noções e conceitos que auxiliem na localização e elucidação da temática central. Neste mister, verifica-se que, enquanto ramo autônomo, o Direito Administrativo caracteriza-se pela incidência de um regime jurídico próprio, que será abordado no item seguinte.
1.3 O regime jurídico-administrativo: a teoria de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
Regime jurídico pode ser definido como o conjunto de princípios e regras que, por sua peculiaridade, caracterizam determinado ramo do Direito, tornando-lhe autônomo e coerente. A idéia de regime jurídico está relacionada a existência de um sistema, um todo em que, sobre uma determinada espécie de relações jurídicas, incide uma categoria de normas próprias, de forma a torná-lo único.
Nesta perspectiva, observa-se a existência de um regime jurídico próprio do Direito Administrativo, formado pelo sistema de normas especificamente criadas para a disciplina das relações jurídicas decorrentes do exercício da função administrativa. A este sistema, denomina-se regime jurídico-administrativo.
O regime jurídico-administrativo apresenta como traço marcante a busca pelo equilíbrio entre duas idéias, diretamente relacionadas às finalidades do Estado. Com efeito, cumpre ao Estado garantir a satisfação do interesse público, o qual deve preponderar sobre os interesses privados. Isto porque o interesse público, segundo afirma BANDEIRA DE MELLO, consiste “na dimensão pública dos direitos individuais” (2010, p. 63). Eis as palavras do próprio autor:
Pois bem, é este último interesse o que denominamos de interesse do todo ou interesse público. Não é, portanto, de forma alguma, um interesse constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois, passível de ser tomado como categoria jurídica que possa ser erigida irrelatamente aos interesses individuais, pois, em fim de contas, ela nada mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se manifesta enquanto estes – inevitavelmente membros de um corpo social – comparecem em tal qualidade. Então, dito interesse, o público – e esta já é uma primeira conclusão –, só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro. Logo, é destes que, em última instância, promanam os interesses chamados públicos.
Donde, o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem (2010, p. 61).
Diante desta preponderância, o Estado dispõe de certas prerrogativas; mas o exercício destas prerrogativas não pode ser extrapolado, de forma a interferir na esfera de direitos fundamentais dos cidadãos, em virtude do que são impostas restrições à atuação do Estado. Este binômio representado pelas prerrogativas e sujeições conferidas ao Estado no exercício da função administrativa constitui-se no cerne do regime jurídico-administrativo.
A existência de prerrogativas está relacionada a um conjunto de competências e atribuições conferidas à Administração Pública que lhe conferem, em determinadas situações, uma posição de superioridade sobre os administrados. Esta superioridade implica em possibilidades exorbitantes, anormais em relação às possibilidades dos cidadãos comuns. Eis o primeiro fundamento do regime jurídico-administrativo: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Sobre o princípio, afirma BANDEIRA DE MELLO:
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.
É pressuposto de uma ordem estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados (2010, p. 70).
O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem dois importantes efeitos: (a) implica na concessão de privilégios à Administração Pública, nas relações com particulares, como, por exemplo, a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos; e (b) põe o Poder Público em posição de supremacia em relação aos administrados, ou seja, outorga à Administração Pública autoridade no trato com particulares, de que são exemplos, a possibilidade de constituir os privados em obrigações por meio de ato unilateral, bem como o direito de modificar, unilateralmente, relações já estabelecidas. Os exemplos são do próprio BANDEIRA DE MELLO (2010, p. 70).
Entretanto, o uso destas competências exorbitantes, na verdade, está vinculado ao cumprimento de deveres, que nada mais são do que as finalidades para as quais o Estado foi concebido. Vale reiterar, se trata do exercício de função e, neste sentido, os poderes somente serão legítimos caso exercitados se, quando e na medida exata para o cumprimento dos deveres aos quais estão atrelados. Caso ultrapassem este limite, estarão sempre sujeitos ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário.
Neste sentido, o segundo fundamento do regime jurídico-administrativo consiste no princípio da indisponibilidade do interesse público. Segundo este mandamento, a Administração Pública não é titular do interesse público. Portanto, dele não pode dispor, sob pena de desviar-se das finalidades para as quais foi legitimada. Finalidades estas que estão estritamente delimitadas na lei.
Daí poder se afirmar que a consequência mais marcante do princípio da indisponibilidade do interesse público é o princípio da legalidade. Mais uma vez, pode-se recorrer às palavras de MEIRELLES, que ao tratar do princípio, assim dispõe:
A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput) significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso (2006, p. 87).
Com efeito, é tão clara quanto curta a definição de SEABRA FAGUNDES, segundo quem administrar é “aplicar a lei de ofício” (1979, p. 4). Este dever de vinculação à lei representa de forma suficiente os limites aos quais está submetido o administrador público em sua atuação, de forma que o uso das prerrogativas não exceda as finalidades para as quais foram concedidas.
Contudo, para a obtenção da melhor concepção do princípio da legalidade, cumpre ressaltar que mesmo ao exercer as denominadas competências discricionárias, em que ao administrador é atribuído o dever (e não poder) de optar, no caso concreto, pela atuação que considere a melhor opção para a consecução do interesse público, deve ser sempre observada a finalidade da lei, que, aliás, já deve impreterivelmente ter normatizado a matéria de forma abstrata. Sobre o tema, é clara a lição de BANDEIRA DE MELLO:
A exata compreensão do princípio da legalidade não significa – nem exclui – o fato de que à Administração incumbe criar concretamente – embora em nível sublegal – a utilidade pública, fato do qual decorrerá frequetemente o exercício da atuação discricionária. É que a lei, inúmeras vezes, ao regular abstratamente a situações, o faz de maneira a irrogar ao administrador o encargo de eleger, perante o caso concreto, a solução que se ajuste com perfeição às finalidades da norma, para o quê terá de avaliar conveniência e oportunidade caso a caso (2010, p. 77).
Na senda destas razões, pode-se concluir que correm lado a lado as prerrogativas e sujeições da Administração Pública. As primeiras, representadas pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e suas implicações; as últimas, decorrentes do princípio da indisponibilidade do interesse público, cuja maior conseqüência é o princípio da legalidade.
Juntos, e somente juntos, tais princípios consistem nos pilares do regime jurídico-administrativo concebido por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, pois a sua incidência caracteriza as relações firmadas entre Administração Pública e administrados, servindo de orientação para a sua regulação.
A exposição até o momento procurou seguir raciocínio linear, com a apresentação dos conceitos e fundamentos que permitiram situar o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, objeto principal do presente trabalho, no âmbito da Ciência do Direito Administrativo, este por sua vez decorrente do surgimento do Estado de Direito, sob forte influência da teoria da separação das funções estatais.
Definidas as bases do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e suas principais características, inclusive sua íntima relação com o princípio da indisponibilidade do interesse público, cumpre passar à análise das críticas que atualmente tendem à “desconstrução” daquele instituto.