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Anteprojeto de Código Penal: análise crítica da Parte Geral

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Agenda 24/09/2012 às 10:59

A Parte Geral do Código Penal vai além do conteúdo formal de suas normas, para orientar o intérprete sobre qual o conteúdo axiológico existente.

1. A relevância da Parte Geral do Código

A reflexão que deve ser desenvolvida quando se estrutura a Parte Geral do Código Penal em um regime democrático é muito mais ampla do que simplesmente a preocupação com o estabelecimento de regras de direito positivo a influenciar na aplicação da legislação penal.

Isso ocorre porque, ao definir o conjunto normativo da Parte Geral do Código Penal, tem o legislador a oportunidade de manifestar a qual sistema se relaciona o Direito Penal de determinado País, sendo a partir da configuração do conjunto de regras fixadas neste conjunto legislativo que se tem a definição sistêmica de toda a estrutura punitiva de uma sociedade.

Em outras palavras, a Parte Geral do Código Penal vai além do conteúdo formal de suas normas, para orientar o intérprete sobre qual o conteúdo axiológico existente, de sorte que sempre foi objeto das mais detalhadas preocupações pelos diferentes povos, pois de seu delineamento pode ser oportunizado campo fértil para práticas autoritárias e, também, das linhas traçadas, pode ser estabelecido um rigoroso mecanismo de preservação democrática e do ser humano.

Como exemplo, observe-se que os modelos autoritários europeus do século passado somente foram possíveis porque os mecanismos gerais de interpretação do Direito Penal o permitiam.

Assim é que se valendo da estrutura de pensamento própria do positivismo jurídico, CARL SCHMITT e EDMUND MEZGER, entre outros, conseguiram formular um sistema de pensamento muito bem estruturado, e formalmente bem desenvolvido, mas que foi absolutamente apto a produzir as ações de extermínio do Estado Nazista, assim como foi absolutamente funcional em justificá-las quando questionadas.

Justamente o momento seguinte da história europeia é o da formulação de Códigos Penais dotados de Parte Geral, a estabelecer rigoroso controle dogmático sobre as estruturas de direito positivo, a fim de salvaguardar a sociedade de que em momentos de irracionalismo, ou mesmo de infelicidade histórica, decorrente da estruturação do poder comandado por pessoas de índole autoritária, houvesse a destruição das próprias vigas mestras da sociedade livre e democrática.

Observe-se neste, ponto, ser bastante relevante afirmar que o legislador, na sua sublime tarefa, em um momento de consolidação democrática, como o vivenciado na atualidade no Brasil, deve ir além do estabelecimento regras formais que pareçam aptas a equacionar problemas momentâneos e, efetivamente, estruturar o sistema penal de forma que se no futuro, a infelicidade fizer ressurgir o exercício do poder por pessoas cujo germe do autoritarismo esteja presente, haja mecanismos de controle eficazes dentro do sistema a impedir que o desejo ocasional de quem momentaneamente poder tem, amplie excessivamente o seu poder de punir, guiando a sociedade para a degradação de seus valores vetores que permitem o desenvolvimento dos seres humanos.

Assim, há que se ter claro que do conjunto normativo da Parte Geral do Código Penal se pode extrair um sistema mais afinado ao normativismo próprio dos modelos que forjaram todos os autoritarismos na história humana até hoje, ou de rigoroso controle dogmático a impedir que possa, a qualquer tempo, quem quer que seja, ampliar excessivamente o poder punitivo do Estado.

Nesse sentido, o anteprojeto da Parte Geral, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, especificamente no Senado da República, causa absoluta preocupação, pois desloca a atual sistemática do Direito Penal brasileiro das bases liberais, desenvolvidas no pós- Estado nazista, quando a maior fonte de preocupações era dotar a sociedade de mecanismos próprios de controle sobre o poder punitivo, impedindo pudesse ele se dilatar conforme desejos momentâneos, com risco permanente ao Estado democrático, para o modelo normativo, a partir de novas pregações neokantistas, estruturado nos mesmos modelos teóricos que deram azo ao desenvolvimento de todas as ditaduras européias do século passado e desaguaram na segunda guerra mundial.

Embora todo o respeito pela designada, pelo Senado Federal, em 18 de outubro de 2011, mas fica evidente que, no desejo de adotar postura precipitadamente modernizada, acabou, no ponto específico ora em comento, por ser ultrapassada e foram abraçadas, sem reflexão, construções teóricas que tentaram combater na Europa, mais precisamente na Alemanha, as conquistas sociais dos anos 1950 e seguintes e já foram rechaçadas nos países em que foram propostas e pensadas, justamente porque se verificou que novamente ficaria a sociedade à mercê do desejo arbitrário momentâneo de quem detivesse o poder.

As teorias em questão, com forte matriz neokantista, foram formuladas na Alemanha, fundamentalmente nas décadas de 1970 e 1980, e somente agora chegaram ao Brasil, por força de demora decorrente dos processos de tradução, e o chegam em um momento em que já se manifestou a integral rejeição delas pela comunidade científica europeia e pelos parlamentos dos diferentes países, porém, como recém-imersas no território nacional, assumem por aqui os ares de novidade e por puro desejo de ser moderno acabam por ser propostas.

A atual repulsa ao retorno do Direito Penal ao modelo do positivismo jurídico, manifestada em todo o território europeu, provavelmente na velocidade do transporte de idéias da Europa para o Brasil, acima destacada, por aqui chegue em 20 ou 30 anos, mas uma vez aprovada reforma do sistema de Direito Pátrio, de forma já tardia, pois ter-se-á, então, o sistema brasileiro estruturado nas mesmas bases teóricas do estado nazi-fascista e, de forma adequada, refutadas e superadas quando da reforma penal da Parte Geral do Código Penal de 1984.

A este propósito, convém mencionar que a Parte Geral do Código Penal brasileiro não é tão antiga quanto se tenta afirmar, pois se é verdade que o Código como um todo foi articulado na década de 1940, também o é que a Parte Geral foi reformada, com muita reflexão e criterioso debate no meio jurídico e parlamentar, em 1984, quando o Brasil vivia um momento bastante especial de luta da sociedade civil pela abertura democrática, mesmo movimento que deságua nas primeiras eleições presidenciais livres, após anos de ditadura militar, e na magnífica Constituição Federal de 1988, com seus vários preceitos de garantia e defesa do ser humano.

Não por acaso, os nomes notáveis da Comissão de reforma penal de 1984 (RENÉ ARIEL DOTTI, MIGUEL REALE JUNIOR e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO) são de pessoas que se notabilizaram nos anos antecedentes pelo enfrentamento da ditadura e na luta pela abertura democrática.

O que se observa, portanto, é que a Parte Geral do Código Penal brasileiro, forma um conjunto legislativo, quer pela sua origem, quer pelo momento histórico em que se desenvolveu, ou, ainda pela ampla reflexão social em cenário de defesa da democracia, dos mais relevantes de toda estrutura jurídica pátria, sendo ainda absolutamente adaptado à sociedade atual, notadamente com a influência das regras constitucionais advindas da carta de 1988.

Há sim alguma precipitação em abandonar rica página da história democrática brasileira, para, sem o mesmo nível de reflexão e cautela fazer o modelo punitivo brasileiro seguir outra trilha, ressalte-se, até porque, não há qualquer problema real na aplicação da atual parte geral do Código Penal brasileiro.

Pode sim haver debate a fim de questionar se o conjunto do Código Penal brasileiro encontra-se apto para os presentes tempos, na medida em que há previsão de delitos que já não mais encontram suporte no pensamento atual, assim como outros com penas que determinadas correntes de pensamento consideram muito reduzidas. Também, pode-se refletir sobre a multi edição de legislações havidas após a corporificação do Código na década de 1940 e que demandariam sua fusão em um único documento.

Ocorre, porém, que quando se refere a todos esses temas, está se tratando exclusivamente da Parte Especial do Código Penal e da Legislação Penal Extravagante, ou seja, do conjunto de regras que definem as condutas delitivas, jamais das regras gerais estabelecidas na reforma de 1984 e as adicionadas pela Lei nº 9.714/1998 e que se encontram plenamente adaptadas à sociedade atual.

A preocupação surge porque na disfarçada atualização da legislação penal brasileira o que se promove é um deslocamento da Parte Geral da estrutura de pensamento calcada no modelo lógico real, com suas conhecidas barreiras onto-ontológicas do pós Estado Nazista, para o modelo normativista, que foi justamente o utilizado pelo Estado Nazista para conseguir produzir suas atrozes práticas.

Nesse sentido, é bastante relevante observar que quando se realiza qualquer trabalho de reforma da legislação penal, deve se ter em conta que a questão é mais profunda que a da definição de um conjunto normativo a regrar o que é considerado crime em uma sociedade, mas, está se definindo o próprio modelo de Estado, pois a legislação penal que tenha como base a estrutura filosófica autoritária acabará por produzir autoritarismos, enquanto que aquela que tenha em sua concepção a influência das correntes liberais inevitavelmente ajudará a sociedade a reafirmar seus compromissos democráticos e de respeito ao ser humano.

Não por outra razão, há que se ter cautela elevada ao alterar no Código penal brasileiro tudo aquilo que seja proveniente do pensamento que estruturou a reforma penal da Parte Geral do Código em 1984. Conteúdos puramente normativos evidentemente podem alterar-se dentro de nuances que a sociedade vai delimitando a cada tempo, porém absolutamente temerária qualquer modificação da base do sistema, pois se em 1984 a fonte foi o movimento democratizante do Brasil e de combate às ações autoritárias o seu contraponto inexorável é a afirmação da estrutura alinhada ao modelo ditatorial.

