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Luta de classes: Direito Penal do inimigo de classe

Busca-se estabelecer relações entre as formas contemporâneas do Estado de exceção e do Estado Penal, com destaque para as manobras retóricas que transforam ou escondem os escombros da tirania da maioria em suposta legitimidade jurídica de exceção.

Si no eres lluvia, mi amor, sé arbol cubierto de frutos...

Sé árbol,y si no eres árbol, mi amor, sé piedra cubierta de humedad...

Sé piedra, y si no eres piedra, mi amor, sé luna en el sueño de la amada...

Sé luna

(O Estado de Sítio – Mahmud Darwix)

Resumo: o texto procura estabelecer algumas relações plausíveis entre as formas contemporâneas do Estado de Exceção e do Estado Penal, com destaque para as manobras retóricas que transforam ou escondem os escombros da tirania da maioria em suposta legitimidade jurídica de exceção.

Palavras-chave: Estado de Exceção; Estado Penal; tirania da maioria.


A violência social é insuportável nos dias atuais, mas a resposta dada pelo Estado e seu ordenamento jurídico se encaminha para a associação direta entre direito penal e Estado de Exceção. Nesta sombria confusão, associa-se a democracia (um congresso livre que legisla sobre o fim da democracia) e os mecanismos propriamente nazifascistas. Da mesma forma, é certo que se aniquila todo Direito e toda forma de divergência em favor de certa unidade política sem uma clara identificação da finalidade pública. Para Umberto Eco (1998), muitas são as variáveis entre Direito e política no Estado Fascista, mas aqui ajustamos apenas algumas características e de acordo com nossa principal linha de análise. Neste sentido, o que vale para o Estado fascista também vale para o Estado de (não)Direito[3]:

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva lamuerte”. (Eco, 1998, p 43 e ss.) [4].

Nesse Estado Fascista ou de não-direito, educa-se para a morte. Como vimos, apenas o desafio teórico colocado pelo conceito de Estado de Direito e, por oposição, a ausência do Direito dentro do Estado, já é grande o suficiente. Mas, a par disso, some-se o rescaldo de toda nossa história de direitos negados à maioria da população e teremos um quadro dramático que até hoje mantém a questão operária (e da pobreza) como questão de polícia, e não de política. Elimina-se a pobreza, eliminando os pobres – especialmente os que estão presos.

Sete presos morreram queimados vivos na Colônia Penal de Porto Velho, no dia 05 de agosto de 2012. Pode ser que a repetição de mortes de presos, sob a responsabilidade do Estado, leve o Brasil a enfrentar novamente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Lá estivemos em razão do massacre de 27 presos ocorrido no presídio Urso Branco, em 2002. Neste novo episódio, transcorridos dez anos, 150 presos estavam acondicionados em um galpão. Um galpão não poderia, não pode abrigar cento e cinquenta pessoas, independentemente se presas ou soltas. Porém, como estavam presas, sob a custódia do Estado, suas vidas eram de responsabilidade pública. E é óbvio que, na condição de presas, a capacidade dessas pessoas se livrarem do fogo é (ou era) muito menor. Nesta condição estavam indefesas, incapacitadas de defenderem a própria vida.

Em 2010, no Chile, 83 pessoas morreram e outras 21 ficaram feridas em incêndio ocorrido na prisão de San Miguel, em Santiago, em situação semelhante a esta vista agora em Rondônia. Foi preciso que ocorresse isso para que o presidente chileno,SebastiánPiñera, atentasse para as precárias condições das penitenciárias existentes no país. Em Honduras, em 2012, foram mais de 300 mortos, quase a totalidade que o Centro Penitenciário de Comayagua comportaria. No momento em que o Estado assistiu à morte dos presos, entretanto, a penitenciária retinha mais de 900 apenados. Isto é, um terço dos presos foi queimado vivo, sob a visão inercial do poder público, em verdadeiro forno crematório. O que há em comum a todos esses casos é a chacina patrocinada pelo Estado, uma afronta ao Estado de Direito. Com ou sem autorização ou participação direta, o que importa é que o direito essencial à vida não vale nada, pois as condições reais de existência dessas pessoas são inaceitáveis. São pessoas condenadas à morte, como se estivessem presas em campos de concentração. Sem que as “autoridades” responsáveis sejam efetivamente julgadas e punidas estamos condenados a ver a repetição desses casos. No último episódio brasileiro, algumas perguntas restaram para ser respondidas: em situação normal, quanto tempo o Bombeiro demoraria para chegar? Não havia brigada de incêndio, prevendo-se o fato ocorrido? Não havia equipamento de combate a incêndio? Os presos feridos foram socorridos? O que foi e será feito para investigar responsabilidades? O que foi e será feito para evitar outra chacina como esta?

