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Os crimes contra a liberdade religiosa e contra o respeito aos mortos na Itália e na Alemanha

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Agenda 19/12/2012 às 18:02

3. OS CRIMES CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA E O RESPEITO AOS MORTOS NO DIREITO ALEMÃO

3.1. Introdução

Se no ordenamento italiano a dificuldade repousava no truncando sistema de normas que tutelam a liberdade religiosa e o respeito aos mortos, no ordenamento alemão está na linguística.

A sintaxe e, especialmente a semântica da língua alemã são absolutamente diferentes daquela apresentada pela língua portuguesa, o quê torna as traduções extremamente trabalhosas e difíceis. Quando estamos diante de normais penais, onde a precisão na tradução dos termos é essencial, qualquer erro pode arrasar todo o processo interpretativo.

Certamente que não pretendemos elaborar uma tradução livre de erros, já que esta é fruto da nossa subjetividade, que escolhe dentro do nosso repertório linguístico o termo que entendemos mais adequado; porém, para minimizar eventuais erros, quando de expressões de difícil interpretação, justificamos nossa tradução para que o leitor, caso queira, possa discordar e interpretar de maneira diversa.

Contudo, antes de adentrarmos propriamente a análise das normas penais, faremos um breve comentário sobre o atual estágio da teoria do bem jurídico-penal na Alemanha.

3.2. Entre sociologismos e constitucionalismos: a tutela da liberdade religiosa na teoria alemã do bem jurídico-penal

A tutela da liberdade religiosa é um dos pontos nodais da discussão sobre o bem jurídico-penal na doutrina alemã. Não porque os doutrinadores consideram absurda a tutela da liberdade religiosa, mas porque os tipos penais do StGB, como § 166, tutelam, na verdade, um sentimento: a paz pública (öffentliche Friede), um mero sentimento de insegurança.

Em razão disso, faremos um breve comentário sobre as duas principais teorias do bem jurídico na atualidade (sociológica e constitucionalista), e discorreremos acerca do seu posicionamento com relação aos crimes contra a liberdade religiosa.

3.2.1. Concepções sociológicas

Como anota PELARIN, “com a retomada das concepções liberais após a segunda guerra mundial, dada a insuficiência, quando não inexistência, da conceituação material do crime para impor limites ao poder punitivo, a preocupação acerca da matéria tem flutuado, nas últimas décadas, entre a proteção de bens jurídicos com apego em construções sociológicas e em edificações baseadas na Constituição”[52].

Depois dos abusos e barbaridades cometidas durante a segunda guerra mundial, as “novas” democracias emergidas do conflito buscaram edificar um conceito material de bem jurídico, tornando-o um critério efetivamente passível de limitar a atuação do legislador penal. Essas concepções surgiram primeiramente na Alemanha e, logo em seguida, na Itália.

A despeito da existência de diferenças substanciais entre as concepções alemã (social, propriamente dita) e italiana (constitucional), é certo que são frutos do mesmo pensamento, já que, em determinada maneira, a Constituição é a positivação dos anseios sociais.

Em verdade, apesar da existência de certa unidade metodológica, conceitual e, especialmente, geográfica nas concepções sociológicas, seu pensamento é notoriamente pluralista, na medida em que convivem desde concepções funcionalistas sistêmicas, de cunho radical, até outras, interacionalistas simbólicas, de cunho mais moderado.

 A primeira concepção sociológica de bem jurídico-penal, atribuída a Knut AMELUNG, almejava um conceito material de crime – do fato criminoso até a prevenção – uma teoria fundada na danosidade social[53] e, assim como faz JAKOBS, se afasta de um conceito de bem jurídico-penal.

Sendo assim, ao direito penal está reservada apenas a criminalização das condutas socialmente danosas, fatos disfuncionais que dificultam ou impedem a resolução dos conflitos sociais e, consequentemente, a manutenção da própria unidade social, sendo, na verdade, verdadeiras condutas disfuncionais.