Um dado complementar bastante importante diz respeito ao compromisso histórico do Estado brasileiro com os avanços mais relevantes no campo dos direitos civis, inobstante os vários discursos autoritários que se fizeram presentes e ainda margeiam a sociedade, impulsionados por uma exploração populística que se faz dos problemas da criminalidade.

Quando criado o Império brasileiro, o estabelecimento de que haveria um imperador e não um rei já não foi casual, deitou suas raízes nas pregações de renovação de algumas monarquias orientadas pelo pensamento iluminista, que acabou por forjar a revolução mexicana, a revolução gloriosa (Inglaterra), a revolução francesa e a independência norte-americana, entre vários outros movimentos que consagraram a dignidade humana.

O Código Criminal do Império brasileiro foi ao seu tempo o mais comentado e referendado do mundo, justamente por ser a primeira legislação criminal a incorporar o pensamento iluminista. O Brasil foi um dos primeiros países do planeta a proibir as penas crueis, o uso indiscriminado de algema, e várias outras demonstrações de seu compromisso com o elevado respeito à condição humana.

Claro que esses dados, além de ajudarem na construção de um povo altamente solidário e dotado de sentimentos positivos em relação aos demais, apesar de suas várias mazelas sociais geradoras de conflitos internos como gênese da sua criminalidade, também estabeleceu o Brasil como nação respeitada mundialmente na condição pátria livre, democrática e de respeito ao ser humano.

O Código Penal atual, a bem da verdade, careceria sim de algumas alterações a torná-lo mais eficiente no que tange aos delitos em espécie, unificando a legislação extravagante existente em um único corpo normativo, mas jamais está a demandar modificações nas bases estruturais definidas pela reforma da Parte Geral de 1984 e o lamentável é que de solavanco, em poucos meses, sem a adequada reflexão, de maneira quase impositiva, a pretexto de modernizar a legislação penal brasileira, na Parte Geral o que se fez foi atrasá-la, recolocando-a no modelo justificador do autoritarismo nazi-fascista e rompendo com a histórica cruzada brasileira de modelos penais comprometidos com a dignidade humana.

Com base nessas perspectivas iniciais, passa-se neste estudo a uma breve e sintética análise de pontos da Parte Geral do anteprojeto de Código Penal brasileiro que, de forma mal disfarçada, não alteram meros conteúdos normativos a fim de dinamizar o sistema, mas rompem com a estrutura democrática e canalizam o modelo punitivo para o viés autoritário.   


2.O anteprojeto de Código Penal: análise específica da Parte Geral

O maior mérito do anteprojeto de Código Penal, no que refere à proposta de Parte Geral, está na readequação da temática da aplicação da lei penal no tempo e no espaço aos avanços globais havidos.

Nesse sentido, o conjunto normativo iniciado com o artigo 1º ao artigo 10 do anteprojeto se insere em um primeiro grupo a ser analisado.

O artigo 1º altera, em relação ao atual dispositivo do Código Penal em vigor, apenas ao agregar o parágrafo único, que estabelece que não haja pena sem culpabilidade.

Em verdade, há um pecadilho técnico que se constata quando se observa que possivelmente a fonte da inserção da regra em questão foi o debate inaugurado por CLAUS ROXIN, em seu texto traduzido no Brasil sob o título “A culpabilidade como critério limitativo da pena”, em que se desenvolve debate em relação à função exercida pela culpabilidade na imposição da pena, fundamentalmente discutindo se a culpabilidade fundamenta ou limita a pena.[1]

Porém, a leitura parcial da obra de ROXIN pode realmente conduzir ao equívoco de imaginar que quando se estabelece o debate acima destacado esteja meramente discutindo a pena, quando a afirmação de que a culpabilidade é limitadora da pena, na obra de ROXIN, decorre do fato de que referido autor não emprega o termo culpabilidade com o sentido em geral utilizado e, em especial, utilizado no próprio anteprojeto de Código Penal, não por outra razão, ao propor a sua conceituação de crime, não emprega o termo culpabilidade para referir ao terceiro elemento, como tradicionalmente se faz, mas emprega a expressão responsabilidade que muitos anos antes já havia sido proposta por MAURACH, porém dentro de um critério de adição em relação à culpabilidade, ou seja, pretendia garantir aos inimputáveis a possibilidade de defesa com lastro nas causas de exculpação.

Assim, o anteprojeto, a partir de uma leitura parcial das afirmações teóricas de ROXIN, acaba por confundir o papel da culpabilidade na estrutura de Direito Penal, pois a associa limitativamente à pena, quando, em verdade, é requisito do próprio crime e a pena uma decorrência de sua prática, até porque o emprego do termo culpabilidade no anteprojeto se refere ao que ROXIN nomina como responsabilidade.

Assim, quisesse a lei promover o reforço proclamativo do critério dogmático garantista, de que a punição decorre da comprovação de culpa, deveria fazê-lo de forma cientificamente mais precisa, ou seja, afirmando “NÃO HÁ CRIME SEM CULPABILIDADE” e, ressalte-se, como o pressuposto único no estado democrático para a imposição da pena é o cometimento do crime, por via de consequência a culpabilidade estaria entre os elementos essenciais para a aplicação de penas.

Agora, a afirmação, como lançada no anteprojeto, vinculando a culpabilidade à pena, além de ser tecnicamente imprecisa, demonstra apreciação puramente parcial e superficial da produção intelectual havida no Direito Penal nos últimos anos, o que já é suficiente para desaconselhá-la, mas ainda pode ser fonte de futuras confusões interpretativas sobre o papel exercido pela culpabilidade na estrutura do delito, ampliando o campo da chamada “teoria brasileira” do crime, decorrente de um erro de tradução e leitura parcial da obra de HANZ WELZEL, realizado no passado, e que submeteu parte da produção doutrinária penal brasileira até mesmo à ironia internacional, pela sua total ausência de cientificidade e base teórica.

Ademais, inicia a odiosa tentativa, de forma mal disfarçada, de romper com as bases onto-ontológicas da Parte Geral advinda da reforma penal de 1984 e, ressalte-se, fruto dos movimentos libertários e democratizantes europeus do século passado, e atrelar o sistema penal ao normativismo neokantista orientador dos Estados nazi-fascistas.

Ao tentar disciplinar a conceituação de crime, por impulso puramente normativo e não dogmático,  decorrente de estruturas lógico-reais, o que se faz é afirmar que a lei pode, a qualquer tempo, dizer o que se concebe por crime, sem qualquer rigor técnico ou científico, e assim em um momento afirmar que ele é conduta típica, antijurídica e culpável, em outro que ele é conduta típica e antijurídica e porque não, em outro, que ele é qualquer ato contrário ao são sentimento, como fizeram os nazistas; ou que ele é algo contrário à revolução, como na China maoísta e assim sucessivamente nos mais diferentes Estados autoritários.

Em uma democracia, o conceito de crime não é normativo, mas dogmático, decorrente de bases lógico-reais e, portanto, como em todas as nações democráticas do planeta, inclusive a Alemanha, de onde, aparentemente, em uma leitura parcial e superficial da referida obra de ROXIN, tentou-se importar a ideia do parágrafo único do artigo 1º, a culpabilidade integra o conceito de crime. 

O conjunto compreendido entre os artigos 2º e 10 do anteprojeto se insere em um mesmo grupo que, em linhas gerais, se dispôs a estabelecer os critérios resolutivos dos conflitos intertemporais de leis penais e adaptar a legislação penal a uma série de modificações havidas em disposições de direito internacional e no avanço havido nos últimos anos, não só no pensamento internacionalista, mas nas próprias relações do Brasil com outros Países.

Destaca-se, no artigo 2º, a proclamação normativa do princípio dogmático da prevalência da legislação penal mais benéfica e que consta de previsão genérica no artigo 5º do texto da Constituição Federal.[2]

Sob o ponto de vista teórico, o avanço máximo de uma sociedade tem como significação a menor expressividade das punições, pois representativa de que a sociedade se encontra apta a resolver seus conflitos com meios menos danosos que os punitivos. Assim, há um império absoluto da lei penal mais benéfica, independente do estabelecimento desta regra em lei, mas bem age o legislador ao proclamar as verdades dogmáticas, tornando-as públicas e de fácil compreensão, como na hipótese em que o artigo 2º detalha as decorrências da prevalência da lei penal mais benéfica, inclusive no §2º, colocando um final ao debate sobre a possibilidade de combinação de leis penais, o que sempre foi claramente possível, vez que a lei penal mais branda em sua prevalência não experimenta qualquer limitativo, não podendo ser a estrutura formal da lei justificativa para que não se aplique a norma mais benéfica.[3]

Um comentário também merece o artigo 5º, pela feliz iniciativa de romper com a distorção ufanista que faz imaginar que o sistema normativo de aplicação da lei penal no espaço independe do universo em que o Brasil esteja inserido, prevendo a adaptação da matéria sempre que houver celebração de acordo internacional disciplinando especificamente a questão. [4]

Ademais, o inciso III do §2º do artigo 5º fez bem em adaptar a legislação penal às modificações havidas na disciplina do Mar Territorial.[5]

As demais disposições legais, regra geral, conferiram melhor disciplina sistemática à matéria, sem alterar substancialmente o conteúdo da atual Parte Geral do Código Penal, preocupando, contudo, sobre a efetiva aplicabilidade do disposto no inciso III do artigo 7º, que estende a extraterritorialidade incondicionada a um conjunto de delitos de significativa importância não só para o Brasil, mas para toda humanidade (genocídio, racismo, terrorismo, tortura e outros crimes contra a humanidade), o que pode conduzir a dificuldades diplomáticas quando a vítima ou o agente for brasileiro, pois o interesse punitivo pode se manifestar em outros países, notadamente aonde tenha sido praticado o ato pelo brasileiro ou contra ele e a não exigência do atendimento de qualquer requisito específico para que o Brasil puna, na hipótese, pode gerar demandas internacionais desnecessárias e desaconselháveis em um mundo cada vez mais agrupado e que tem o Brasil assumindo postura de destaque.