Vimos estarrecidos, há cerca de seis meses, este crime absurdo de omissão, não reparando o prédio que abrigava dezenas de presos, e que acabou em torresmo humano. Quem diagnosticou toda a extensão de responsabilidades geradas pela omissão dolosa foi a perícia dirigida pelo inquérito policial e também capitaneada pelo Governo do Estado. Há mais de um ano, foi expedido um laudo técnico dizendo, alertando para o perigo inerente de incêndio naquele prédio – que mais parecia uma baia –, por falta de material de qualidade. Repare-se que a reforma do prédio não ultrapassava um ano. Quer dizer, reformou-se algo muito ruim para alojar pessoas, este lugar ficou apenas ruim, pela péssima qualidade do trabalho, e depois arruinou-se totalmente com o incêndio. Então, os responsáveis pela reforma, alertados há um ano, logo após o trabalho, do perigo iminente à vida dos envolvidos, por sua omissão, não concorreram com a “sorte” (morte) daquelas pessoas?

Para os que também defendem penas cruéis, está aí um bom exemplo de que sempre se aplicou a pena de morte no Brasil. Neste caso, há ainda a concorrência das qualificadoras: crueldade, impedimento de meios de defesa, motivo fútil. Essas pessoas, naquele momento na condição de presos, foram condenadas à morte na fogueira da incompetência. Ou será que esse tipo de execução não revela que o Brasil, Rondônia citada é claro, voltou à Idade Média? Pena de morte na fogueira, para os que serão queimados vivos, como na inquisição, é esse exemplo de direito que queremos deixar para nossos filhos? Quer dizer que a civilização, nossa própria urbanidade, nos obrigou a matar sete pessoas queimadas vivas, porque os fios estavam velhos,

Na América Latina, como vimos pelos exemplos recortados, vigora um Estado Penal cruel, sádico, em que as mortes devem vir pelo fogo. Para que o leitor tenha ideia da crueldade, basta que imagine a dor e a agonia dos presos com as carnes fritando. Não é uma questão de retórica, nem da defesa dos famosos “direitos dos presos”. Trata-se da defesa da dignidade ou, se quiserem, do que é óbvio, da vida, ou seja, trata-se de enfrentar o fato de que pessoas presas não podem morrer queimadas. Se se quer lutar contra determinados direitos garantidos, se presos ou soltos, até se admite que seja um direito de todos.


A tirania da maioria

É desse modo que, por meio do direito penal do inimigo, que se confunde propositalmente a tirania da maioria com a defesa do contrato social. Essa tirania da maioria é absolutamente nefasta porque não se permite a formação de um espírito diferenciador entre todos que sofrem da coerção. Também é óbvio que não pode haver emancipação se há essa tirania da maioria e não raramente a resistência degenera em mera delinquência. Bobbio chama de tirania da maioria a mudança de regras para ameaçar determinados grupos sociais: “A maioria se torna tirânica quando se aproveita da própria maioria para mudar as regras do jogo, entre as quais, precisamente, é fundamental a da maioria, fazendo passar a maioria para a unanimidade, que, como tal, não reconhece mais a minoria” (Bobbio, 1994, p. 54 – grifos nossos). Entre a tirania da maioria e o Estado Democrático, em defesa do contrato social, há uma grande distância: “Aquele designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço de liberdade de atuação individual face ao Estado. Este se refere à liberdade do status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade comum” (Zippelius, 1997, p. 375). É importante ressaltar este aspecto porque a estrita observância da vontade da maioria, sem respeito ou garantia às liberdades e aos direitos individuais, pode facilmente degenerar em tirania da maioria – quando a maioria decide pela supressão dos direitos das minorias. Historicamente, a utilização dos meios de exceção em favor do capital, no EUA, é uma constante. O dado interessante é que, em nome exatamente da maioria, impõem-se a tirania da excepcionalidade:

