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O Tribunal de Contas da União e o controle de constitucionalidade.

Uma releitura da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

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Agenda 01/08/2012 às 09:29

3 O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Densa controvérsia doutrinária começa a exsurgir quando se indaga a propósito da natureza jurídica do Tribunal de Contas da União e da sua posição orgânica na estrutura constitucional do Estado brasileiro.

Há doutrina de renome que sustenta a natureza jurisdicional do órgão, a despeito de sua ausência no rol do art. 92 da Constituição de 1988. Seabra Fagundes já anotava, inclusive, que as decisões tomadas pelo Tribunal de Contas da União – porque revestidas de jurisdicionalidade – eram definitivas, sendo insuscetíveis de qualquer reapreciação pelo Poder Judiciário.11

Porém, para Tavares, o Tribunal de Contas da União se situa, organicamente, como órgão auxiliar do Poder Legislativo federal, cuja estrutura integra na ordem constitucional vigente. Observa o eminente constitucionalista, in verbis:

Os tribunais de contas foram considerados, pela Constituição brasileira de 1.988, órgãos auxiliares do Poder Legislativo quando no exercício do controle externo. Organicamente, portanto, atrelam-se à estrutura do Congresso Nacional.

Sua natureza jurídica é a de órgão administrativo, técnico, de controle e auxiliar, nessa matéria, do Poder Legislativo. Isso, contudo, em nada deslegitima ou desautoriza sua atuação, tendo em vista que o essencial, em tema de fiscalização, é preservar a separação do fiscalizador em relação aos órgãos de execução material a serem fiscalizados, particularmente em relação à Administração Pública.

De outra parte, a caracterização como órgão auxiliar do Parlamento deixa clara sua diferenciação deste, não estando, portanto, autorizada uma atuação política do Tribunal de Contas. Assim, embora não se possa caracterizá-lo como órgão com “autonomia funcional e institucional”, tal qual ocorre em outros países, como na Argentina, já que está integrado inegavelmente ao Poder Legislativo, ainda assim há de se concluir que suas decisões não podem ser tomadas nem são passíveis de revisão por motivos de conveniência ou oportunidade.12

Sem embargo, tudo indica que a doutrina publicista majoritária encaminha-se no sentido de que o Tribunal de Contas da União consiste em órgão autônomo, independente, de matriz constitucional e com funções institucionais próprias, não pertencente a quaisquer dos Poderes da República. Britto, profundo estudioso do tema, discorre com propriedade sobre a autonomia institucional do Tribunal de Contas da União no sistema constitucional brasileiro, in litteris:

...além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas da União não é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso medir com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta desse altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de ideia que estou a fazer: quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho como certo que está a falar de “auxílio” do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. (...)

As proposições se encaixam. Não sendo órgão do Poder Legislativo, nenhum Tribunal de Contas opera no campo da subalterna auxiliaridade. Tanto assim que parte das competências que a Magna Lei confere ao Tribunal de Contas da União nem passa pelo crivo do Congresso Nacional ou de qualquer das Casas Legislativas Federais (bastando citar os incisos III, VI e IX do art. 71). O TCU se posta é como órgão da pessoa jurídica União, diretamente, sem pertencer a nenhum dos três Poderes Federais. Exatamente como sucede com o Ministério Público, na legenda do art. 128 da Constituição, incisos I e II.13

Essa também tem sido a inteligência albergada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a questão, conforme se infere do seguinte excerto no julgamento da ADI nº 1.140-5, pelo Tribunal Pleno:

Não são, entretanto, as Cortes de Contas órgãos subordinados ou dependentes do Poder Legislativo, tendo em vista que dispõem de autonomia administrativa e financeira, nos termos do art. 73, caput, da Constituição Federal, que lhes confere as atribuições previstas em seu art. 96, relativas ao Poder Judiciário.14