Melhor seria que mesmo aos relevantes crimes tratados no dispositivo em comento, a lei brasileira somente se aplicasse condicionada ao ingresso do autor no território brasileiro.[6]

As regras estabelecidas nos artigos 11 a 13, ademais de estabelecerem disciplinas gerais quanto à contagem de prazos, também proclamam conteúdos dogmáticos atinentes à resolução do conflito aparente de leis penais.

Não há, conforme já se ressaltou, um problema na proclamação pela lei dos dados dogmáticos construídos pela análise das estruturas lógico-reais, ao contrário, servem como importante aspecto de concessão de ampla publicidade às estruturas essenciais do Direito Penal, porém, há que se ressaltar que, se trata disto, ou seja, de proclamação legislativa de critérios que por se fundarem na própria essência do Direito Penal, independem dela para existir, não se cometendo o equívoco de imaginar que houve uma migração para um modelo de normatividade pura, o que poderia ao longo do tempo, produzir dissabores como, por exemplo, a revogação de todo o artigo 12 e a inserção de regra dizendo que a pessoa responde por quantos delitos enquadrar-se sua conduta, independente de quantos atos tenha praticado e de qual seja a orientação final de sua conduta, com isso ter-se-ia uma monstruosidade, sob o ponto de vista científico, mas sustentável em leitura positivista jurídica extremada.[7]

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Assim, há que se deixar manifesto: 1. Que o artigo 12 nada mais é que uma proclamação de verdades prévias; 2. Que as regras apresentadas no artigo 12 para a solução do conflito aparente de leis penais são exemplificativas e não exaustivas, podendo ser complementadas por outras desenvolvidas ao longo da evolução do pensamento científico da matéria; e 3. No §2º do artigo 12, ao tratar da consunção do crime meio pelo crime fim agregar-se necessariamente destaque à questão da finalidade subjetiva do agente, não permitindo a análise somente em plano objetivo do bem jurídico, como forma de afirmação do predomínio da teoria finalista no sistema penal brasileiro, referendando assim seu método de descoberta das estruturas onto-ontológicas com base nos critérios lógico-reais.

Por outro lado, a regra do §4º do artigo 12 (Salvo disposição em contrário, o tipo penal constituído por várias condutas, alternativamente, só incidirá sobre uma delas, ainda que outras sejam praticadas sucessivamente pelo mesmo agente e no mesmo contexto fático) é, com todo o respeito devido, péssima, pois abre exceção normativa aos critérios dogmáticos, o que se insiste não pode ser admitido, sob pena de fazer o sistema democrático da Parte Geral do Código Penal migrar para o modelo autoritário.[8]

A propósito, fosse o objetivo realçar a regra dogmática a sua redação seria: “O tipo penal constituído por várias condutas, alternativamente, só incidirá sobre uma delas, ainda que outras sejam praticadas sucessivamente pelo mesmo agente e no mesmo contexto fático contra a mesma vítima” e, então, ter-se-ia uma regra geral plenamente aplicável para todos os delitos e conforme ao pensamento científico da matéria, ou seja, de que o contexto fático único em relação a uma vítima de ações múltiplas previstas no mesmo tipo penal faz a conduta do agente subsumir em uma única tipificação, pois diz respeito a uma única vontade delitiva do agente, reafirmando a importância do dolo como parte integrante do tipo penal.

Agora a redação concebida, com a inserção, já no seu início, da expressão “salvo disposição em contrário” e com a não inserção da regra de que as múltiplas ações devem ser contra a mesma vítima tentou regrar, de forma geral, a questão dos crimes de ação múltipla, mas não o conseguiu fazer, estabelecendo possibilidade de exceção, que submete a matéria aos sabores e dissabores do momento, em desprestígio da verificação do conteúdo integral do tipo penal com a análise necessária de seu elemento subjetivo.

Nesse sentido, a ficar como está, melhor é a supressão da regra em questão que somente se prestará a confusões e conflitos hermenêuticos, gerando dúvidas reais em várias situações sobre o efetivo âmbito de aplicação do seu conteúdo.

Pode-se antever que o proposto dispositivo do §4º do artigo 12 se constitui em dispositivo dos hábeis a gerar debates intermináveis na doutrina e na jurisprudência, comprometendo a segurança na aplicação da lei penal, até, após muitos anos de indefinições, serem revogados.

Dessa feita o melhor é sua alteração para excluir a expressão “salvo disposição em contrário” e agregar a “contra a mesma vítima”, proclamando critério técnico seguro em torno da ação múltipla contra mesma vítima em um mesmo contexto fático e deixando as demais matérias para o debate casuístico do caso concreto, em face das estruturas dogmáticas existentes ou sua integral supressão, porém a manutenção da regra em comento com a redação que lhe foi proposta pela ilustre Comissão encarregada do anteprojeto somente servirá ao debate e à confusão.

A partir do artigo 14 o anteprojeto se lança talvez em sua mais difícil tarefa, a de trazer ao direito positivo o conteúdo analítico do crime e neste ponto é que a cautela deve ser redobrada, pois esta é a definição das hipóteses em que o Estado tem a permissão para intervir nas liberdades e garantias fundamentais e, a partir dos critérios adotados, desenha-se o modelo punitivo existente.

Infelizmente neste tópico, tão sensível à sociedade, há muitos problemas no anteprojeto proposto, a iniciar-se já no artigo 14:

Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico.

Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo.

O caput do artigo 14 é um exemplo manifesto das críticas que há muito ZAFFARONI tem feito de como o conceito de bem jurídico, concebido no ideário da ilustração como garantidor da limitação do poder punitivo, foi ao longo do tempo sendo distorcido, para converter-se no principal fundamento de sustentação das intervenções ilimitadas.

A propósito, quando FEURBACH reflexionou sobre a questão do bem jurídico, em meio ao movimento iluminista, tinha a preocupação de que fosse detida a possibilidade de punições incidentes em ações que não transpusessem a esfera pessoal do próprio agente, contrapondo, assim, a legislação inquisitorial, em que se podia punir, por exemplo, ações privadas, como a forma como alguém louvava a Deus ou manifestava sua sexualidade. Dentro desta preocupação à idéia de bem jurídico foi agregada necessariamente a ofensa, consistente na lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico.

Quando novos movimentos de concentração do poder, como o império napoleônico, por exemplo, passam a ganhar campo o conceito de bem jurídico da ilustração se torna incômodo, pois impeditivo da invasão punitiva do Estado sobre a esfera privada, na medida em que exigindo, para esta manifestação, que obrigatoriamente o agente lesionasse ou submetesse a um risco concreto, portanto mensurável objetivamente, de lesão bem jurídico de terceiro, o que fez com que se desenvolvesse uma teorização capaz de retirar toda eficácia da proteção fornecida aos cidadãos comuns, pelo princípio em tela, passando-se, em suma, a afirmar, que se para haver crime deve haver ofensa ao bem jurídico, o crime exige ofensa ao bem jurídico e portanto aonde há um bem jurídico pode haver um crime.

Com essa ginástica retórica, a exigência de ofensividade real (lesão ou perigo concreto de lesão) foi por terra e o bem jurídico se converteu na maior franquia para o que CARRARA nominava de nomorréia penal, ou seja, para a edição desenfreada de tipos penais e o mais grave, de tipos penais perigosistas, de antecipação, em que a ação punitiva se dá ainda que a conduta do agente não produza danos e não se mostre no caso concreto eficaz para produzi-los.

Os tipos penais perigosistas são próprios da legislação penal dos Estados autoritários, sendo que a mais recente utilização deles em larga escala se deu nos Estados Unidos da América do Norte, na “cruzada antiterrorista” dos anos da última experiência de governo republicano e de onde surgiu a tendência de alguns países periféricos, sem desenvolvimento de mais expressiva reflexão, de simplesmente repetirem a pauta legislativa norte-americana, representativa de um dos momentos mais vergonhosos da história recente daquele País, produtor de barbaridades, como a prisão de Guantánamo e os aprisionamentos de pessoas por mera suspeita, em razão de sua condição étnica ou religiosa, reacendendo a periculosidade própria do positivismo criminológico de não saudosa memória.

Ao ampliar a definição de bem jurídico, não precisando a necessidade de que exista ofensa a ele, com a existência de lesão ou perigo concreto de lesão, a legislação brasileira perde a oportunidade de corrigir uma falha do atual processo legislativo, falha esta que vem sendo combatida pela doutrina nacional, o da edição de tipos muito amplos quanto ao bem jurídico e de antecipação punitiva, tendo em conta a não exigência neles, para a consumação delitiva, de efetiva ofensa ao bem jurídico.