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No verão de 1786, o Tribunal Geral de Massachusetts começou a executar propriedades de fazendeiros endividados do condado de Hampshire, confiscando seu gado e suas terras [...] uma milícia de mil e quinhentos fazendeiros armados [...] impediu que os tribunais se reunissem e tomassem suas propriedades [...] A assembleia de Massachusetts suspendeu o direito de habeas corpus e permitiu indefinidamente que fossem feitas prisões sem julgamento para facilitar o sufocamento da rebelião. Ao longo do ano seguinte, os fazendeiros rebeldes foram perseguidos, muitos deles foram detidos e cerca de uma dúzia chegou a ser executada [...] A rebelião, afinal de contas, foi motivada por dívidas – dívidas que os fazendeiros jamais poderiam pagar. Apesar de toda a retórica da igualdade, os Estados Unidos eram uma sociedade dividida em termos de classes, e sob muitos aspectos sua Constituição destinava-se a manter a riqueza dos ricos (Negri, 2005, pp. 313-314 – grifos nossos).


Em nome da moralidade social, agimos imoralmente, com um poder incontrolável.

No auge conhecido atualmente direito penal do inimigoas confusões principiológicasdeliberadas tem o afã de abominar a prevalência dos direitos fundamentais, abolindo-se então as regras protetoras das cláusulas pétreas. O chamado “crime de pessoa” reservado ao estereótipo, condição social, origem étnica, cor ou aparência geral externa, é bastante conhecido da história policial brasileira, com a punição, prisão dos vadios e incrédulos do capital. No pós-11/09, entretanto, a origem no Oriente Próximo, a escolha pelo islamismo colocam o indivíduo no rol de suspeito, por reunir indícios materiais, e sustentam sua prisão e interrogatório sem provas ou direito de defesa. Certificando-sea confusão entre os tipos de Estado contemporâneos, entre o Estado de Exceção e o Estado Penal. Assim é que para Negri (2005) a guerra em rede, provocada pela crise de civilização, impõe um estágio penal absoluto. Na lógica da guerra assimétrica, alguns devem ser extirpados do convício. Esses indivíduos alvejados como “outros-inimigos” têm status, classe, cor, etnias definidas. À falta da individualização da pena, pois padecemos todos sem as garantias dos direitos fundamentais, cede-se à individualização do sofrimento, generalizando-se o uso da exceção na tortura que corresponde a um Estado de Necessidade, como uma técnica essencial, inevitável, justificável. Opera-se uma mudança de política de defesa para política de segurança e de reação para ação.

O Império da guerra (outrora o império da lei) não mais contra-ataca, porque promove guerras preventivas. E assim, novamente, guerra e ação policial encontram-se uma vez que só o meio social acondicionado é seguro. Esta é a moderna doutrina de segurança pública: a guerra total. Policial e guerrilheiro (soldado, mercenário) não mais se distinguem. Em nome da Razão de Estado, promove-se a guerra justa. Portanto, a autoridade baseada tanto na defesa externa quanto na segurança interna define o poder do monopólio da violência. O direito de exceção serve ao Estado, assim como o poder constituinte está em favor dos insurretos. A exceção, como se sabe, afasta o Princípio da Moralidade, porque institui duas perspectivas diferentes e excludentes: uma lógica para o poder, outra para a regra dos cidadãos. E como é a regra do poder que prevalece, sobretudo porque o Estado se autorregula no que lhe interessa, a exceção acaba por vigorar como regra global.

