1)Introdução
A União Européia, enquanto projeto integracionista, teve desde surgimento de sua forma embrionária na década de cinquenta, uma esfera de competências até então inaudita, mirando objetivos grandiosos.
Exatamente por conta da abrangência de suas competências (de atribuição soberana delegada pelos Estados-Membros), foi necessário desenvolver um complexo sistema de harmonização e aplicação legislativa, para solucionar eventuais e previsíveis problemas decorrentes da coexistência, no âmbito nacional, de normas internas (assim entendidas como aquelas produzidas pelo próprio Estado), de normas Comunitárias e de normas de Direito Internacional, advindas especialmente de tratados internacionais, celebrados pelo Estado ou pela Comunidade.
Assim, formou-se uma sistemática de aplicação direta, no plano interno de cada Estado, das normas comunitárias, bem como de absorção do Direito advindo da celebração de tratados pela Comunidade como direito comunitário próprio e, dessa forma, também com aplicação direta nos Estados.
A despeito de uma certa inexistência de discussão desse sistema em tese, a aplicação dos efeitos diretos caso a caso tem gerado controvérsia na esfera doutrinária, por conta dos critérios adotados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades europeias para a outorga de efeito direto a certos tratados internacionais.
Dentre os núcleos de conflito, está a recorrente negativa de concessão de efeito direto às normas elaboradas no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Argumenta, a doutrina crítica à posição adotada pelo TJCE[1], que as normas da OMC, inclusive as decisões de seu Órgão de Solução de Conflitos, preenchem os requisitos estabelecidos pela teoria do Efeito Direto, desenvolvida pelo próprio TJCE, e que a recusa deste Órgão estaria fundada mais em postulados políticos que jurídicos, o que seria, segundo a visão destes autores, inadequado para o alcance dos objetivos tanto da OMC (a qual é integrada pelas Comunidades e seus Estados) quanto da própria União Europeia.
De toda sorte, independentemente da opinião tanto de parte da doutrina especializada quanto de alguns dos Advogados Gerais do TJCE, a inaplicabilidade de efeito direto às normas elaboradas no âmbito da OMC estava relativamente consolidada, até o recente caso Biret International, que novamente levantou discussões sobre o tema, especialmente em função de o Tribunal, ainda que não tenha se manifestado expressamente, não ter reiterado a ausência de efeito direto das normas da OMC.
No presente artigo, através de uma análise do caso Biret International, será analisada a teoria do efeito direto da normas comunitárias e a abordagem do TJCE acerca de sua aplicabilidade frente às normas e decisões da OMC.
2) Biret International c. Conselho
O caso em estudo surgiu de pedido de indenização formulado pela empresa Biret International, importadora de carne bovina, nos termos do art. 215, §2º do Tratado CE (atual art. 288, §2º CE)[2], com fundamento na ilegalidade das Diretivas 81/602/CE, 88/146/CEE e 96/22/CE[3].
Por meio destas, o Conselho impôs restrições à importação de carne bovina proveniente de animais tratados com certos hormônios.
Canadá e Estados Unidos, exportadores de carne bovina, ao apreciar a nova legislação, entenderam que esta implicava violação ao Acordo Relativo a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (doravante “Acordo SFS”)[4], travado no âmbito da Organização Mundial do Comércio e, assim, buscaram a tutela do Órgão de Solução de Conflitos da OMC (doravante “OSC”).
Analisando a questão posta, o OSC concluiu que, de fato, as Diretivas não continham embasamento científico suficiente e, portanto, a imposição de restrições à importação de carne bovina violava o Acordo SFS. Ao final, o OSC concedeu prazo de 15 meses à CE para adequação da legislação restritiva.[5]
Escoado o prazo concedido, tanto Estados Unidos quanto Canadá passaram a impor medidas compensatórias (retaliação) pelo não cumprimento da decisão exarada no âmbito da OMC. Em resposta, a CE, em 2003, editou nova diretiva, a qual alegou estar cientificamente justificada. Os litigantes, entretanto, firmaram posição no sentido de que a nova diretiva seguia violando o Acordo SFS, razão pela qual mantiveram as medidas compensatórias até 25 de setembro de 2009, quando as partes notificaram a celebração de acordo para encerrar a demanda[6].