Ainda, vale gizar que, de acordo com a doutrina majoritária, não se pode atribuir o predicado de definitividade às decisões proferidas pelo Tribunal de Contas da União, tendo em vista a consagração do princípio da inafastabilidade da jurisdição pela Constituição de 1988 (art. 5º, XXXV), bem como o fato de que o TCU não exerce função jurisdicional propriamente dita. Aliás, com distinta lucidez, Cretella Júnior alerta para a equivocidade de que se imbuem os termos utilizados pela Constituição de 1988 no disciplinamento das competências e da estrutura do TCU – como, e.g., 'jurisdição em todo o território nacional', no art. 73 –, explicitando que simples nominalismos não são suficientes para alterar a natureza substancial das coisas.15

O emprego de terminologia imprópria pelo poder constituinte originário não significa equiparação do TCU aos Tribunais Judiciários, e tampouco o desempenho de atividade jurisdicional por aquela Corte de Contas. Na lúcida observação de Monteiro, in verbis:

A natureza dúbia da terminologia "Tribunal" de Contas é uma das responsáveis pela defesa da função jurisdicional das Cortes. Também se revela inadequado o uso, no texto constitucional, de termos inerentes à função jurisdicional, como "julgar", "julgamento" e "jurisdição", que, juntamente com a previsão, aos membros das Cortes de Contas, de garantias, prerrogativas, vencimentos e impedimento semelhantes aos membros da magistratura, leva a crer que tais órgãos realmente exercem função jurisdicional.

Dentre os aspectos apontados, o emprego do verbo "julgar" e de vocábulos similares é, sem sombra de dúvidas, uma das mais expressivas deficiências técnicas presentes na Constituição, pois induz ao erro de se imaginar que foram empregados no mesmo sentido que possuem no âmbito do Direito Processual, o que é uma falácia. (…)

No contexto das Cortes de Contas, julgar as contas significa examiná-las, verificar se estão certas ou erradas. Dessa análise resulta a emissão de um parecer que apresenta extremo valor técnico, mas que não se revela um provimento definitivo, ou seja, não possui a hierarquia de uma sentença judiciária. A função exercida é puramente matemática, contábil, nada mais.16

Nessa medida, entende a doutrina dominante que, por não exercer função judicante, as decisões do Tribunal de Contas da União são de natureza puramente administrativa e técnica e, embora possam se tornar imutáveis administrativamente, não assumem definitividade que possa ser oposta ao Poder Judiciário, a não ser em questões que, por sua maior especificidade técnica, sejam de competência privativa da Corte de Contas e escapem ao exame judicial de legalidade e juridicidade.17

Feitas essas breves considerações, e ressalvando que a natureza jurídica do TCU é matéria tormentosa e polêmica, depreende-se que o Tribunal de Contas da União, na Constituição de 1988, pode ser definido como um órgão constitucional autônomo, administrativa e financeiramente independente, não pertencente à estrutura dos três Poderes da República (nem subordinado a quaisquer deles), com perfil e competências institucionais próprias e suficientemente regradas pelo texto constitucional.

Note-se, de outro lado, que a Constituição de 1988 ampliou significativamente o espectro de competências do Tribunal de Contas da União no controle externo da Administração Pública federal. As competências da Corte de Contas vêm listadas no artigo 71 da Lei Fundamental de 1988, com disciplina complementar da respectiva Lei Orgânica (Lei nº 8.443/92) e do Regimento Interno do Tribunal.

No entanto, da simples leitura do art. 71 da Constituição de 1988, não se vislumbra a outorga de competência ao Tribunal de Contas da União para apreciar a constitucionalidade de leis ou atos normativos do Poder Público.

A propósito, o falecimento de competência ao TCU para o exercício do controle abstrato de normas é reconhecido pelo próprio órgão, visto que, do contrário, a usurpação de competência privativa do Supremo Tribunal Federal seria flagrante.18 Todavia, o Tribunal, no exercício de suas funções, vem reiteradamente realizando o controle concreto de constitucionalidade, com especial amparo na Súmula nº 347 do Supremo.