Aprofundando-se ainda mais nas concepções funcionalistas sistêmicas, JAKOBS afirma que não é a função do direito penal proteger bens jurídicos, mas sim a prevenção de ataques à validade da norma[54]. Tal concepção, bastante radical, busca a desmaterialização do conceito de Direito Penal, criticando duramente o conceito de bem jurídico-penal, primeiramente porque os esforços em conceitua-lo estariam esgotados[55] e, depois, porque seu estudo não traria qualquer contribuição[56] ao estudo da teoria do delito.

Os argumentos apresentados por JAKOBS são fortes e encantam muitos, contudo, as concepções sociológicas são, também, bastante criticáveis. A primeira crítica e, talvez, a principal é de que tais concepções são excessivamente abstratas e de caráter meramente acadêmico, já que o bem jurídico é um fenômeno recorrente na aplicação do Direito Penal em grande parte dos ordenamentos, seja em seu caráter sistematizador, seja em seu caráter interpretativo.

Outra crítica, a nosso ver igualmente relevante, é de que não cabe ao Direito Penal tutelar as iterações sociais, meras funções sociais, como, v.g. as funções administrativas.

Feitas essas brevíssimas considerações com relação à teoria sociológica, é certo que para JAKOBS não haveria nenhum óbice à tutela de sentimentos. Na verdade, a teoria do Direito Penal do inimigo desenvolvida pelo autor trabalha com a ideia de “sentimento de insegurança”, um conceito bastante indeterminado e, até mesmo, perigoso, mas que mostra a ratio do sistema penal desenvolvido pelo penalista alemão.

Desconhecemos se JAKOBS já se debruçou sobre os crimes religiosos, contudo, para sua teoria, não haveria óbice à tutela do sentimento de segurança (paz pública), ou mesmo do sentimento religioso propriamente dito, e os crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos atualmente em vigor no Direito Penal alemão (§§ 166, 167, 167a e 168 do StGB) seriam considerados absolutamente legítimos, na medida em que se prescinde da existência de um bem jurídico palpável.

3.2.2. Concepções constitucionalistas (de caráter geral)

Para a teoria constitucionalista de caráter geral, “a Constituição é tida como o marco de referência, o informativo vinculante com princípios genéricos (Estado de direito e socialdemocracia, por exemplo), cuja premissa maior consiste na ideia de que o Estado de Direito é informado pelo princípio do pluralismo e da tolerância, do que se deduz que ‘a pena estatal não pode ser legitimamente infligida para impor o mero respeito a determinadas concepções morais’”[57].

Nessa vertente está o pensamento de Klaus ROXIN, que “parte da ideia de Constituição, mais especificamente, da noção moderna de Estado democrático e social de Direito”[58]. Tratando sobre o tem bem jurídico-penal e reforçando a ideia de exclusiva proteção dos bens jurídicos, ROXIN afirma que a finalidade do Direito Penal é a proteção jurídica de todos os meios ou circunstâncias que permitam o livre desenvolvimento do indivíduo, de seus direitos fundamentais, e a criação e funcionamento de um ordenamento jurídico voltado para esta finalidade[59].

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Se contrapondo àqueles que defendem o caráter meramente sociológico do bem jurídico-penal, ROXIN afirma que apenas a adoção do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, aplicado com fundamento nas funções sociais do Direito Penal e lastrado pela incorporação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais acolhidos constitucionalmente levará à verdadeira limitação da atuação do legislador penal.

O resultado desta – necessária e fragmentada – análise (da concepção de bem jurídico-penal), é que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, ao contrário do que afirmam seus detratores, tem a capacidade de limitar a atuação do Direito Penal, especialmente quando aplicado com fundamento nas funções sociais do Direito Penal, e derivado e incorporado à proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais concebidos constitucionalmente.[60]

ROXIN, ao tratar dos crimes sem bem jurídico e dos crimes com bens jurídicos abstratos, se debruça sobre o bem jurídico paz pública (öffentliche Friede), fundamento dos crimes contra o sentimento religioso no Direito Penal alemão, e sobre o § 166 do StGB.

Segundo o autor, a tutela do bem jurídico paz pública não seria mais justificável[61], contudo “apesar da controvérsia sobre a legitimidade bem jurídico ‘paz pública’, a tutela (da liberdade religiosa) pode ser realizada através de elementos de direitos fundamentais que garantam a coexistência do homem”[62].

