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O anel de Giges: inteligência e efetividade no combate à corrupção

Agenda 07/08/2012 às 15:45

Se os níveis tático e estratégico realmente querem inibir determinados desvios da área operacional, por que medidas preventivas não são tomadas? Ora, porque interessa tratar casos de corrupção como se fossem fatos isolados e não acontecimentos sistêmicos. Pune-se o incauto que foi pego... E permanece o sistema.

INTRODUÇÃO

A corrupção encontra-se difundida nos mais variados níveis seja na administração pública, seja nos setores privados. As sociedades complexas, com interesses multivariados propiciam manobras fraudulentas de todos os matizes, manobras estas propositalmente realizadas por grupos ou pessoas mal intencionadas com o objetivo de fomentar a corrupção. Apenas para exemplificar de forma genérica, certos negócios que envolvem o Estado e organizações de vários tipos, como as licitações e convênios, têm sido objeto de extensas apurações administrativas e criminais.

As forças reguladoras têm cada vez mais investido em Inteligência, Auditoria e investigações especializadas com a finalidade de dar combate a tais problemas. Contudo, o que se percebe é a falta – ainda – de ações sistêmicas que possam dar suporte à efetividade que a tarefa demanda. Um exemplo disso é a falta de comunicação entre unidades especializadas de combate a crimes contra o patrimônio, por exemplo, e as unidades que manipulam dados produzidos pelas inteligências fiscais e financeiras. Naturalmente o poder judiciário tem se esmerado em preencher tal lacuna, quando a autoridade policial ou o promotor de justiça pede a quebra do sigilo fiscal e financeiro das organizações e/ou indivíduos investigados... Contudo, normalmente tais iniciativas tomam corpo no decorrer de um inquérito ou de um processo criminal para apuração de delitos já cometidos, sem o desejável viés da prevenção.

E tal prevenção para ser efetivada precisa de treinamento especializado em todos os níveis de atuação do combate à corrupção... Mais que treinamento, talvez seja necessária a compreensão do processo em que se estimula a corrupção.

As pessoas nas organizações de qualquer tipo precisam aprender a reconhecer comportamentos e atitudes que – se não são, exatamente, sempre refletoras de fraudes e corrupção – pelo menos são indicativas de que algo anda errado: pode ser que haja necessidade de rever certos processos organizacionais. Pode ser que determinados setores da organização estejam inadequados para o assunto demandado. Poder ser inépcia das lideranças. Ou pode ser sinal de que há corrupção. A complexidade em reconhecer e classificar o evento faz parte da dificuldade de se combater os corruptos.

Só se combate o inimigo se houver conhecimento do mesmo.  Só se planeja o combate e a extinção da corrupção nas organizações se os combatentes souberem o que investigar. Este despretensioso trabalho pretende abordar alguns sinais, red flags, de corrupção nas organizações. Tem o objetivo de municiar o auditor, o investigador, o corregedor e outros atores empenhados na busca e no esclarecimento de casos de corrupção.

Pretende, ainda, colaborar no desenvolvimento de uma visão sistêmica no que se refere à busca por algumas evidências, sinais, vestígios e indícios de casos de corrupção. 

As observações e comentários deste trabalho são frutos da pesquisa acadêmica e da vivência do autor no Departamento de Inteligência e Combate à Corrupção – DICC, da Corregedoria Geral da Administração – CGA, Casa Civil, Governo do Estado de São Paulo.


COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES

É importante lembrar que todas as atividades podem ser classificadas em três níveis: o estratégico, o tático e o operacional.  O primeiro nível, estratégico, está ligado à alta direção, àqueles que têm a responsabilidade de dirigir a organização, estabelecer os seus parâmetros mais abrangentes. O nível tático, normalmente, está ligado à média gerência, àqueles que têm a responsabilidade de traduzir as diretrizes estratégicas e torná-las materializadas junto ao pessoal operacional. E, finalmente, o nível operacional, que executa as ordens oriundas do nível tático, em cumprimento às diretrizes emanadas do nível estratégico.

O conhecimento desta dinâmica propicia uma boa visão da organização, contudo é extremamente perigoso basear-se tão somente nela para definir a importância de cada nível decisório, haja vista que nem sempre tal importância, principalmente em situações pontuais, está vinculada ao nível hierárquico dos atores na organização. É fácil constatar a afirmação anterior em exemplos práticos. Comumente o policial responsável pelo patrulhamento das ruas poderia ser classificado como operacional no contexto aqui discutido. Sua atividade decorre de um planejamento anterior, oriundo dos níveis tático ou estratégico e, no entanto, a importância de algumas de suas decisões pode ser relevante tanto ao nível tático como até mesmo ao nível estratégico da organização, no caso o departamento de polícia. A forma como o policial trata o cidadão pode auxiliar na criação de uma imagem positiva ou negativa de toda a polícia. Mas, decisões mais críticas, como o uso da arma de fogo, conforme determinadas circunstâncias, podem ter uma importância fundamental – estratégica ou tática – para toda a polícia e, até mesmo, para o governo de uma cidade ou um estado haja vista os possíveis desdobramentos decorrentes de uma forma correta ou incorreta da ação.