Se o objetivo é estabelecer ou manter a ordem (e não a paz), a violência será legitimada (ou não) a partir dos resultados obtidos. Se a ordem está posta, a legitimidade é conferida pelo poder. Portanto, é necessário haver inimigos em abundância que autorizem o poder extremo da exceção. Sob as escusas da segurança pública, o Estado Penal precisa demonizar grupos sociais e criar os inimigos a serem debelados. Por isso, a tipificação genérica e as normas sem preenchimento, a conveniência política é sempre acionada para decorar o direito penal. É necessário fabricar o inimigo social porque sua presença reforça a necessidade de segurança. Esse estado de guerra reforça a simetria entre criminalidade e terrorismo. A chamada Pax romana ressurge no Estado Penal para travar um grande embate com a guerra civil mundial – a resposta vem com o posicionamento de uma polícia mundial. Por isso, o Estado Penal é um novo tipo de Estado Ético, em que se privatiza a guerra e a segurança – nesse sentido, nem mesmo Maquiavel seria um consiglieri ou conselheiro republicano. Os mercenários impõem-se como novo fator estratégico do Estado Ético: a terceirização alcança a fase da extinção da vida.

Porém, como a resistência está em rede (guerra civil), há uma espécie de rebelião ou revolta dos “muitos”. Isto reforça o dilema de que o soberano necessita da plena obediência – certamente, um fato que revela fragilidade, pois o soberano não depende apenas de si mesmo. O policiamento e a contra insurgência não tem fim: combater as guerras assimétricas das ruas é como atacar um enxame de abelhas africanas. A luta de classes ainda é a referência para que se justifique a ação do Terrorismo de Estado – não é mais um vocábulo da classe oprimida. O direito penal do inimigo trará a legitimidade jurídica ao Estado Policial Mundial, antes discutida pela ação libertária dos sitiados socialmente.


O Direito no Estado de Sítio Social

No exemplo brasileiro mais recente, a onda de violência na maior cidade brasileira, São Paulo, tem levado a medidas extremas, dentro e fora do alcance da lei – diga-se de passagem que está mais fora do que dentro da lei. Esquadrões da morte formados por policiais, como não se via desde o regime militar, matam muito e friamente, como os “marginais” a quem dizem combater. Por isso, é comum ouvir-se dizer que há “caçada humana” – não há nenhum exagero nisso. Porém, ao lado do Estado de Exceção que se formou, também agem as “forças institucionais da lei”. Nessas ações, as comunidades marginalizadas economicamente são cercadas e invadidas pela polícia[5]. São cercos que se fazem nas ruas e nas casas, pois os policiais entram nas casas sem mandado judicial. O mesmo ocorreria em bairros ricos? A polícia entraria em uma mansão, sem mandado ou sem solicitação de seus moradores? Promoveria cercos e invadiria conjuntos residenciais abastados? Nunca houve caso semelhante.

As comunidades marginalizadas enfrentam blitz de mais de 500 policiais. Ocorre um verdadeiro cerco militar, como se fosse decretado – na prática – um Estado de Sítio Social. Chamadas de “operações de saturação”, as forças públicas atuam em nome da lei, mas só para prender pequenos traficantes. O grande traficante, de acordo com a própria polícia, vive nesses conjuntos residenciais aos quais a polícia nem se aproxima. Como resposta ao Estado de Sítio, o crime organizado decreta o toque de recolher[6].Os condomínios, assim como os shoppings centers, são ilhas de poder que fogem da lei; somam tanto mais prestígio quanto mais servem de refúgio ao poder de exceção que acompanha o poder econômico. São pontos de fuga da regra jurídica, porque o direito é indefeso diante do poder que compra a cidadania. As comunidades pobres, ao revés, são pontos cegos; nas comunidades o direito não se apresenta e nem se manifesta, porque o direito segue a economia. Os condomínios são pontos de refúgio sem o alcance da lei, as comunidades são pontos de refugo, ao arrepio da lei. Em ambos, a lei não chega, mas nos condomínios a lei não chega para preservar a intimidade do poder e da economia; nas comunidades, a justiça passa longe porque o direito não protege a quem não tem dinheiro.