Assim, para o autor, apesar da ilegitimidade das normas que tutelam atualmente os crimes contra a liberdade religiosa no Direito Penal alemão, tal tutela seria legítima, caso se considerasse a tutela como fundamental para o livre desenvolvimento do homem e para sua convivência em sociedade.

3.3. Crimes relacionados à religião e à concepção de mundo

A secção 11 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch – StGB) disciplina os crimes relacionados à religião e à concepção de mundo[63]. Numa primeira leitura, pode-se considerar que os delitos relacionados à religião e à concepção de mundo seriam apenas aqueles referentes às questões religiosas ou filosóficas, como ocorrer no ordenamento italiano. Porém, o Código alemão disciplina, sobre a mesma rubrica, os crimes contra o respeito aos mortos, na medida em que, os atos praticados em memória a eles representam, também, atitudes religiosas ou filosoficamente orientadas.

A legislação alemã sofreu uma grande reforma em 1969 e, nos crimes relacionados à religião foi trazida também a possibilidade de tutela penal das ofensas às diferentes concepções de mundo, ideológicas ou filosóficas, sendo considerada por muitos uma legislação moderna e avançada.

3.3.1. Vilipêndio à confissão, às associações religiosas ou às associações ideológicas

A norma do §166[64] do Código Penal alemão disciplina o crime de “vilipêndio à confissão, às associações religiosas ou às associações ideológicas” através do seguinte enunciado:

§ 166 Vilipêndio à confissão, às associações religiosos ou às associações ideológicas

(1) Quem, publicamente ou por meio de divulgação de publicações (§ 11 inc. 3), vilipendie o conteúdo de credos religiosos, ou as concepções de mundo de outros, de maneira eficaz para perturbar a paz pública, será punido com pena privativa de liberdade de até três anos ou com multa.

(2) Da mesma forma, será punido quem publicamente ou por meio de divulgação de publicações (§ 11 inc. 3) vilipendie uma igreja existente no país, ou outra associação religiosa ou ideológica, suas instalações ou seus costumes, de maneira apropriada para perturbar a paz pública.[65]

Para a doutrina alemã, com o advento do Estado secular, pluralista, onde a liberdade de expressão deve ser protegida, a proteção religiosa tem de encontrar legitimação em algo que não seja na própria religião, isto é, a proteção tem de ir muito além de meros sentimentos religiosos[66]: a relação entre Estado e Igreja deve ser neutra, sem que haja posicionamento religioso por parte do Governo. Nesse sentido, o tipo do § 166 do StGB tem de encontrar legitimação não-religiosa[67]; e, através dessa concepção, muitos doutrinadores têm entendido que o bem jurídico protegido pela norma é a paz pública (öffentlich Friede)[68].

No Direito Penal alemão, tal constatação parece muito mais correta do que no italiano, pois, em quase todos os tipos do ordenamento existe expressa referência à eficácia da perturbação, diferentemente do ordenamento peninsular. Sendo assim, apesar da precisão das considerações de MANTOVANI[69], nos parece, na verdade, que o ordenamento italiano, diferentemente do alemão, protege, até por questões históricas, o sentimento religioso, e não a paz pública.

De qualquer forma, a doutrina alemã, especialmente ROXIN, critica a indeterminação do bem jurídico “paz pública”, acoimando-o de ilegítimo, discussão sobre a qual já nos debruçamos, ainda que superficialmente, quando da análise do bem jurídico.

A conduta incriminada é vilipendiar, ultrajar (beschimpfen), publicamente ou através de escritos, “o conteúdo de uma crença religiosa ou ideológica. O conteúdo é determinado pelas crenças concretas das confissões religiosas sobre as quais recai um conteúdo de formação (do indivíduo), ou de concepções ideológicas concretas”[70].

Segundo a doutrina, a crítica religiosa elimina a ocorrência do crime[71], contudo, a doutrina traz vários casos onde os autores de condutas tidas como “crítica religiosa” foram punidas, como no caso de “desenhar um crucifixo numa ratoeira, (...) publicar figuras de porcos pregados a uma cruz numa página da internet”[72], dentre tantas outras situações.