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Todo administrador tem consciência desta problemática, principalmente no que concerne ao pessoal de linha de frente.

Qualquer pessoa com vivência de fábrica sabe que, quanto a seu funcionamento, gerentes – e até mesmo diretores – não fazem muita diferença. Numa obra de construção civil acontece coisa parecida com os engenheiros responsáveis. Em todos esses casos, quem ‘toca’o negócio pra frente, na prática, são sempre os supervisores, mestres-de-obras ou líderes, ou seja, aqueles que comandam diretamente as equipes de trabalho. Eles podem decretar o sucesso (ou o fracasso) de uma campanha de contenção de despesas, impedir (ou facilitar) a deflagração de uma greve, esclarecer (ou deturpar) as informações que a direção da empresa deseja transmitir a todos os trabalhadores, etc. (LOBOS, 1991.p.41).

Portanto, é forçoso lembrar que a importância das decisões nas organizações independe – muitas vezes – da questão hierárquica e muito mais das especificidades da decisão. A prática da corrupção está absolutamente vinculada à questão da decisão. E muitas vezes tais especificidades são utilizadas em favor dos corruptos e de suas práticas.  E aí está um cenário bastante propício à corrupção: o agente operacional, o que está à frente da atividade e que tem o poder de decidir, ainda que numa instância primária, pode ser uma vertente de corrupção difícil de combater: difícil, porque quando se corrompe, apesar de sua ação exclusiva, dá ciência a outros níveis hierárquicos (ou seja, outros níveis hierárquicos também dividem o bolo da corrupção), pois como instância primária, como instância que inicialmente se envolve com o problema, está comprometida em não permitir que outras instâncias se envolvam na questão, tornando ineficaz o objeto pelo qual o dinheiro (ou qualquer outro interesse) é cambiado: a impunidade ou determinada ação ou omissão. Esta dinâmica é muito comum. Um fiscal, por exemplo, pode ser classificado como o agente operacional de uma determinada agência fiscalizadora. Se corrupto, dificilmente suas ações não serão identificadas pelos seus superiores (os níveis tático e estratégico da organização). Se suas ações não são questionadas, quase sempre o bolo está sendo dividido. Uma operação da Polícia Federal em 2010, no Estado do Pará, refere-se a uma dinâmica parecida:

A facilitação e os pagamentos ilícitos se davam através de despachantes, que tinham íntima relação com os servidores. A corrupção era dividida em dois níveis: os funcionários de baixo escalão recebiam valores para desempenhar atos ou dar agilidade à tramitação de processos; e funcionários do alto escalão cobravam um percentual do valor total dos planos de manejo florestal para aprovar o plano (DIÁRIO DO PARÁ, 2010).

Outros casos se multiplicam nas mais diversas organizações. Descrições como “na época, a propina era dividida em três partes, sendo que uma delas iria para a primeira-dama” (NOTÍCIAS TERRA, 2011) são relativamente comuns no depoimento dos indiciados. Contudo, tais depoimentos dados na fase policial, frequentemente são mudados já no processo judicial, dificultando a punição dos níveis mais privilegiados que compartilhem do fruto da corrupção. Desta forma, a qualidade da prova obtida na fase inicial pode dificultar manobras posteriores e, muitas vezes, pode ser determinante para a punição dos criminosos.

Na verdade, o que é importante ressaltar, é que o nível operacional das organizações, quando o assunto é a prática da corrupção, é aquele que se torna mais visível em todo o processo, protegendo – de certa forma – os níveis tático e estratégico com certa invisibilidade. Tal propriedade protege aqueles níveis seja na fase policial, seja na fase judicial, primeiro porque o flagrante normalmente ocorre com o operacional. Segundo porque os níveis mais elevados têm mais tempo para se mobilizar e dispõem de maiores recursos para enfrentar o processo judicial.

Jesus (2008, p.66-67) elenca possíveis causas da corrupção:

-Legislação inadequada ao combate e à prevenção da corrupção;

-Falhas na formação do caráter ou na personalidade do corrupto;

-O exercício do poder como atração;

-O enriquecimento sem escrúpulos (...);

-Frustrações pessoais decorrentes da ausência de conquista de objetivos econômicos (...);

-Cultura materialista e consumista da sociedade neo-capitalista;

-Busca do poder e pouco controle social no exercício desse poder;

-Ausência de valores éticos e conflitos de valores pessoais;

-Características de personalidade; (...).


O ANEL DE GIGES E A INVISIBILIDADE

Os sábios gregos já faziam referência a essa propriedade que tão eficientemente protege os corruptos e dificulta o combate à corrupção: a invisibilidade. Giges era um pastor honrado, sempre pautado por um comportamento nobre, a serviço do rei. Descobriu um anel que lhe permitia ficar invisível. A partir deste momento, mudou a sua personalidade:

Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tornava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para não ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens (PLATÃO).