Neste sentido, com o Estado de Sítio Social, dia e noite, os trabalhadores, suas mulheres e crianças são desnudados, desvestidos da cidadania e da dignidade humana. Antigamente, a mesma polícia exigia a apresentação da carteira de trabalho, para provar que o indivíduo era um cidadão. (Seria preso todo dia, porque só ando com identidade). Pedia-se a carteira de trabalho porque o capital não perdoa aqueles que não produzem, não perdoa os que não se submetem à exploração econômica, os que não se enquadram na lei da compra e venda da força de trabalho. Quem não gera mais-valia, lucro, renda, para os empregadores, é vadio, deve ser preso. Antigamente, havia crime de vadiagem e os presos eram os avós desses que são cercados pela polícia. Aliás, a mãe de um dos jovens mortos por um dos esquadrões, levou exatamente a carteira de trabalho do filho à delegacia, buscando comprovar o emprego regular e fixo do filho – talvez, na ânsia de que a memória do jovem não fosse achincalhada, mesmo depois que sua vida foi brutalizada. Não há nada de novo neste país e, para se certificar, basta consultar a história do direito.


Direito penal do inimigo

O Estado Penal objetiva o direito penal do inimigo por meio de “setores sociais de regulação e a serem regulados”; como se pudesse haver um direito repressivo que desejamos doar a nossos amigos. O direito penal do inimigo estaria na “terceira velocidade”, em que haveria a imposição das penas privativas de liberdade e a flexibilização dos princípios político-criminais. De todo modo, para suas regras penais já não vigoram princípio e/ou garantias, uma vez que atuam as normas penais em branco (com grande possibilidade interpretativa, subjetiva[7]). Assim, o cerne do debate proposto está em inserir o fenômeno social da criminalidade social às regras de exceção criadas para o inimigo. O resultado é que passam a ser equivalentes, em termos jurídicos, o combate ao tráfico e ao terrorismo. As medidas de emergência promulgam a “guerra ao terror”, combatendo grupos humanos e não propriamente fatos reais. Não há história, a não ser a própria história da Razão de Estado e por isso haveria certa ilusão na máxima ubi societas, ibi jus, uma vez que não se separam os fatos jurídicos dos não-jurídicos (ou políticos, por exemplo). A infração, sobretudo penal, deve ser tratada seriamente porque o infrator é um inimigo de Estado, um traidor que merece punição compulsória, intempestiva (o crime é imprescritível, prolonga-se além de sua ação). Assim como se deu com a pena imposta a Caim, prolongando-se a punição às gerações futuras, sem solução de continuidade. A própria ideia de se separar um direito penal do inimigo e outro do cidadão (se o cidadão não é infrator, por que o direito penal?) corresponde a uma tentativa de se criar uma metodologia criminal baseada nas “medidas em estado de exceção”. Por influência dos EUA, a guerra impõe outra aparência jurídica;por exemplo, a guerra que impõe a excepcionalidade afasta a proporcionalidade.

O direito penal do inimigo, ao equivaler infrator e combatente, alveja duplo sentido: simbologia do direito penal; punitivismo expansionista. Este suporte revela que a exceção cria irracionalidades jurídicas quando separa epistemologicamente o “cidadão normal” do anormal;como se vê na prisão de Guantânamo (Cuba) em que os terroristas são tratados como fontes do perigo e núcleo do Mal. Por isso, argumenta-se que para os tratados criminalmenteno Estado de Emergência Penal, não se aplica o direito e sim a pena. Também se diz que, seguindo o pensamento contratualista (de que a sociedade se origina de um contrato social), especificamente de Rousseau, o infrator volta-se contra a sociedade, viola o contrato social e, portanto, deixa de ser membro do Estado: ao violar o direito social colide com o Estado em sua soberania. Também para a filosofia de Fichte, o infrator coloca-se em “ausência completa de direitos”, como se lhe fosse decretada a “morte civil”. Do mesmo modo, para o pensardo filósofo Hobbes, como o infrator não tem capacidade jurídica de anular seu status de nacional, permanece sempre ao alcance do Estado e de seu direito de guerra, ainda mais quando o Estado se prepara para combater a guerra civil. Nessa mesma linha de argumentação, destaca-se no Kant da Paz Perpétua a razão para que o infrator tenha o status de inimigo. Pois, para o inimigo, a razão estatal vai da coação (coerção) à guerra.