Faz-se mister perquirir, porém, se a ordem constitucional inaugurada com a Constituição de 1988 – notadamente o sistema de controle de constitucionalidade nela arquitetado – permite que o Tribunal de Contas da União exerça o controle pela via difusa.


4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE REALIZADO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

Desde logo se consigne que a doutrina e a jurisprudência brasileiras puseram fim a uma antiga discussão sobre a existência de distinção técnica entre afastar a aplicação de uma lei reputada inconstitucional e declarar a sua inconstitucionalidade. A controvérsia foi sepultada de vez com a edição da Súmula Vinculante nº 10 pelo Supremo Tribunal Federal,19 que consagrou a tese da inexistência de diferença entre uma coisa e outra.

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A ementa abaixo transcrita bem elucida a postura jurisprudencial do Supremo sobre o tema, ad litteris et verbis:

Controle difuso de constitucionalidade de norma jurídica. Art. 97 da Constituição Federal. - A declaração de inconstitucionalidade de norma jurídica "incidenter tantum", e, portanto, por meio do controle difuso de constitucionalidade, é o pressuposto para o Juiz, ou o Tribunal, no caso concreto, afastar a aplicação da norma tida como inconstitucional. Por isso, não se pode pretender, como o faz o acórdão recorrido, que não há declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica "incidenter tantum" quando o acórdão não a declara inconstitucional, mas afasta a sua aplicação, porque tida como inconstitucional. Ora, em se tratando de inconstitucionalidade de norma jurídica a ser declarada em controle difuso por Tribunal, só pode declará-la, em face do disposto no artigo 97 da Constituição, o Plenário dele ou seu Órgão Especial, onde este houver, pelo voto da maioria absoluta dos membros de um ou de outro. No caso, não se observou esse dispositivo constitucional. Recurso extraordinário conhecido e provido.20 (Grifou-se e sublinhou-se)

Não obstante, o punctum pruriens da questão reside em saber se órgãos desvestidos de natureza jurisdicional – tal como o TCU – podem negar aplicação a leis ou atos normativos considerados inconstitucionais, pois, assim procedendo, tais instituições estão a declarar, no caso concreto, a inconstitucionalidade de leis e atos do Poder Público, de modo a desfazer a presunção de constitucionalidade que lhes é inerente.

Quer dizer, a se admitir a hipótese de que, no sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição de 1988, órgãos despojados de atribuições judiciárias possam afastar a aplicação de leis inconstitucionais, forçoso se torna reconhecer, então, que mesmo a Administração Pública, organicamente considerada, poderia recusar-se a aplicar lei formalmente emanada do órgão legislativo competente, a despeito do princípio da estrita legalidade que vincula toda a sua atividade. Nessa ordem de raciocínio, considerando que afastar a aplicação de lei inconstitucional nada mais é do que declarar a sua inconstitucionalidade in concreto, o controle seria, pois, difuso não só para o Poder Judiciário, mas sim para todos os órgãos constitucionais que integram a estrutura organizativa do Estado brasileiro, que poderiam deixar de aplicar a lei ao fundamento de contrariedade à Constituição.

Com efeito, antes do advento da Constituição de 1988, havia grande aceitação doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de a Administração Pública deixar de cumprir, no âmbito de suas competências, lei ou ato normativo que entendesse inconstitucional. E tal se justificava porque o juízo de constitucionalidade da lei não era compreendido como monopólio do Poder Judiciário, ainda quando fosse reservada a este a palavra final sobre a constitucionalidade da norma. Outra justificativa apontada pela doutrina era o fato de que a legitimação ativa para a deflagração do controle abstrato de normas era exclusiva do Procurador-Geral da República.21

Contudo, tais justificativas parecem ter perdido a sua consistência com a promulgação da Constituição de 1988, que ampliou significativamente a legitimação para a instauração do controle direto de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. A legitimação dos Chefes dos Poderes Executivos federal e estadual (art. 103, incisos I e V, respectivamente), bem como a possibilidade de controle abstrato de lei municipal (art. 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.882/99), indicam eventual viragem do sistema quanto à possibilidade de órgãos não-jurisdicionais se furtarem à aplicação da lei sob o argumento de inconstitucionalidade.