Além disso, para que o crime fique caracterizado, o vilipêndio tem de ocorrer publicamente, num contexto comunicativo[73], não se perfazendo o crime caso o agente, v.g., jamais publique seus escritos ou faça suas considerações verbais em ambiente fechado.

A conduta no inciso (1) pode recair sobre o conteúdo de concepção religiosa (religiösen Bekenntnisse) ou ideológica (weltanschaulichen Bekenntnisse):

Nos termos do inc. I, o vilipêndio deve recair sobre o conteúdo religioso (ou seja, o conteúdo da crença em um Deus ou numa religião) ou ideológico (relacionada com concepções ideológicas, não necessariamente ligadas ao divino, mas com a ideia básica de se debruçar sobre as peculiaridades do homem e do mundo).[74]

No inciso (2), a conduta deve recair sobre uma Igreja (Kirche) ou sobre um local destinado ao encontro de uma associação religiosa ou ideológica (Religionsgesellschaft oder Weltanschaungsvereinigung). Esses termos têm significados análogos àqueles que são empregados na língua portuguesa, contudo, cabe salientar que, para a doutrina, “igrejas ou outras associações religiosas” podem ser objeto de ataque independentemente de qualquer autorização administrativa[75], podendo ser católicas, islâmicas, judaicas, budistas, etc.; e “associações ideológicas”, para fins penais são associações que têm como tarefa principal a reunião de indivíduos em torno de uma crença[76].

Além disso, é de se notar que no nosso ordenamento não é incriminado o vilipêndio às associações ideológicas, sem caráter religioso, mas que se debruçam necessariamente sobre questões metafísicas. Não querendo nos valer de um discurso criminalizante, mas nos parece que o ordenamento alemão agiu corretamente ao punir também às ofensas perpetradas contras tais grupos, distanciando, assim, a noção desses crimes de uma proteção meramente religiosa, e passando a uma proteção verdadeiramente social.

Por fim, se faz imperioso destacar que o tipo é doloso e não admite tentativa.

3.3.2. Perturbação do exercício de culto

Assim como em muitos outros, o ordenamento punitivo alemão tipifica a conduta de perturbação do exercício de culto, através dos incisos da norma do § 167 do StGB:

§ 167. Perturbação do exercício de culto

(1) Quem

1. Perturba intencionalmente de maneira grave o serviço religioso ou algum ato de culto religioso de uma igreja existente no país ou de outra sociedade religiosa, ou

2. Pratica atos ultrajantes em local destinado ao serviço religioso de uma sociedade religiosa,será punido com pena privativa de liberdade de até três anos ou multa.

(2) Ao serviço religioso se equiparam as celebrações correspondentes de uma associação ideológica existente no país.[77]

A norma do § 167 do StGB, além de proteger a paz pública, protege o exercício pacífico da crença religiosa ou ideológica[78], na medida em que a paz pública, nestes casos, repousaria sobre a possibilidade do livre exercício de crença religiosa ou ideológica por parte de todos os indivíduos da comunidade.

O inciso (1), de maneira muito similar à norma da segunda parte do art. 208 do nosso estatuto punitivo, tem o verbo perturbar (stören) como núcleo do tipo. “Perturbar significa impedir, total ou parcialmente, o serviço religioso ou alguma ação de caráter religioso”.[79]

A perturbação há de ser intencional e afetar de maneira grave o serviço religioso. Assim, não há crime quando o serviço religioso é afetado de maneira insignificante, como, por exemplo, quando um indivíduo se vale, por exemplo, de interjeições, ainda que inadequadas e incômodas.

“Serviço religioso (Gottedienst) é a união de membros de uma associação religiosa, com finalidade de adoração religiosa ou culto de deuses, através da compreensão de usos, costumes e formas”[80] e “atos de culto religioso (gottesdienstliche Handlungen) são os atos ritualísticos de adoração que, além dos serviços religiosos, representam a necessidade adoração individual tida como correta por cada indivíduo”[81].