Não é por acaso, portanto, que as medidas de segurança e suas “múltiplas formas intermediárias” podem facilmente chegar aos extremos da exceção. Portanto, não se trata de reparar o dano, mas sim de eliminar o perigo: tal qual na guerra não se atira para ferir ou avisar do perigo. A diferença entre obstáculos ou ofendículos à liberdade e a coerção praticada pelo Poder Público (ética como salus publica), ou seja, como limitação à mesma liberdade, decorre da lógica de que, segundo Kant, a coerção corresponde à ética social já regulada e positivada pelo Direito (como Lei Universal). De tal sorte, a indicação da liberdade (fazer ou deixar de fazer) é dosada pela coerção que estabelece os limites e os parâmetros éticos (costumeiros) da convivência social em determinado momento histórico e em cada sociedade.

A pena se dirige à segurança do futuro e não aos fatos já perpetrados, assim como a despersonalização do infrator (Guantânamo) decorre simplesmente do fato de que, para o Estado e para o direito, já não se trata de pessoas. Isto se justifica porque o inimigo de Estado rechaça a legitimidade do ordenamento jurídico, não apenas agindo contra a norma jurídica, mas contra o contrato originário; agindo contra todos os laços de sangue, ameaça a integridade, a sobrevivência do grupo. O que legitimaria a usar todos os meios, em favor do fim único: o uso da exceção está em que suas regras foram incluídas no direito penal, legitimando-se como “guerra contida”, em que cabe “uma custódia por segurança antecipada”. O perigo do futuro sinaliza uma “custódia de prevenção”: o saneamento da vida social. Em nome do Estado de Direito, retiram-se direitos. O receio do fato futuro (o crime a ser cometido) implica na eliminação do direito no presente. Ao que intervém – como base no 11/09/2001 – a legalidade do procedimento de guerra. Assevera-se que falta “segurança cognitiva suficiente” (desejo do direito) a quem se volta contra o ordenamento jurídico e, por isso, se o Estado o tratar como pessoa, sujeito de direitos, estará negando a necessária segurança cognitiva (desejar viver sob a Constituição Cidadã) aos demais membros do grupo.

A pessoa, como sujeito de direitos, é quem deve ter consciência (elo cognitivo) da norma jurídica – mesmo que a desautorizando. Já o inimigo, ao procurar exterminar a norma jurídica, afugenta-se deliberadamente do vínculo social e da cognição jurídica – é como se agisse para se colocar fora do alcance do Estado, negando-o. Enfim, o direito penal do cidadão se caracteriza pela contradição social (conflito normativo de interesses) e o direito penal do inimigo se congratula pela “eliminação do suposto perigo” (conflito beligerante de interesses). A exceção permitida pela lei leva à exclusão, eliminação do inimigo. Do que decorre, obviamente, uma relação desproporcional entre o tipo penal e o bem jurídico tutelado, impondo-se uma série de práticas sociais excludentes conhecidas do Estado Penal – uma “criminalização no estado prévio”. Portanto, ressurge o punitivismo, como vingança pública.