Embora tímida a respeito da matéria, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido o não-cumprimento, pela Administração Pública, de leis que considere inconstitucionais, como se verifica de excerto colhido no julgamento da ADI-MC 221, in verbis:

O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade –, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais.22 (Sublinhou-se)

No entanto, conforme alhures assentado, verifica-se forte tendência do ordenamento constitucional em promover a concentração do exame de constitucionalidade das leis e dos atos normativos no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Para a consecução desse desiderato, o constituinte reforçou o sistema de controle abstrato de normas mediante a instituição de diversos instrumentos de defesa da ordem jurídica objetiva, e ampliou o rol de sujeitos, órgãos e entidades legitimados à utilização desses instrumentos, de forma a construir uma verdadeira via principal para a impugnação de ações e omissões estatais que não se compatibilizem com a Constituição da República.

Nesse sentido, é irrefragável que o sistema constitucional vigente dispõe de uma ampla via para a impugnação direta de leis e atos normativos contrários à Constituição, com a legitimação de representantes das mais diversas esferas do Poder para provocar o exercício da jurisdição constitucional concentrada perante o Supremo Tribunal Federal. Diante dessa contextura, quer parecer que não remanesce válida, na ordem constitucional instaurada pela Carta de 1988, a proposição de que órgãos não-jurisdicionais possam afastar a aplicação de lei reputada inconstitucional – em nítido exercício de controle concreto de constitucionalidade –, mormente em vista de que o controle a posteriori de constitucionalidade é prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, ressalvadas as exceções expressamente previstas no texto constitucional.

De outra banda, é oportuno relembrar que a Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal foi aprovada na Sessão Plenária de 13 de dezembro de 1963, sob a égide da Constituição de 1946.

Seu leading case foi o Recurso em mandado de segurança nº 8.372, do Ceará. O caso versava, em síntese, sobre negativa de registro, pelo Tribunal de Contas do Ceará, ao ato de aposentadoria do recorrente, egresso da carreira de Delegado de Polícia. Irresignado, o recorrente impetrou mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça do Ceará, o qual lhe foi denegado por voto de desempate, a ensejar a interposição de recurso ordinário perante o Supremo. A fundamentação esposada pelo então Ministro Relator para negar provimento ao recurso foi bem concisa, razão pela qual se faz oportuna a sua transcrição literal:

Nego provimento ao recurso. Considerada sem efeito a lei que servira de fundamento ao ato da aposentação do recorrente, não poderia ser feito o registro por falta de supedâneo jurídico. A meu ver, o acórdão bem decidiu a espécie, mas não posso deixar de lhe opor um reparo de ordem doutrinária, pois não quero ficar vinculado a uma tese que tenho constantemente repelido.

Entendeu o julgado que o Tribunal de Contas não podia declarar a inconstitucionalidade da lei. Na realidade, essa declaração escapa à competência específica dos Tribunais de Contas.

Mas há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado.

Feita essa ressalva, nego provimento ao recurso.23 (Grifou-se e sublinhou-se)

Conforme se infere do excerto transcrito, o próprio Ministro Relator reconhecia que a declaração de inconstitucionalidade não se compreendia nas competências específicas dos Tribunais de Contas. Como visto, o Ministro perfilhava a tese segundo a qual há distinção entre não aplicação de leis inconstitucionais e a declaração de sua inconstitucionalidade, o que autorizaria os Tribunais de Contas a negar aplicação às leis ou atos normativos que reputasse contrários à Constituição, ao fundamento de que a isso estavam obrigados todos os órgãos estatais.