O inciso (2) é, certamente, o de tradução mais dificultosa. A norma se vale de uma expressão idiomática (beschimpfenden Ufung verübt), que não encontra correspondente em nossa língua. Contudo, observando que a doutrina define a expressão beschimpfenden Ufung como “um desrespeito grosseiramente indecente, com a finalidade e apropriado para ferir o sentimento religioso”[82] , “é uma atitude grosseiramente indecente, rude, desnecessária, que apesar da proximidade geográfica, não precisa ser feita diretamente para o local em si, mas no desprezo das suas características proeminentes, através de atos sexuais, músicas de conteúdo pornográfico, (...)”[83], entendemos que a tradução mais correta para o termo seria “praticar atos ultrajantes”.

O fato deve ocorrer em um local destinado ao serviço religioso, isto é, dedicado às ações religiosas, litúrgicas, sendo que os locais destinados apenas a reuniões de cunho religioso não são considerados como destinados ao serviço religioso[84].

O inciso (3) equipara as celebrações correspondentes de uma associação ideológica (Weltanschauungsvereinigung) às celebrações religiosas. Para a doutrina, as associações ideológicas “são aqueles locais destinados a manter a celebração de determinado culto filosófico, e não apenas locais destinados a reuniões ou debates”[85].

Nessa medida, a norma, além de proteger os serviços religiosos, também protege as associações ideológicas de perturbações ou escândalos eventualmente cometidos. Contudo, como bem assevera a doutrina, não é qualquer local destinado às reuniões ou debates, mas sim um local efetivamente destinado ao culto a determinado movimento filosófico.

3.3.3. Perturbação de cerimônia funerária

A norma do § 167 do Código Penal alemão traz um tipo derivado, acrescido pela reforma de 1969, e que pune a “perturbação de cerimônia funerária” através da seguinte redação:

§ 167a. Perturbação de cerimônia funerária

Quem intencional ou conscientemente perturba uma cerimônia funerária, será punido com pena privativa de liberdade de até três anos ou multa.[86]

 O bem jurídico-penal tutelado se assemelha muito àquele da norma do art. 209 do Código Penal brasileiro, pois a norma protege o sentimento de piedade, buscando a preservação das cerimônias fúnebres, sejam elas religiosas ou não[87]

O verbo núcleo do tipo é perturbar (stören), por nós comentado ao tratarmos do crime de “perturbação do exercício de culto” (§ 167 do StGB): o impedimento, total ou parcial, da realização de cerimônia fúnebre.

A perturbação há de ser intencional ou consciente, isto é, se o agente, mesmo não tendo a intenção, tem a consciência de sua conduta, há a incidências da norma incriminadora, se tratando de uma hipótese de dolo sem vontade[88].

A cerimônia funerária (Bestattungsfeier) é aquela de caráter civil e, caso possua também caráter religioso, haverá concurso ideal (Idealkonkurrenz) com o crime do § 167 e, eventualmente, como o crime do § 166 do StGB, caso ocorram vilipêndios à religião ou à ideologia empregadas no cerimonial[89].

3.3.4. Perturbação ao descanso dos mortos

A Lei Nacional n.º 24, de 13 de janeiro de 1987, modificou a redação do § 168 do StGB, que incrimina a “perturbação do descanso dos mortos”, que passou a apresentar a seguinte redação:

§ 168. Perturbação do descanso dos mortos

(1) Quem, sem autorização, subtrai da custódia de quem de direito um cadáver, partes de uma pessoa morta, um feto morto, partes de um feto morto, ou as cinzas de uma pessoa morta, ou que pratica com eles atos ultrajantes, será punido com pena privativa de liberdade de até três anos ou multa.

(2) Da mesma forma será castigado quem destruir ou danificar uma instalação mortuária, local de enterro ou locais públicos dedicados à lembrança dos mortos, ou quem realiza atos ultrajantes nestes locais.

(3) A tentativa é punível.[90]

O bem jurídico tutela pela norma é o sentimento de piedade (Pietätsgefühl)[91], não em um sentido religioso, mas em um sentido cultural, de proteção dos sentimentos que os indivíduos vivos apresentam com relação aos seus entes queridos mortos, independentemente de quaisquer dogmas religiosos ou mesmo filosóficos.