O investigador que se dedica ao combate à corrupção deve tentar compreender a organização em que o investigado ou os investigados trabalham. A invisibilidade propicia a perpetuação da corrupção. Se o combate à corrupção só atingir o nível operacional, que pode ser descartado facilmente, o mecanismo da corrupção, o processo no qual a mesma se desenvolve, permanecerá intocado. Por outro lado, se as atividades de Inteligência buscarem transcender o que é desenvolvido na ponta, no caso da corrupção, e aprofundarem os trabalhos, visando identificar os escalões tático e estratégico, a efetividade será muito maior.

As organizações também precisam aumentar os controles, através de instrumentos que privilegiem a transparência administrativa.

Um fator que poderia contribuir para tal controle é a medida preventiva. Se os níveis tático e estratégico realmente querem inibir determinados desvios da área operacional, por que medidas preventivas não são tomadas? Ora, porque interessa tratar casos de corrupção como se fossem fatos isolados e não acontecimentos sistêmicos. Pune-se o incauto que foi pego... E permanece o sistema. Aquele que foi pego é sacrificado em nome do esquema... As organizações sérias, após acontecimentos que demonstrem desvios de seus funcionários, imediatamente adotam medidas preventivas... Se não o fazem, este é outro identificador de que há comprometimento de níveis mais altos da organização.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:

As organizações precisam de novos paradigmas no combate à corrupção. Um bom começo é entender a corrupção sistemicamente. Apesar de existirem, são raros os casos de corrupção como um fenômeno isolado. Na maioria das vezes, o fenômeno da corrupção para existir e se perpetuar nas organizações dependem de uma estrutura fortemente arraigada na administração – em níveis operacionais, táticos e estratégicos. E o elemento determinante de característica sistêmica é a invisibilidade de que desfruta o principal artífice da corrupção. Seja porque todo o “trabalho sujo” é feito pelo nível operacional, seja porque a ausência de valores éticos dos dirigentes e do próprio clima organizacional propicia a cultura de “quem pode se dá melhor”, seja ainda porque a ambição desmedida enlouquece determinados dirigentes sem a devida formação ou com falhas de caráter. Sejam quais forem as razões, a reflexão desenvolvida pelo protagonista da corrupção é a mesma de sempre: uma certa sensação de impunidade, alimentada pela inadequação da legislação.

Conforme a Agência O Globo (2007), uma pesquisa mostra que nove dentre os dez casos relatados acima[1] ainda se arrastam nos tribunais, e a perspectiva de alguns procuradores da República é de que, quando os casos chegarem ao fim, muitos dos crimes cometidos estarão prescritos (JESUS, 2008, p.84).

Portanto, para que os corruptos não desfrutem da invisibilidade que acoberta suas manobras e identidades, talvez o melhor remédio seja esclarecer – cada vez mais – a natureza e as consequências do crime de corrupção – seja ativa, seja passiva. Estabelecer critérios objetivos de fiscalização para todos os níveis: estratégico, tático e operacional. Diminuir a importância das decisões meramente pessoais e aumentar a importâncias das soluções sistêmicas, baseadas em procedimentos que valorizem o bem comum e os interesses da organização como um todo. Esta metodologia de forma nenhuma causará desprestígio para aquele que exerce a liderança legítima. Ao contrário, poderá ser a vacina que impediria os nossos Giges modernos de caírem na tentação.


REFERÊNCIAS

DIÁRIO DO PARÁ. Fraudes na Sema terminam em prisões. Publicado em 11/12/2010. Disponível em: http://diariodopara.diarioonline.com.br/N-121959-PF++FRAUDES+NA+SEMA+TERMINAM+EM+PRISOES+.html. Acesso em: 10/03/2012.

JESUS, Fernando de. Comportamento Econômico, Corrupção e Inteligência: Uma Abordagem Metacognitiva. Goiânia: AB, 2008.

LOBOS, Júlio. Qualidade através das pessoas. São Paulo: J.Lobos, 1991.

NOTÍCIAS TERRA. Primeira-dama centralizou propina em Campinas, diz testemunha. Publicado em 30/05/2011. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5156831-EI5030,00-Primeiradama+centralizou+propina+em+Campinas+diz+testemunha.html. Acesso em: 10/03/2012.

PLATÃO. A República. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.


Notas

[1] Casos de corrupção analisados no livro (Nota do Autor).

Sobre o autor
Herbert Gonçalves Espuny

Doutor pela Universidade Paulista - UNIP, com pesquisa específica na área de Inteligência. Mestre na área interdisciplinar Adolescente em Conflito com a Lei, pela Universidade Bandeirante de São Paulo - UNIBAN. Administrador, registrado no CRA-SP. Bacharel em Direito. Corregedor, na Controladoria Geral da Administração, Governo do Estado de São Paulo. Professor universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESPUNY, Herbert Gonçalves. O anel de Giges: inteligência e efetividade no combate à corrupção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3324, 7 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22370. Acesso em: 18 nov. 2024.

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