Ou seja, o fundamento central sobre o qual se ancorou o principal precedente que originou a Súmula nº 347 foi o da existência de diferença entre afastar a aplicação de leis inconstitucionais e declarar a sua inconstitucionalidade. No entanto, conforme já demonstrado, essa distinção se encontra atualmente superada pela jurisprudência e doutrina majoritárias, que não vislumbram qualquer distinção de ordem prática entre uma coisa e outra.

Com o advento da Súmula Vinculante nº 10, o Supremo Tribunal Federal soterrou a controvérsia no sentido da inexistência de distinção técnica entre afastar a incidência de norma inconstitucional e declarar a sua inconstitucionalidade, uma vez que decisões de órgãos fracionários de Tribunais que afastam a incidência de lei ou ato normativo do Poder Público, ainda quando não declarem explicitamente a sua inconstitucionalidade, infringem a regra do artigo 97 da Constituição de 1988. Quer dizer, ao afastar a aplicação de uma lei considerada inconstitucional, à luz de um caso concreto, é insofismável que o órgão estatal – seja qual for a sua natureza – está a exercer um controle incidental de constitucionalidade.

De outro lado, verifica-se que, quando da aprovação da Súmula nº 347 pelo Supremo, a ordem constitucional então vigente ainda não contemplava o sistema de controle abstrato de normas, que só foi surgir no ordenamento com a Emenda nº 16/1965. Assim, no contexto que então vigorava, reconhecia-se apenas a existência do controle concreto de constitucionalidade, e seu exercício ainda não era compreendido como monopólio do Poder Judiciário.

Diante dessas considerações, verifica-se que o contexto constitucional em que aprovado o verbete da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal, decorrente da Constituição de 1946, revela-se bastante diferente do atual, instaurado pela Constituição de 1988. Naquele, era estreme de dúvidas o fato de que órgãos não-jurisdicionais – notadamente o TCU – poderiam afastar a incidência de normas consideradas inconstitucionais, ao fundamento de que a recusa à aplicação de lei inconstitucional não se confundia com a declaração de sua inconstitucionalidade. No contexto atual, não se vislumbra distinção entre uma coisa e outra, sedimentando doutrina e jurisprudência dominantes a tese de que “exerce o controle incidental de constitucionalidade o juiz ou tribunal que afasta a aplicação da norma, em face da inconstitucionalidade, mesmo sem a declaração ou reconhecimento expresso na decisão”.24

Ainda, no contexto em que aprovada a Súmula nº 347, não havia no Direito Posto o sistema de controle concentrado de constitucionalidade, e a noção de que o controle difuso cabia exclusivamente ao Poder Judiciário não era questão pacífica na doutrina e na jurisprudência. No contexto da Constituição de 1988, a realidade é bem diversa, porquanto nele coexistem elementos do modelo abstrato e do modelo concreto, verificando-se pujante tendência moderna de concentração da apreciação, em tese, de todas as controvérsias constitucionais relevantes perante o Supremo Tribunal Federal, a ensejar a prevalência da via principal de controle sobre a via de exceção. Ademais, como visto, na Constituição de 1988, o controle repressivo ou posterior é, via de regra, exercido em caráter de exclusividade pelo Poder Judiciário, ressalvadas as hipóteses em que o próprio texto constitucional admite o controle a posteriori por parte de outros órgãos estatais (como, v.g., nos artigos 49, V, e 62, da Constituição de 1988).

Nesse quadrante, é ilativo que a contextura constitucional em que foi aprovada a Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal difere diametralmente da conjuntura constitucional atual, sobretudo no que respeita à transformação ocorrida no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade desde dezembro de 1963, a colocar em dúvida a validade do mencionado verbete sumular em face da Constituição de 1988. Na bem lançada observação de Dutra, ad litteris et verbis:

Cumpre salientar que o referido verbete foi estabelecido em sessão plenária de 13/12/1963, e publicado no DJ de Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 151, tendo como referência legislativa o art. 77, da Constituição Federal de 1946.