O inciso (1) apresenta dois verbos. O primeiro, subtrair (wegnehmmen), utilizado no mesmo sentido que no Direito Penal brasileiro. Contudo, o objeto da subtração (corpo humano, feto ou cinzas) tem de estar na posse de quem de direito e, além disso, a subtração tem de ser não autorizada (unbefugt).

A conduta (subtrair) deve recair sobre um corpo (Körper), um feto (Leibesfrucht), ou sobre parte deles, ou ainda sobre as cinzas de uma pessoa morta (Asche).

O objeto de proteção da norma são, primeiramente, os corpos de pessoas mortas ou de bebês nascidos, contanto que a individualidade esteja preservada, enquanto a coesão física ainda estiver totalmente destruída pelo processo de decomposição, ou que seja objeto do direito, como a anatomia em cadáveres ou em múmias.

Partes de corpos de pessoas mortas são pedaços de corpos humanos, ao mesmo tempo que é considerado um cadáver na sua totalidade

Ainda incluídos neste conceito estão um feto morto, ou partes de um feto morto. Feto é o fruto da concepção humana, mas não o óvulo ainda não implantado no útero da mãe.

Cinzas são os resíduos da combustão de um morto, ainda que não estejam completos.[92]

O segundo núcleo do inciso (1) é praticar atos ultrajantes (beschimpfenden Unfug verübt), em sentido similar ao apresentado pelo § 167, de ofender grosseiramente o sentimento que se deposita sobre o indivíduo morto. É o que em nosso ordenamento seria considerado vilipêndio, um ato ultrajante, que pode ser praticado das mais diversas formas.

A conduta deve recair sobre os mesmos elementos do primeiro verbo: corpo (Körper), feto (Leibesfrucht), ou cinzas (Asche).

O inciso (2) apresenta três núcleos: destruir (zerstört), danificar (beschädigen) e praticar atos ultrajantes (beschimpfenden Unfug verübt). Já comentamos o primeiro, que equivale o vilipêndio na legislação brasileira e, quanto aos outros, não cabem grandes divagações doutrinárias, pois são empregados em sentido análogo aos termos em português.

A conduta deve recair sobre instalação mortuária (Aufbahrungsstätte), local de enterro (Bezeitzungstätte) ou local público destinado à memória dos mortos (öffentliche Totengedenlstätte).

Instalações mortuárias são “as instalações, religiosas ou seculares, destinadas a receber os mortos antes do enterro”[93]; local de enterro “e o local de paz e memória de determinado indivíduo”[94], o que equivaleria a sepultura em nosso ordenamento; e o local público destinado á memória dos mortos “são locais que, independentemente da existência de sepultaras, são destinados ao culto da memória dos mortos, individual ou coletivamente”[95].

Muito se discutiu sobre a questão da tipificação da conduta de médicos na norma do § 168, (2), do StGB nos casos de retirada de órgãos para transplantes[96], especialmente nos casos em que não havia autorização expressa do falecido para tanto. Contudo, com as recentes regulações administrativas sobre o tema, a questão perdeu sua relevância penal.

No Brasil, também existia alguma discussão, antes da devida regulação, sobre a tipificação da retirada de órgãos para fins de transplantes. Porém, como advento da Lei n.º 9.434/97, que disciplina a retirada de órgãos, de indivíduos vivos ou mortos, para transplante, o impasse foi superado.

Na verdade, a própria Lei [9.434/97], em seu art. 19 incriminou, com pena de seis meses a dois anos, a conduta de quem “deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares interessados”, protegendo, assim, “o mesmo bem jurídico objeto dos crimes contrários ao sentimento de respeito aos mortos”[97].

Por fim, o inciso (3) permite que o crime seja punido na sua forma tentada. Tal fato é um resquício dos tempos em que ainda não havia a clara separação entre a parte geral e a parte especial, contudo, na atualidade, é utilizado como um meio de informar o aplicador do direito da possibilidade de aplicação do conatus.

Sobre o autor
Matheus Herren Falivene de Sousa

Advogado. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Matheus Herren Falivene. Os crimes contra a liberdade religiosa e contra o respeito aos mortos na Itália e na Alemanha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3458, 19 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23273. Acesso em: 26 dez. 2024.

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