Na sequência, o parágrafo único do artigo 14, além de ser contraditório com o artigo 15, o que a seguir se analisará, traz a adoção, sem debate, para o território nacional, da teoria do incremento do risco, de matriz no Direito Germânico pós-unificação e desenvolvida no governo HELMUT KOHL, para tentar conter o avanço de cidadãos da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental.

Dita teoria foi rechaçada pelas Cortes Alemãs e pela doutrina penal daquele País, com destaque especial às críticas demolidoras que lhe foram formuladas por HIRSCH.

A hostilidade à teorização do incremento do risco é decorrente do fato em que gera confusão manifesta entre delito doloso e delito culposo, não permitindo a identificação precisa de uma e outra hipótese, somente servindo, portanto, a um modelo punitivo em que se imagina o agente não dotado de orientação subjetiva, ou seja, uma espécie de autômato, que age por mera programação, sem qualquer atuação do seu pensamento, o que é absolutamente inaceitável.

O incremento do risco decorre de má condução de meios tendentes a um resultado, o que é o evidente critério de desvalor incidente sobre a conduta dos delitos culposos.

O anteprojeto, trazendo de forma genérica a afirmação do incremento do risco, tentou aproximar-se da teoria desenvolvida no passado na Alemanha, e naquele País já rechaçada, gerando uma confusão entre delito doloso e culposo, o que ao longo do tempo pode produzir profunda divergência na aplicação do Código Penal proposto e a efetiva fusão destas categorias, gerando um poder punitivo ampliado, que não distingue a ação lesiva pretendida pelo agente, daquela que ele produziu por mau emprego de meios, porém, sem a pretensão da produção do dano.

Observe-se que na sequência o anteprojeto do Código Penal, no artigo 15, segue basicamente a redação do atual artigo 13, do Código penal em vigor[9], com a previsão da teoria da equivalência de condições, defendida pela corrente finalista como a mais apta a explicar o fenômeno causal e, com isso, acaba por produzir um quadro de total assistemática da legislação proposta.

De um lado, propõe, no parágrafo único do artigo 14, que a imputação do resultado se de também com critérios de incremento do risco, próprio das correntes funcionalistas[10], a propósito, no seu aspecto mais criticado, e, por outro, mantém como critério geral de imputação o defendido pelo finalismo, ou seja, não há sistemática alguma no anteprojeto, no que refere ao critério tido como um dos mais relevantes de uma nação democrática, o da imputação de um resultado criminoso a alguém.

Possivelmente, novamente a leitura precipitada e parcial dos escritos de autores funcionalistas conduziu ao equívoco, pois a redação articulada no anteprojeto do Código Penal, com todo o respeito devido, não poderia ser pior, pois antecipa confusão na aplicação da legislação penal, ao estabelecer regras de dois sistemas absolutamente díspares para regrar o mesmo critério. Adota o incremento do risco do funcionalismo, de base normativista, e a equivalência de condições do finalismo calcado na interpretação lógico-real. Assim, o intérprete futuro não tem condições de saber se o entendimento do sistema penal nacional deve se guiar pela libertária construção finalista, e não se pode jamais abdicar ou contradizer os dados da realidade, ou se foi atribuída a capacidade normativa de tudo fazer, tudo dizer, inclusive de alterar a realidade, exatamente dentro dos conceitos imperativos dos Estados autoritários.

Ademais a simples menção ao incremento do risco, como presente no anteprojeto de Código Penal é de todo combatida pelos autores do Direito Penal liberal, por ser genérica e vaga, habilitando o aplicador, no caso concreto, a agir descontroladamente para simplesmente afirmar que houve incremento do risco quando desejá-lo e negar quando lhe parecer conveniente, ou seja, toda a segurança do sistema, na sua aplicação uniforme e racional, alheia aos meios de pressão e de interpretações calcadas em satisfação de sentimentos pessoais pelo julgador, se vê prejudicada.

Não se sustenta, portanto, o artigo 14 e seu parágrafo único proposto no anteprojeto do Código Penal, que ou limita-se a afirmar os critérios dogmáticos e dizer que “a realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial, consistente em perigo concreto de lesão, ou efetiva, a determinado bem jurídico”, com integral supressão do parágrafo único, ou deve ser suprimido por ser de todo desaconselhável e gerador de confusões além de absolutamente assistemático.

Por outro lado, os dispostos nos artigos 15, 16 e 17, com exceção do parágrafo único do artigo 17 dispensam comentários, por se limitarem a repetir as regras do atual Código Penal e justamente a inovação, ou seja, o parágrafo acrescentado ao artigo 17 é que esta mal posta, senão veja-se.[11]

Artigo 17, Parágrafo único: A omissão deve equivaler-se à causação.

A questão do parágrafo único do artigo 17, na redação que lhe deu o anteprojeto, é de todo criticável, pois tenta reforçar normativamente o critério dogmático dos crimes comissivos por omissão, mas acaba por gerar confusão sobre o seu real âmbito de aplicação, pois produz a dúvida se nos crimes em questão a omissão equipara-se à causação ou a punição fica adstrita àquelas hipóteses em que o omitente realmente tiver obrado para causar o resultado.

O ideal é a não normatização da matéria, com a garantia da prevalência dogmática em torno dos delitos omissivos próprios, permitindo que o Código Penal não tenha que ser reiteradamente modificado, sendo adaptado ao longo do tempo pelo intérprete, em face da evolução do estudo científico da matéria dos delitos omissivos.

O conjunto de disposições compreendidas entre os artigos 18 a 26, do anteprojeto de Código Penal, sob o ponto de vista científico é muito delicado e de impossível sustentação.

A pretensa tentativa de definir dolo e culpa do artigo 18[12] acaba por esbarrar na impossibilidade de contemplar em apenas uma linha, de um enunciado normativo, a riqueza da fórmula de FRANK, que trata da indiferença e da teoria do assentimento proclamada pela Suprema Corte Alemã no julgamento RG., 33-6; 59-3 e bem sistematizada por WELZEL, na estrutura do pensamento finalista, ao demonstrar estreme de dúvidas que mesmo no dolo eventual o autor deve realmente ser consciente das consequências possíveis do seu ato, não bastando para sua afirmação, portanto, a mera afirmação de indiferença, pois bem pode ser indiferente justamente por não ter consciência plena das consequências possíveis de seu ato.

Nesse sentido, a indiferença da fórmula de FRANK exerce o papel de mecanismo probatório de que o agente foi indiferente em relação a um resultado considerado de modo seguro como possível de ocorrência, no momento em que praticou a conduta. Ocorre que não é isso que o anteprojeto de Código Penal afirma ao definir o dolo eventual (doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiu o risco de realizá-lo, consentindo ou aceitando de modo indiferente o resultado), pois a indiferença foi ligada ao resultado, sem consideração alguma sobre o conteúdo da conduta, ou seja, a sua visualização pelo agente como de possibilidade segura.

Para que melhor se entenda; alguém pode encontrar-se em estado alterado de consciência, que gere a incompreensão das características de seu atuar, o que poderá produzir indiferença em relação a um resultado eventualmente ocorrido, mas sem que isto tenha qualquer possibilidade de afirmação de dolo eventual, pois ao tempo da conduta a incapacidade de compreensão do agente não permite afirmar a indiferença em relação a um resultado, neste momento efetivamente considerado como possível por ele.

Fica claro que a tentativa de normatizar o campo dogmático do dolo eventual, no anteprojeto de Código Penal, foi absolutamente frustrada e a confusão gerada entre a fórmula de FRANK, de natureza probatória, e a teoria do assentimento aproximou a definição de dolo eventual da proposta legislativa de hipóteses de ação culposa, em especial das dotadas de culpa consciente, em que o agente também é indiferente ao resultado quando atua, mas justamente porque não o considera possível.

No artigo 20 o anteprojeto produz a redução da pena pelo dolo eventual (O juiz, considerando as circunstâncias, poderá reduzir a pena até um sexto, quando o fato for praticado com dolo eventual), gerando uma graduação valorativa do dolo, entre direto e eventual, sendo que este se considera menos grave que aquele, o que é absolutamente insustentável, pois, a afirmação do dolo, patenteia que o agente atuou com relevância subjetiva em relação ao fato produzido, o que basta para afirmar a sua punição na modalidade dolosa, inexistindo qualquer critério científico que faça ser o dolo eventual passível de “abono”, na medida em que se preenchem todos os elementos prévios que geram a gradação do desvalor comportamental.[13]

Em outras palavras, tanto o dolo direto quanto o dolo eventual são informados pelos elementos cognoscitivo e volitivo, de sorte que não existe diferença intrínseca entre eles que permita estabelecer distinções punitivas, até porque, caso houvesse, estaria se habilitando perigosamente o poder a ponto de se admitir o raciocínio inverso, ou seja, que se estabelecesse o dolo direto, no futuro, como causa de especial aumento da pena, o que é absolutamente incompatível com toda estrutura do delito e com o regime democrático.

A despeito do dito acima, vale lembrar, contudo, que conforme demonstra a história humana, a atividade legislativa penal exige cautela, justamente porque inserida na questão da definição de limites ao poder punitivo, sendo que as fragilizações dogmáticas apresentadas por vezes com ares de boa intenção, o que produzem ao longo do tempo é a aceitação meramente do critério de fragilização dogmática e então o incremento avassalador do poder punitivo a partir desta ruptura.

Ademais, sistematicamente, a análise da Parte Especial, proposta no anteprojeto, o que não é objeto deste trabalho, demonstra mais uma vez ter havido assistemática no anteprojeto, pois considerando o agravamento admitido para determinados delitos culposos previstos, com a criação de uma graduação na culpa, com a previsão de algo que denominou de culpa temerária, tem-se, em tese, a possibilidade de um crime culposo ter pena maior que o doloso se cometido com dolo eventual.