Contudo, o referido artigo 77 não compreendia todas as competências que hoje contém o art. 71, bem como não continha disposição expressa, como a do inciso IX, que demonstra ser a atuação do referido TCU de mera observância da ordem legal, e não de questionamento da mesma.

Além do que, a reserva de Plenário não existia, a aplicação imediata, bem como a efetividade dos direitos e garantias fundamentais não era assegurada, e o momento histórico era completamente diferente do atual.

Não há como se sustentar a validade do referido verbete na ordem constitucional vigente.25

Com efeito, de 1963 até a vigência da Constituição de 1988, variadas e significantes foram as transformações ocorridas no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Não só esse sistema sofreu mudanças substanciais, como também a organização do Estado brasileiro, a sua estrutura federativa, o desenvolvimento do regime democrático e a proteção dos direitos fundamentais do cidadão.

É cediço que uma nova ordem constitucional pode operar modificações de matizes multifárias em um determinado corpo social. Algumas podem ser bastante radicais, provocando autêntica reviravolta no sistema jurídico e no contexto político-institucional do País; outras vêm a lume apenas para corrigir imperfeições da organização jus-política pretérita, sem delir as suas estruturas fundamentais.

A Constituição de 1988, comparativamente à Constituição de 1946 (sob cuja regência foi editada a Súmula nº 347 do Supremo), estabeleceu alterações profundas no sistema de controle de constitucionalidade, a saber: o alargamento da legitimação para a propositura da representação de inconstitucionalidade, a instituição da ação declaratória de constitucionalidade, o controle de constitucionalidade das omissões legislativas, a criação da arguição de descumprimento de preceito fundamental (possibilitando um controle abstrato da recepção constitucional e do direito municipal em face da Constituição Federal) e a sistematização de técnicas específicas de decisão em sede de controle concentrado (como, e.g., a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e a interpretação conforme a Constituição).

Tais mudanças indicam o estabelecimento de um novo paradigma no exercício da fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Representam verdadeira evolução no controle de constitucionalidade brasileiro, o qual, embora complexo, mune-se cada vez mais de instrumentos específicos de salvaguarda do sistema jurídico objetivo contra atos e omissões estatais com ele incompatíveis. Daí porque a preocupação manifestada pelo legislador constituinte com o desenvolvimento de um processo de controle direto das normas inconstitucionais, voltado exclusivamente à defesa da ordem jurídica objetiva, a evidenciar uma prevalência do modelo abstrato sobre o modelo difuso quando se cuida de verificar a conformidade de leis ou atos normativos com a Constituição Federal.

Nesse compasso, não se pode provocar o engessamento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, manietando-a a um entendimento consolidado em tempos prístinos, e cristalizado sob um contexto constitucional bastante distinto do atual. Nessa linha de considerações é que se põe em xeque a subsistência da Súmula nº 347 do Supremo em face da Constituição de 1988, uma vez que os fundamentos jurídicos que lhe deram origem não mais se sustentam no ordenamento constitucional estabelecido pela Constituição de 1988. Nesse sentido são as atiladas ponderações do Ministro Gilmar Mendes, verbatim:

...é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.26 (Grifou-se e sublinhou-se)

A essa luz, na ordem instaurada pela Constituição de 1988, não se revelam razoáveis os argumentos formulados a favor da possibilidade de órgãos não-jurisdicionais exercerem controle concreto de constitucionalidade. Diante da significativa ampliação dos entes e órgãos legitimados a deflagrarem o processo de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, parece que o constituinte pretendeu concentrar o exame de todas as controvérsias constitucionais relevantes no órgão de cúpula do Poder Judiciário, incumbido de guardar a Constituição e de dar a última palavra acerca de sua interpretação. Com isso, não houve, por certo, supressão alguma do controle difuso de constitucionalidade, mas tão somente uma redução de seu significado para o sistema de controle que atualmente medra no Brasil, cada vez mais preocupado com a proteção – célere e eficaz – da ordem jurídica total.