Mas, tem-se a impressão de que o legislador está atento, pronto a resolver os problemas da violência social por meio da criminalização das próprias relações sociais: um tipo de direito penal simbólico, em que predomina a função latente sobre a manifesta (um “empiriocriticismo” em que o idealismo jurídico se desfaz diante do crime que nem existiu). Isto, por certo, fortalece o clima punitivista em que a política criminal despreza os antecedentes. De todo modo, assinala-seuma crescente demanda de criminalização do mundo da vida. Atualmente, há uma forte demanda pela criminalização da política e das relações sociais aflitivas e decorrentes da luta de classes, tanto na América Latina quanto nos discursos da socialdemocracia europeia. O resultado é a exclusão do Outro, tanto nos discursos e práticas punitivas da esquerda quantona direita política. Com isso, o Estado ainda dissocia o direito e o sujeito, despersonaliza a ação social delituosa e não mais se aplica ao controle social - e sim ao combate social. A este “outro sujeito de não-direitos” (no lugar do Outro) não se aplica a reprovação, mas sim a neutralização. Nesta Nova Cruzada (basta ver o crescimento dos exércitos mercenários), somam-se, misturam-se o sentido religioso e militar. A atribuição da perversidade ao “outro-inimigo” implica na sua demonização, como já ocorrera com os pobres, os trabalhadores, os “vadios”, as oposições políticas e as “classes sociais inimigas”. (Lúcifer, o anjo caído, também recebeu o nome de inimigo). Estando em debate aberto a ultima ratio, a última barreira do capital em defesa contra os não-proprietários, o fato jurídico notório é o emprego de meios de exceção para a exclusão social (hoje não-étnica) e, é claro, não pode haver excepcionalidade da lei sem que ocorra a própria fuga da normalidade, legalidade do sistema. Com o excepcionalismo, a Razão de Estado praticamente reconheceu a competência normativa do autor (a capacidade de questionar o sistema de normas e de poder). Porém, por meio da tipificação do “inimigo social de Estado” acaba por se reconhecer seu status de opositor e que se tornou inimigo. Neste sentido, já se tipificou o “terrorista individual”, a partir de um direito penal do autor e não como cobertura cognitiva do fato consumado(Jahobs, 2005). Pune-se não pela ação agressiva, mas pela própria existência. Afinal, à Razão de Estado interessa muito mais identificar e neutralizar o suposto “outro-inimigo” do que restringir a pena ao fato. Nossa crise de civilização, além de moral e material, é também uma crise princípios e de lógica: a tirania da maioria adquiriu a legitimidade assentada na Razão de Estado. Se há caminho alternativo a esta formação/adequação ao sistema emasculado da liberdade, a saída está na educação radical para não-sucumbir, para não se contentar com a servidão voluntária.

Para o libertário La Boétie (1986), trata-se de denunciar a tirania que se encontra aposta ao Estado Teológico, em pleno curso do Renascimento. Em seu Discurso, La Boétie (1530-1563) produziu um hino à liberdade. Neste momento, seu maior amigo e interlocutor era Montaigne (1533-1592) e este nos diz que seu espírito e sua obra não pertenciam ao século XVI. Para La Boétie, a tirania, governo de um só homem, é ilegítima. Também recusa os fundamentos religiosos e assim denuncia o Estado Teológico de opressão e de obscurantismo. Trata-se de uma educação contra a tirania, hegemonia, unanimidade e qualquer tipo de opressão, especialmente quando em nome da liberdade. Trata-se de educar contra o desejo de ser sitiado!A voz do sitiado ecoa em prosa e em verso, tem dramaticidade na vida real e no romance, na resistência armada e no poema. A voz do sitiado em todos que rejeitaram a obediencia à exceção, sob que razão fosse, e assim se lançaram em prol da “luta pelo reconhecimento do direito à sedição”.  Estão aqui, passado e presente, realidade e ficção, verso e prosa, em perfeita harmonia que dissocia a razão do bom senso, o direito da justiça, e mistura freneticamente utopia com alucinação, o poder com a barbárie.


Bibliografia

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BOBBIO, Noberto. As ideologias e o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via e terceira força. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 3ª edição, 1994.

CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

DARWIX, Mahmud. Estado de Sítio. Espanha - Madri :Ediciones Cátedra, 2002.

ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

JAHOBS, Günther& MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005.

LA BOETIE, E. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1986.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 4ª ed. Col. Os Pensadores. Vol. II. São Paulo : Nova Cultural, 1988.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa : Fundação CalousteGulbenkian, 1997.


Notas

[3] “Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito” (Canotilho, 1999, p. 11 – grifos nossos).

[4] A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.

[5] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/10/29/pm-de-sp-prende-membro-do-pcc-em-paraisopolis.htm.

[6] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/10/27/boatos-de-toque-de-recolher-fecham-comercio-em-sp.htm.

[7] Lembrando-se que a subjetividade decorre de modo direto, inflexivo da presença do sujeito, isto é, quem promove a subjetividade é o sujeito – o que ainda permite concluir que, para cada sujeito, equivale uma interpretação.

Sobre os autores
Fátima Ferreira Martinez

Professora de Ética e Legislação Aplicada aos Negócios no Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Bacharel e Mestra em Direito.

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Fátima Ferreira; MARTINEZ, Vinício Carrilho. Luta de classes: Direito Penal do inimigo de classe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3425, 16 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23034. Acesso em: 22 nov. 2024.

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