Aparentemente o anteprojeto, ao gerar a confusão entre dolo eventual e culpa consciente, tenta na sequência reduzir a pena dos delitos cometidos com aquele justamente para aproximá-la dos delitos culposos; realmente demonstrando a sua total índole funcionalista de ampliação do poder punitivo, com o desfazimento da diferenciação entre delito doloso e culposo, o que ao largo do tempo tende a produzir o rechaço aos critérios de ordem subjetiva na aferição do crime e um poder punitivo calcado na pura relação de ofensa, ainda que abstrata, ao bem jurídico, desenhando-se um Direito Penal que não consegue exercer qualquer função limitativa das punições.

Ruim a solução do artigo 23, de permitir que haja margem ampla de redução da pena para a tentativa (Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços), pois atribui ao Magistrado, no caso concreto, sem critérios e de forma insegura a tarefa de mensurar os níveis de reprovabilidade.[14]

Não por outra razão, o legislador de 1984, mais preocupado em limitar a discricionariedade, fixou marco preciso de redução na hipótese de tentativa, não permitindo que este elemento pudesse ser empregado conforme sabores subjetivos do julgador, de forma que o juiz mais rigoroso produzisse a menor redução e o mais liberal a maior, gerando mais uma incongruência na sociedade brasileira, a de o mesmo tipo penal tentado sofrer penas distintas, sem dados essenciais do fato que lhes estabeleçam aspectos disformes, a partir do humor de quem julga ou das características sociais de quem é julgado.

Ora, a tentativa é critério objetivo do delito e como tal deve ser tratada, de sorte que o marco de redução dela decorrente deve ser preciso, como 1/3 previsto na atual legislação, até porque não existem critérios individualizatórios possíveis para que o juiz, no caso concreto, defina o percentual de redução dentro de uma escala, o que significa dizer que o que se terá é utilização de pura discricionariedade. 

Destaque-se que, sem prejuízo das críticas gerais ao anteprojeto de reforma do Código penal, no que tange à parte geral e sua pretendida guinada do modelo dogmático de proteção do cidadão contra o incremento excessivo do poder punitivo, é inegável que submetida a matéria, em torno da teoria do erro do atual Código Penal, a uma análise pontual resta evidente carecer de melhor disciplina, para atender aos reclamos teórico-científicos do tema e proclamando, de forma clara, aspectos dogmáticos que poderiam parecer confusos na atual redação da legislação, o que tentou efetuar o anteprojeto.

Nesse sentido são os artigos 27[15] e 35 do anteprojeto[16]. Lamentável, porém, que sequer estes dispositivos, que tentaram ofertar melhor sistemática à matéria, consigam passar isentos a críticas.

Ocorre que o §3º do artigo 35 labora em evidente confusão entre o erro de tipo permissivo e o erro de proibição indireto, ou seja, descreve hipótese de erro de tipo, mas lhe dá a disciplina do erro de proibição.[17]

O erro de tipo permissivo decorre da má compreensão da realidade fática, que faz o agente imaginar causa de justificação na hipótese concreta, enganando-se, em razão de dados equívocos da realidade, quanto a algum dos seus elementos. O erro de tipo permissivo seria tratado de forma adequada na proposta caso estivesse no artigo 27, porém o anteprojeto o descreve e remete às consequências do erro de proibição.

O erro de proibição indireto se constitui em outra realidade, na circunstância do agente imaginar a existência de causa de justificação não existente no sistema jurídico e, por isso, atua imaginando legitimado seu agir.

Observe-se, no erro de tipo permissivo a causa de justificação encontra-se prevista no sistema, mas compreendendo mal a realidade fática o agente equivoca-se quanto à presença de algum dos seus requisitos, enquanto no erro de proibição indireto a causa de justificação não é prevista, mas por equívoco o agente imagina que o sistema jurídico a contemple.

Assim, vê-se com clareza que embora, inclusive sob o ponto vista redacional o §3º do artigo 35 não tenha se valido da melhor estruturação, refere, em verdade, ao erro de tipo indireto e a ele atribui as consequências do erro de proibição.[18]

O resultado deste operativo é gravíssimo, pois fortalece a ideia de que a dogmática penal, decorrente do estudo científico de verificação lógica da realidade, deve se submeter aos comandos normativos, e não o inverso. A formulação em tela, de raiz neokantista, repita-se o já insistentemente manifestado no presente estudo, é a mesma que justificou os Estados autoritários europeus do século passado, por permitir que a legislação rompa com os dados da realidade e estabeleça o que se quiser conforme os desejos pessoais de quem controla a estrutura de poder.

Em resumo, louvada a tentativa do anteprojeto de ofertar melhor tratamento legislativo ao tema da teoria do erro, porém deve ser de todo rechaçada a confusão que comete no artigo 35, §3º, entre erro de tipo permissivo e erro de proibição indireto. A regra deste dispositivo deveria se constituir em parágrafo do artigo 27 e ganhar melhor redação, a fim de deixar claro que se trata de equívoco sobre dado fático de causa de justificação prevista no sistema e, por outro lado, o §3 e do artigo 35 pode referir a imaginar o agente a existência de causa de justificação não presente no sistema como razão de sua ação, a habilitar a exclusão da culpabilidade ou redução da pena, conforme se trate de vencibilidade ou invencibilidade do erro.

Do artigo 28 ao artigo 30 o anteprojeto de Código Penal disciplinou as causas de justificação que operam excluindo o caráter ilícito ou antijurídico do fato.

Alguns aspectos delicados não podem deixar de ser registrados. O primeiro deles é a inserção do princípio da insignificância, matéria atinente à tipicidade penal e princípio de formulação e desenvolvimento dogmático, no tema das causas de justificação, gerando a aparente confusão do legislador sobre os elementos constitutivos do delito.[19]

Ademais, o princípio da insignificância pode, quando muito ser proclamado com destaque à sua característica de afastar a tipicidade, porém não ter taxativa definição de seus requisitos como pretende fazer o anteprojeto, a partir de elementos contidos em decisões do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e não acompanhados pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Em outras palavras, os requisitos arrolados para aplicação do princípio da insignificância constam de precedente de Tribunal Superior, porém não incorporados pela Corte Máxima e mais por esta rechaçados em vários precedentes, o que causa estranheza na atividade legislativa por parecer tentativa de imposição do posicionamento de um órgão do Judiciário ao Tribunal Máximo do País pela via da atividade legislativa, realidade esta que em um regime democrático é absolutamente inaceitável e merece profundo repúdio, por caracterizar-se claramente como autoritária.

Ademais, os requisitos do princípio da insignificância são critérios que se desenvolvem com as mutações sociais, sendo a amarra legislativa apenas uma forma de, em curto espaço de tempo, gerar a não adaptação da legislação às novas realidades sociais.

Outro aspecto que se deve consignar é que o princípio da insignificância depende, em sua verificação, de dados casuísticos. Relevante é, por exemplo, o bem jurídico atingido que pode ter distintas abordagens valorativas em face de sua significação social.

Assim, de um lado, há a própria evolução social que interfere diretamente no tema do princípio da insignificância e, de outro, a questão casuística sempre a ser considerada. O somatório destes fatores deixa patente que a tentativa de disciplinar requisitos ao princípio da insignificância nada mais representa que o já manifestado, com todo respeito devido, equívoco de estabelecer o sistema normativo no Direito Penal brasileiro, rompendo com sua tradição democrática e colocando-o nos trilhos dos modelos próprios de Estados  antidemocráticos.

Nesse caso a questão fica bastante manifesta quando se observa que os critérios apresentados são rechaçados pela Corte Maior do País, em uma manifestação arbitrária clara de tentar impor os critérios, cuja adaptação constitucional não foram reconhecidos pelo órgão com legitimidade para fazê-lo, pela via transversa da lei infraconstitucional. 

Dispensável qualquer comentário ao conjunto dos dispositivos compreendidos entre os artigos 31 e 35, por representarem basicamente repetição das atuais regras da Parte Geral do Código Penal, apenas com pequenas modificações redacionais.

Por outro lado, o, pelos meios de comunicação, tão proclamado e festejado artigo 36 fica submetido a toda sorte de críticas, pois o seu caput cria uma autorização geral para a prática de crimes pelos integrantes das comunidades indígenas, conforme se pode observar da leitura do dispositivo em tela:

Art. 36. Aplicam-se as regras do erro sobre a ilicitude do fato ao índio, quando este o pratica agindo de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo, conforme laudo de exame antropológico.

Há que se ter parcimônia na análise desta matéria para não produzir equívocos de a pretexto de atender às particularidades dos indígenas que devem ser respeitados e tutelados pelo sistema jurídico, gerar uma regra de amplitude tal que os torne previamente inimputáveis, como acaba por fazer o caput do artigo 36.

Observe-se que há muito, independente de regra escrita neste sentido, com a sabedoria própria da estrutura científico-dogmática do Direito Penal, quando a ação dos índios é guiada pela incompreensão do caráter ilícito do fato, em razão de seus dados culturais, de suas tradições etc., há o enquadramento da hipótese no erro de proibição direto, sendo-lhes excluída a culpabilidade do fato e, portanto, deixando-se de atribuir-lhes qualquer caráter criminoso, razão porque desnecessária qualquer normatização da matéria.