Outrossim, não mais subsiste no contexto constitucional atual a diferenciação entre o afastamento da aplicação de lei inconstitucional e a sua declaração de inconstitucionalidade, feita pelo Ministro Relator do RMS nº 8.372 para concluir pela possibilidade de os Tribunais de Contas apreciarem a constitucionalidade de leis e atos do Poder Público. Como assentado alhures, doutrina e jurisprudência modernas entendem que o órgão que nega aplicação a lei ou ato normativo, ao fundamento de sua inconstitucionalidade, está, precisamente, realizando verdadeiro controle incidental de constitucionalidade. E, na ordem constitucional inaugurada pela Constituição de 1988, o controle incidental de constitucionalidade é de competência exclusiva do Poder Judiciário, isto é, somente órgãos que integrem o Poder Judiciário é que podem exercer o controle de constitucionalidade à luz de um caso concreto. As exceções, quando existentes, devem vir expressas no próprio texto constitucional. Segundo Dutra, in litteris:

...competência para o exercício do controle de constitucionalidade é uma prerrogativa do Poder Judiciário. Esta afirmativa está respaldada pela própria razão de ser do controle de constitucionalidade, isto porque o referido controle faz parte do mecanismo dos checks and balances que norteiam a estrutura de separação de funções, acolhida por nossa Carta Constitucional, em seu art. 2º.

(…)

Frise-se que exceções às funções típicas dos Poderes instituídos pela Magna Carta devem ser expressas no texto da mesma, não sendo possível incluí-las através de interpretações ampliativas, já que se trata de matéria cuja interpretação deve ser feita, sempre, de modo restritivo.

Por conseguinte, dúvidas não podem existir quanto à exclusividade do Poder Judiciário em exercer o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, não sendo viável tal exercício por parte de Tribunal de Contas, que não é órgão do referido poder.27 (Grifou-se e sublinhou-se)

Quer dizer, o exercício de controle incidental de constitucionalidade por órgão não-jurisdicional, por ser exceção à regra geral, deve constar de forma expressa no texto da Constituição de 1988, como efetivamente é feito em relação ao controle exercido pelo Congresso Nacional sobre os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V), bem como sobre as medidas provisórias adotadas pelo Presidente da República (art. 62). No entanto, não se vislumbra no texto constitucional de 1988 a outorga de competência ao Tribunal de Contas da União para emitir juízo de constitucionalidade sobre as leis e os atos normativos do Poder Público.

Com efeito, se o sistema constitucional instaurado pela Constituição de 1988 permite que todo e qualquer órgão do Estado questione a compatibilidade de lei ou ato normativo com a Constituição Federal, em patente exercício do controle incidental de constitucionalidade, ter-se-ia, então, que o princípio de presunção de constitucionalidade das leis teria a sua importância e a sua aplicabilidade significativamente reduzidas, uma vez que quaisquer dos Poderes e órgãos constituídos poderiam, sob o fundamento de inconstitucionalidade, subtrair-se da aplicação de lei formal vigente, o que comprometeria a indenidade de princípios distintamente importantes para o Estado de Direito, como a segurança jurídica e a estrita legalidade.

Assim, a evolução do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – com clara intensificação do controle abstrato de normas –, o monopólio exclusivo do Poder Judiciário no exercício do controle repressivo de constitucionalidade (com as exceções expressas do texto constitucional), e a ausência de atribuição, pela Constituição de 1988, de competência ao Tribunal de Contas da União para exercer controle de constitucionalidade, são fatores que infirmam expressivamente a validade da Súmula nº 347 na ordem constitucional estabelecida pela Constituição de 1988, sugerindo a revisão do seu verbete pela atual composição do Supremo Tribunal Federal.

Sobre o autor
Gabriel Machado Nidejelski

Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NIDEJELSKI, Gabriel Machado. O Tribunal de Contas da União e o controle de constitucionalidade.: Uma releitura da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3318, 1 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22342. Acesso em: 18 nov. 2024.

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