Agora, o anteprojeto, no seu afã normativista, o que faz é estabelecer que independente da compreensão do indígena quanto à ilicitude do fato na sociedade brasileira, se agir ele de acordo com suas tradições e cultura não cometerá crime.

Para que se aquilate a gravidade da situação, basta pensar, no campo dos exemplos, em um índio absolutamente aculturado nos valores da sociedade brasileira, eventualmente nela inserido, mas que mate o próprio filho recém nato porque nasceu com uma pequena deformidade física e argua que a tradição cultural de seu povo originário é matar crianças que nascem com má formação e ter-se-á que reconhecer a ausência de culpabilidade e absolver esta pessoa, que com absoluta consciência do seu agir privou da vida humana um ser recém nascido; ou alguém que pratique um estupro, ao argumento que no costume originário de seu povo era possível os homens tomarem as mulheres à força, porque tem a crença de que isto invoca divindades relativas à fertilidade e a solução será a mesma, a absolvição.

E não se argumente que a exigência do laudo antropológico corrigirá a questão, pois poderá servir apenas para atestar se o comportamento praticado faz parte das tradições e crenças históricas de um povo indígena ou não, e seja qual for o comportamento, por mais violento e brutal que seja, a absolvição será imperativa.

Assim, o artigo 36, bem como seus parágrafos seguintes, é absolutamente desnecessário e desaconselhável. Desnecessário porque, diferente do amplamente proclamado por alguns setores na imprensa, a questão dos indígenas sempre esteve adequadamente regulada pelo Direito Penal, inclusive muito a frente dos outros ramos do Direito e da própria Constituição Federal, na temática do erro de proibição e desaconselhável porque representa uma franquia para a prática delitiva por silvícolas.

O artigo 37 do anteprojeto detalha a questão da coação moral irresistível e da obediência hierárquica, o que não apresenta uma problemática direta, por se tratar de mera proclamação normativa do critério dogmático há muito consolidado. [20]

A inovação está no parágrafo único do artigo 37 que estabelece o que se entende por ordem manifestamente ilegal (Considera-se manifestamente ilegal qualquer ordem para praticar terrorismo, tortura, genocídio, racismo ou outro crime contra a humanidade).

Possivelmente a intenção dos autores do anteprojeto foi criar hipóteses exemplificativas e não exaustivas, mas o aparente desconhecimento da melhor técnica legislativa em matéria penal, orientada diretamente pelo princípio de estrita legalidade e interpretação restritiva das regras que geram exceções, fez com que o dispositivo em questão não estabelecesse propriamente um campo exemplificativo, mas taxativo, de sorte que mais adequado seria, a fim de evitar confusões, que tivesse a proposta de parágrafo único de artigo 37 dito, “sem prejuízo de outras hipóteses, considera-se manifestamente ilegal qualquer ordem para praticar terrorismo, tortura, genocídio, racismo ou outro crime contra a humanidade.”  

A partir do artigo 38, até o artigo 40, o anteprojeto trata de temas relativos à autoria, co-autoria e participação e assim como em matérias precedentes, não consegue passar isento a críticas, decorrentes, inicialmente, de seu esforço para migrar do modelo democrático de Direito Penal, para o puramente normativo de concepção autoritária.[21]

Admitir que o Código possa simplesmente estabelecer, de forma normativa e absoluta, os critérios de imputação, independente dos limitadores estabelecidos no plano onto-ontológico é, exemplificativamente, admitir que no futuro um regime tirano possa estabelecer na lei, “autor é quem o Presidente estabelecer como tal”.

Não se pense que jamais isto ocorreria, pois apenas com roupagem distinta, muito recentemente, já se disse, quando se valeu do método normativo puro no Direito Penal que “autor é quem o Fuhrer entende como tal”, ou, em outros locais, “autor é quem o Partido deseja que o seja”, e assim poderia se referir a uma infinidade de formulações normativas de autoria já utilizadas na história da humanidade para impor o poder de maneira autoritária.

Somente a não cessão da estrutura de Direito Penal ao sistema empregado nos outros ramos do Direito, calcado na normatividade pura e na ausência de construção científica ou dogmática dos conceitos, pode salvaguardar, de forma plena, os cidadãos de que os mecanismos punitivos não serão utilizados por um governo ou governante para impor suas vontades de forma autoritária.

Dessa forma, a insistente tentativa do anteprojeto do Código penal de contrapor as verdades reais aos critérios normativos é, com todo respeito devido, dotada de senso de irresponsabilidade com o futuro da sociedade brasileira, fazendo lembrar a imagem de ZAFFARONI, quando compara alguns juristas com autistas, por teorizarem e legislarem sem a menor reflexão sobre a realidade e os efeitos futuros de suas obras na sociedade.

Desde as obras de HEGLER, KOHLRAUSCH e WELZEL a teoria do domínio do fato se consolidou no sistema jurídico dos países democráticos e tem seus claros contornos definidos e sistematizados de maneira científica pela doutrina, assim que bastaria ao Código, em reafirmação ao critério dogmático, proclamar que autor é quem tem o domínio finalístico do fato, porém, indo além o sistema aportado no anteprojeto, pretende, no §1º do artigo 38, detalhar a matéria o que é de todo desaconselhável[22], pois não consegue o legislador prever as inúmeras possibilidades de ocorrências fáticas de uma sociedade e que a cada momento se aprimoram e modificam-se.

A previsão normatizada das hipóteses estritas que consideram a pessoa como autor pode produzir o engessamento do Código, não conseguindo este fazer frente a novas hipóteses de ação que surjam na sociedade.

Por outro lado, não se pode pretender que a legislação penal seja dotada de tamanha instabilidade, que vá se alterando a cada nova ocorrência da vida social, de sorte que cabe, com base nos dados da realidade, de maneira lógica, ser descobertas no dia a dia as implicações penais dos variados fenômenos sociais e sua repercussão no Direito Penal, sem que a amarra legislativa possa impedir a evolução científica da matéria.

Acresce ainda pontuar que o §1º já é proposto desatualizado, pois não consegue prever a multiplicidade de formas de ação, com domínio finalístico do fato, que na atualidade já foram delineadas pela doutrina penal e na letra b do inciso II cria regra tendente a gerar confusões entre os delitos omissivos e a figura da participação.

Também convém mencionar ter o anteprojeto aparentemente fica inseguro com o tema, pois estabelece um rompimento com a atual teoria monista do Código Penal brasileiro em vigor, ao diferenciar autores, co-autores e partícipes, embora adote no caput do artigo 38 justamente a atual redação legislativa, que estabelece a teoria monista, para, na sequência, após conceituar cada figura, não definir qual a consequência jurídica de se estar diante de uma ou de outra hipótese de atuação.

O partícipe responde como? E o co-autor? E o autor? Nada é respondido, ou seja, houve uma normatização capenga, ante a sua insistente tentativa de realizá-la, esbarrando na impossibilidade de fazê-lo. O anteprojeto tenta normatizar tudo, mas acaba por não conseguir, o que produz um sistema desconexo, sem definição de sua estrutura de fundamentação, o que ao longo tempo se constituirá em evidente barreira, dificultando a interpretação das regras.

Também deve se destacar ser reprovável a tentativa de produzir agravamento no sistema de penas pela regra do §4º do artigo 38 do anteprojeto[23], pois tenta disciplinar de forma absoluta o percentual de aumento nas hipóteses que destaca, quando, em verdade, elas dependem da verificação casuística pelo julgador, para mensurar a importância de cada qual no resultado delitivo final e a relevância do dado apresentado no efetivo delito praticado. Por certo, a regra fere o princípio de individualização, por impedir ao julgador, no caso concreto, mensurar a real relevância da atuação de cada um dos envolvidos no fato delitivo.

Sem dúvida um dos piores conjuntos de disposições do anteprojeto de Código Penal é o estabelecido entre os artigos 41 a 44 ao instituir, contrário ao pensamento da imensa maioria da doutrina penal brasileira, a responsabilidade penal da pessoa jurídica.[24]

O simples dado de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é, no Brasil, a posição minoritária entre os estudiosos do Direito Penal já deveria servir de suficiente justificação para que sequer cogitada fosse, afinal em uma democracia não se pode ter a definição de um tema tão sensível à sociedade pelo simples desejo pessoal isolado de uma ou algumas pessoas que fizeram parte de um processo de reforma legislativa.

Sobre o tema específico da responsabilidade penal da pessoa jurídica convêm algumas breves considerações a título de desfazer mal entendido havido pela afirmação realizada por Eminente membro da Comissão de Reforma, no sentido de que a não aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica decorre de uma teoria ultrapassada e arcaica.

Em verdade, é exatamente o contrário. O sistema de responsabilidade pessoal e subjetiva no Direito Penal é um dos mais importantes marcos históricos de contenção do poder punitivo e democratização do sistema jurídico-penal.

Na Idade Média eram admissíveis as punições de coisas e animais e era comum que delas se utilizasse para atribuir a responsabilidade por atos praticados por pessoas integrantes da estrutura de poder social e econômico da época.

Conforme bem detalhou SPEE em sua cautio criminalis, a fogueira, as torturas etc., eram, em regra, reservadas às pessoas marginalizadas da sociedade, pois as outras podiam, na hipótese de condenação, expiar sua culpa fazendo uma doação em dinheiro ao clero ou ao rei e atribuindo a algum animal ou coisa de sua propriedade o papel de receptor do mal que o havia feito cometer o ilícito e, assim, bastava punir o animal ou a coisa e o mal se desfazia. Em poucas palavras, aos marginalizados a fogueira, aos bem situados econômica e socialmente o pagamento de uma multa e a outorga da culpa a uma coisa qualquer de sua propriedade.

Ademais, experimentava-se, a partir das construções do Direito Canônico, o sistema da versari in re ilícita, pelo qual a pessoa era punida a partir de uma simples verificação objetiva de relação entre a pessoa ou algum animal seu e um dano produzido, o que gerava a profunda injustiça da pessoa ser severamente punida por algo que ela não quis e sequer tinha como controlar.

A evolução iluminista, entre outras questões, forjou a ideia da responsabilidade penal pessoal e com os avanços posteriores experimentados para contrapor o modelo autoritário dos Estados nazi-fascistas se estabeleceu como indispensável a verificação dos elementos subjetivos do agente para o ajustamento de suas condutas na legislação penal.

Assim, experimentou-se uma notável evolução, em que o poder punitivo passa a ser limitado pela necessidade de demonstrar efetiva conduta do agente dotada de conhecimento de suas implicações e vontade de sua realização.

No plano criminológico ganharam campo as correntes de denúncia da seletividade do sistema punitivo e da inexistência de sanções aos agentes bem situados economicamente, mesmo que praticando atos de gravidade ímpar, como as destruições ambientais e as expressivas fraudes fiscais.

Curioso observar que exatamente no momento em que começa a ser experimentada uma revisão da ótica de manter absolutamente distante do sistema penal as pessoas mais bem situadas na sociedade, surge, com ares de modernidade, mas em verdade estruturada nas mesmas bases que na Idade Média permitia a punição de animais e coisas, a defesa por alguns do sistema de responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Sob roupagem de aparente boa intenção e maior proteção aos bens jurídicos, então são desenvolvidos variados discursos a tentar afirmar que somente assim se podem punir determinados delitos; que a sociedade está mais complexa; que há novos crimes, enfim, uma série de afirmações não subsistentes a um simples olhar sobre a realidade, demonstrativa de que as ações delitivas de hoje são exatamente as mesmas do passado e que a definição das hipóteses criminosas nada mais é que um dado cultural de uma época, por isso situações antes não previstas na lei penal hoje estão, mas sem que haja essencialmente nada de novo, lembrando o discurso que tenta propagar novos riscos criminais na sociedade muito mais uma peça publicitária que propriamente um estudo científico de Direito Penal.

O que sim aparece por detrás destes bem intencionados discursos é a recriação do sistema medieval, em que os marginalizados iam para a fogueira e os abastados atribuíam suas culpas a um porco ou a uma galinha de sua propriedade, apenas que agora os marginalizados vão para cadeia e os abastados atribuem a responsabilidade por seus atos a uma pessoa jurídica e, então, ela paga uma multa se é conveniente e tudo segue como se nenhum crime tivesse ocorrido ou se considerado inconveniente ingressa com um pedido falimentar desaparecendo do mundo e carregando com si as culpas de seu gestor que segue como se nada tivesse havido ou feito, exatamente na conhecida manobra utilizada em outros ramos do direito para ludibriar credores, enriquecendo sem arcar com compromissos financeiros.

Não se argumente com a proposta dos §§1º e 2º do artigo 41[25] do anteprojeto de Código Penal para dizer que isto não ocorreria. É dado empiricamente conhecido que nos demais ramos do Direito, que se valem dos mecanismos de responsabilidade da pessoa jurídica, é muito difícil, quase impossível atingir-se qualquer pessoa física pelos seus atos, tendo em vista a capacidade que passa a estar disponível de dispersar a responsabilidade pessoal no ente coletivo, além das regras próprias de outros ramos do Direito, como o empresarial que serão inevitavelmente interferentes na matéria e poderão ao longo do tempo ser interpretadas como obstaculizadores de efetiva responsabilidade pessoal de sócios, gestores, administradores etc., como, por exemplo, a limitação da responsabilidade financeira ao capital integralizado, para as hipóteses de pena de multa.

Pode-se cogitar de, com o seguir dos tempos, pessoas mal intencionadas atuarem no Direito Penal como hoje já atuam para cometer fraudes civis, ou seja, criando pessoas jurídicas com o simples objetivo de cometer ilícitos em seu nome.  

Assim, nada mais arcaico e desaconselhável que o sistema de responsabilidade penal da pessoa jurídica, no qual quem sabe o próximo passo seria dizer que se a pessoa jurídica fechar ou falir pode a pessoa indicar um animal ou coisa de sua propriedade para assumir suas culpas.

Vale observar que o sistema de responsabilidade penal da pessoa jurídica representa o abandonar por completo do critério lógico-real no Direito Penal brasileiro e seu ingresso definitivo no modelo neokantista de aceitação da absoluta normatização para a disciplina do poder punitivo, o que represente grave ataque ao Estado Democrático, por colocar em risco um dos mecanismos mais relevantes hoje existentes de contenção do poder.

Acresce verificar que ao ceder ao normativismo, em assunto delicado como o da responsabilidade penal, admite-se o fim de qualquer meio de controle sobre o poder, pois se hoje se admite que a lei simplesmente diga que há responsabilidade penal da pessoa jurídica, mesmo sabendo que ela é desprovida da capacidade de conduta no sentido penal, amanhã nada obsta que diga que a pessoa é responsável independente de culpa, ou que os pais respondem pelos atos dos filhos ou que o pastor pelos de seus fieis e assim sucessivamente.

Dessa forma, não há fundamento racional para a adoção de um sistema de responsabilidade penal da pessoa jurídica, que é de todo desaconselhável. Bem pesada a questão, quisesse o anteprojeto dela tratar o seria para em um único dispositivo diretamente, pondo fim a qualquer polêmica dizer: “É vedada a responsabilidade penal da pessoa jurídica, devendo, nos atos por seu intermédio praticados, reponsabilizar-se os proprietários, gestores, controladores, liquidatários ou administradores diretamente, quando demonstrado que ativamente autorizaram, anuíram ou aderiram ao ato produtor de dano ao bem jurídico, ou que se omitiram de seu dever de vigilância em relação à ação produtora de dano.”

Agora, tratar do tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica para criá-la é absolutamente inaceitável, pois conforme sinteticamente apontado acima:

a)                  É antidemocrático, pois contraria o pensamento da imensa maioria dos estudiosos do Direito Penal no Brasil;

b)                 Representa retorno ao modelo da inquisição, de responsabilidade pessoal ao marginalizado e salvaguarda ao bem posicionado, que pode atribuir a uma coisa sua culpa;

c)                  Destrói a estrutura de contenção do poder punitivo, representada pelo critério lógico-real, fazendo o sistema jurídico penal brasileiro migrar em definitivo para o normativismo que serviu de base para a impulsão de todos os modelos autoritários de Estado até hoje experimentados.

Na sequência, o anteprojeto trata das penas e até apresenta alguns méritos como a unificação das hipóteses privativas da liberdade sob a nomeclatura prisão, mas que, em regra geral, se mostra absolutamente insustentável pelas gritantes inconstitucionalidades que contém.

De início, vale observar que ao estabelecer o regime aberto fixou, no artigo 52, a obrigatoriedade de que este regime se cumpra com a prestação de serviços à comunidade, ou seja, o anteprojeto institui o trabalho forçado.[26]

Vê-se que se trata de proposta açodada a partir dos dados positivos experimentados pela aplicação da pena restritiva de direitos de prestação de serviços à comunidade utilizada desde a Lei nº 9.714/1998, porém a total ausência de sistemática e de estrutura técnico-científica fez com que o anteprojeto não observasse questões comezinhas que tornam a prestação de serviços à comunidade, na forma proposta, absolutamente inconstitucional e repugnante, por lembrar a prática do escravagismo.

Ora, como pena restritiva de direito, a pena de prestação de serviços à comunidade é alternativa, ou seja, substitui a pena privativa de liberdade imposta, mas não é de cumprimento compulsório pelo condenado, que pode optar por não exercer o trabalho fixado e cumprir a pena privativa de liberdade que lhe foi fixada e mais, no sistema de penas alternativas admite-se, em tese, que até as condições de prestação do trabalho sejam objeto de transação.

Por outro lado, o anteprojeto impõe o trabalho à comunidade obrigatório, sob pena de regressão de regime, ou seja, ou a pessoa trabalha ou é punida, em outras palavras, passa a haver trabalho forçado, passando as pessoas condenadas a necessariamente experimentarem um período, o do regime aberto, de escravismo, o que além de inconstitucional, absolutamente repugnante no atual estágio de evolução da humanidade e, bem pensada a questão, razão suficiente para que se verifique a total ausência de estrutura científica, lógica e democrática a dar sustentação ao anteprojeto proposto, justificando seu liminar arquivamento.

Outro ponto, com relação às penas, a destacar é a inconstitucionalidade do modelo de progressão de regimes proposto, pois de forma mascarada põe fim à progressividade do sistema, senão veja-se.

É estabelecido no artigo 47 do anteprojeto:

Art. 47. A pena de prisão será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso ostentar bom comportamento carcerário e aptidão para o bom convívio social e tiver cumprido no regime anterior:

I – um sexto da pena, se não reincidente em crime doloso;

II – um terço da pena:

a) se reincidente:

b) se for o crime cometido com violência ou grave ameaça; ou

c) se o crime tiver causado grave lesão à sociedade.

III – metade da pena:

a) se o condenado for reincidente em crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa ou em crime que tiver causado grave lesão à sociedade; ou

b) se condenado por crime hediondo.

IV – três quintos da pena, se reincidente e condenado por crime hediondo.

O equívoco é manifesto no dispositivo destacado e parte da ilusória e pouco científica afirmação de que a pena fixada na sentença deve ser cumprida. Sob ponto de vista técnico isto está absolutamente ERRADO.

A pena fixada, associada a cada tipo penal pelo legislador, é a pena máxima teórica prevista tendo em conta o bem jurídico ofendido e o nível de ofensa a ele (individualização legislativa), devendo ser ajustada pelo Juiz às características do caso concreto, quando prolata a sentença, momento em que se passa a ter a pena MÁXIMA em concreto (individualização judicial), que ainda deverá sofrer a influência de ocorrências durante a execução da pena, para que seja mensurada a pena que efetivamente será cumprida e de que forma se dará este cumprimento (individualização executiva).

Ao estabelecer no inciso II do artigo 47 a progressão com 1/3 da pena já se manifesta a inconstitucionalidade da ofensa à individualização executiva, pois não haverá qualquer diminuição do tempo de cumprimento da pena ao condenado que demonstrar ações positivas de adaptação social e arrependimento, em comparação com aqueles que se mostrarem absolutamente insensíveis à punição sofrida, pois se são três etapas de progressão, podendo haver a progressão com 1/3, necessariamente a pena fixada na sentença será integralmente executada. O inciso III, que fixa a progressão em metade da pena, e o IV, em 3/5 mais que inconstitucionais representam verdadeira mentira do Estado, pois se a pena se cumpre em 03 etapas a promessa de progressão em metade ou 3/5 evidencia-se como uma promessa inexequível, pois não terá o condenado a oportunidade de migrar todas as etapas do processo progressivo da pena, cumprindo, em verdade, grande parte, senão a integralidade, da pena em regime fechado.

Ora, o sistema progressivo existe para atender ao princípio constitucional de individualização, mas também, no plano do pensamento recuperador, por ser desaconselhável que a pessoa condenada migre diretamente da prisão para a liberdade, devendo ir tendo etapas de readaptação à vida livre.

O anteprojeto do Código Penal, ao criar a falsa perspectiva de progressão e real cumprimento da pena basicamente em regime fechado, além de agredir o princípio da individualização, atinge os fundamentos do próprio sistema progressivo, gerando a não adequada ausência de readaptação gradual do condenado à liberdade, com seu salto diretamente do regime fechado para a vida livre.

Outro ponto a destacar é que a perspectiva comportamental do condenado durante a execução da pena tende a sofrer recrudescimento por grande parte da população carcerária, pois ao mesmo tempo em que o estímulo da possibilidade de progressão com 1/6 da pena se mostra positivo a gerar o bom comportamento e a incorporação pelo apenado da oferta de profissionalização e estudo no cárcere, a ideia de progressão com metade da pena, ou somente 3/5 se mostra muito distante ao condenado, que seguramente terá que preocupar-se mais em conseguir viver e conviver no cárcere por longo espaço temporal, com propriamente ter bom comportamento ou realizar ações positivas para progredir.

Para que se aquilate, um condenado a pena de 20 anos, por exemplo, com progressão em metade terá em uma hipótese a progressão, primeira e única, após 10 anos, ou seja, terá que manter esperança na progressão por um lapso de tempo significativo, conseguindo ainda ao longo deste tempo manter-se protegido no sistema penitenciário, sem envolver-se com os canais de comunicação próprios do cárcere.  Com progressão em 3/5 fala-se na primeira e única progressão com 12 anos, ou seja, com a grande maioria da pena já cumprida no regime fechado, o que permite afirmar que desaparece todo e qualquer estímulo para que o condenado busque alguma melhora comportamental.

Ainda quanto à progressão, não se pode deixar de referir a deplorável reinserção do exame criminológico, de origem no pensamento racista do positivismo criminológico e que muitos esforços demandaram para sua retirada da legislação pátria, por nada mais representar que um meio de manifestação subjetiva dos responsáveis por realizá-lo, no sentido de libertar aos que simpatizassem e manter presos os demais, por sua desconformidade com o ato praticado e gerador da condenação ou mesmo por seus preconceitos, sejam étnicos, raciais ou religiosos.

Realmente nota-se que o anteprojeto do Código Penal não teve entre as suas preocupações estar em acordo com a Constituição Federal, no que se refere ao sistema de penas que propõe, tanto que prevê, no §1º do artigo 56, regra já declarada inconstitucional pelo plenário do Egrégio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.[27]

Outro ponto a merecer comentário é o relativo à pena de multa, pois fica manifesta a dúvida do anteprojeto sobre qual sistema adotar com relação à sua execução, na medida em que afirma, no artigo 69, que na hipótese de seu descumprimento haverá execução movida pelo Ministério Público e, no §1º do mesmo dispositivo, afirma que caso descumprida a multa se converte em perda de bens ou valores que, destaque-se, tem natureza absolutamente distinta da multa, inclusive quanto aos bens passíveis de atingimento, ou seja, o anteprojeto não consegue definir a simples questão do que deve ocorrer caso não haja cumprimento voluntário da multa, execução ou conversão em outra pena.[28]

Ao tratar, no artigo 77, da reincidência o anteprojeto deixa passar a oportunidade de retirar da reincidência a capacidade de agravamento da pena, atribuindo-lhe outras funções, vez que o agravamento da pena com base na condenação e cumprimento de pena por outro crime anterior representa odiosa prática de bis in iden, nada mais sendo que uma nova punição imposta de forma indireta pelo cometimento de um crime anterior, que já teve sua pena fixada dentro das características específicas do fato.[29]

Ainda que em uma breve referência, merece manifestação a cessão, no anteprojeto, do atual populismo criminal, em que se exploram os problemas da criminalidade e se propugnam por intermináveis punições, sem qualquer atuação efetiva do Estado no equacionamento das causas da conflituosidade social geradora do crime, ao possibilitar, no artigo 91, a unificação da pena em 40 (quarenta) anos, aumentando em 10 (dez) anos o atual limite máximo existente. [30]

No título V, o anteprojeto trata das medidas de segurança mantendo-se atrelado à controvertida política do tratamento, que em regra representou mera habilitação ilimitada do poder punitivo nos países que adotaram o modelo, não tendo sido diferente no Brasil.

Nesse sentido, é perceptível a insistência do anteprojeto em tratar da questão sob o enfoque da noção de periculosidade, herdada das correntes mais separatistas da criminologia etiológica.

Alguns méritos tem o anteprojeto no tema, é inegável, ao sistematizar questões que já eram objeto da evolução jurisprudencial, como a limitação temporal máxima da medida de segurança[31] e sua não sobrevida às hipóteses extintivas da punibilidade[32], assim como a aplicação dos direitos das pessoas deficientes[33].

Persistente e se agrava, porém, o problema da desinternação condicional, que submete a pessoa que apresenta transtornos que motivaram anteriormente a prática de um fato específico que lhe gerou a imposição da medida de segurança, a um regime de eterna semi-liberdade, como se semi-pessoa fosse.

A propósito, mal travestida a criação da pena perpétua no artigo 96, §3º, que autoriza o Ministério Público, a qualquer tempo, estender interminavelmente a internação da pessoa.[34]

A questão de saúde pública da doença mental desaparece, portanto, a partir da política do tratamento criminal e da criação da medida de caráter perpétuo remetida ao Direito Penal, de sorte que o Estado nada precisa fazer para equacionar satisfatoriamente a questão de tantos que sofrem pela presença de patologias que comprometem sua plena capacidade de compreensão e entendimento.   

Na sequência, a partir do artigo 99, o anteprojeto trata da ação penal e “tomando uma carona” no tema, que é comum ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, nos artigos 105 e 106, estabelece regras de Processo, reafirmando a total falta de sistemática da proposta de Código Penal em comento. Na medida em que abordagem ora pretendida é de direito material, deixa-se de tecer considerações a estas regras, que bem poderiam ser debatidas em reforma do Código de Processo Penal, sistematizadas no conjunto desta legislação, a fim de formar uma codificação uniforme e não desencontrada, como tende a ocorrer.

Apenas não se pode deixar de manifestar a total repulsa ao sistema de delação premiada pretendido, recriação do principal método de investigação da inquisição e gerador de ética distorcida na sociedade, com a premiação da traição, além de representar agressão a vários princípios constitucionais do processo penal, como o da ampla defesa, porém, ressalte-se, assuntos que devem merecer análise específica em estudo próprio de processo penal.

Igualmente, os dispositivos finais do anteprojeto, que tratam das causas extintivas da punibilidade, não devem ser objeto de específica apreciação neste momento, ante as exíguas alterações havidas na atual legislação, em tema que é fundamentalmente de ordem normativa. Apenas vale destacar que o maior defeito neste aspecto é justamente a manutenção do sistema atual, em que há hipóteses, por exemplo, de redução do prazo prescricional que não encontram mais suporte lógico no sistema normativo nacional e, por outro lado, excesso de causas interruptivas da prescrição, quase geradoras da eternização do processo e da total ausência de preocupação dos órgãos do Estado em dotar as demandas criminais de celeridade, na medida em que a função de pressão proativa do instituto da prescrição resta prejudicada, vez que dificilmente ocorrerá, por mais lento que seja o processamento processual, realidade esta particularmente grave quando a Constituição Federal declara ser direito dos cidadãos brasileiros a rápida prestação jurisdicional

Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Anteprojeto de Código Penal: análise crítica da Parte Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3372, 24 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22656. Acesso em: 23 dez. 2024.

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