Frente a esse panorama, a empresa importadora de carnes Biret International, em processo de liquidação judicial desde 1995, apresentou ação de indenização por dano extracontratual contra a Comunidade Europeia, junto ao Tribunal de Primeira Instância. Seu pleito toma por causa de pedir o fato de a CE não ter cumprido a determinação do OSC, o que teria gerado prejuízos à empresa.
Especificamente, argumentou, a requerente, violação do princípio da confiança legítima e violação ao acordo SFS, ao qual pugna aplicação direta, através da incidência do art. 300, n. 7 , CE.
Se debruçando sobre o caso, o Tribunal de Primeira Instância acabou julgando improcedente o pedido da empresa, ao argumento de que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias entendia inaplicáveis diretamente os acordos GATT/OMC, não sendo estes, pois, base jurídica através da qual se poderia analisar a legalidade dos atos comunitários, bem como não criando direitos invocáveis imediatamente pelo particular.
Por decorrência lógica, em não constando os acordos GATT/OMC do arcabouço jurídico pelo qual o TJCE sindica a validade dos atos das instituições, não se poderia falar em violação de direito subjetivo de forma a criar um dever de reparação para o particular.
Houve manejo de recurso ao TJCE, sob o fundamento de existir violação à norma que integra os tratados de direito internacional nas normas do direito comunitário. De forma subsidiária, pugna por uma evolução da jurisprudência do Tribunal, no sentido de reconhecer efeito direto aos acordos GATT/OMC, como um conjunto, ou ainda, norma a norma.
Em seu parecer, o Advogado-Geral Alber[7] comungou entendimento com a empresa Biret International, referindo, de início, que a jurisprudência até então nunca havia analisado caso de descumprimento de decisão do OSC, hipótese que seria substancialmente distinta da violação do texto dos tratados GATT/OMC e, assim, autorizaria julgamento contrário à jurisprudência dominante.
Defendeu, o Advogado-Geral, que os argumentos pretéritos da Corte, fundados na presunção de flexibilidade de cumprimento das obrigações decorrentes do GATT/OMC, não se aplicariam à espécie, vez que, no caso de decisão do OSC, o tempo de negociações já teria escoado, restando ao Estado-Membro sanar a violação ao acordo. Observou, ainda, que a adoção dessa medida resultaria por limitar o poder discricionário das instituições das CE, o que se fazia necessário naquele momento histórico.
Finalmente, o parecer ofertado aduziu que o argumento da falta de reciprocidade na concessão de efeito direto às normas do GATT/OMC não teria o condão de afetar o equilíbrio de forças presentes no âmbito das negociações comerciais.[8]
Apesar da expectativa criada pela posição do Advogado-Geral Alber, o TJCE deixou de reformar sua jurisprudência, não adotando posição no sentido de que os acordos GATT/OMC figurariam dentre as normas à luz das quais é feita a fiscalização da legalidade dos atos das instituições comunitárias.
Todavia, observou o TJCE que o TPI não se manifestara acerca do argumento segundo o qual "os efeitos jurídicos, relativamente à Comunidade Europeia, da decisão do OSC de 13 de Fevereiro de 1998 eram susceptíveis de por em causa a sua apreciação quanto à ausência de efeito directo das regras da OMC e de justificar o exercício, pelo órgão jurisdicional comunitário, da fiscalização da legalidade das Directivas 81/602, 88/146 e 96/22 à luz dessas regras, no âmbito de acção de indemnização intentada pelo recorrente". Verifica-se, pois, que o Tribunal critica o fato de a corte de primeiro grau não ter analisado o principal argumento da parte autora.
De toda sorte, o próprio TJCE não adentrou essa questão, por entender que, na medida em que a empresa autora estava em processo de dissolução (inativa, portanto) desde 1995, não seria sequer possível alegar que o eventual descumprimento da decisão do OSC, que concedia prazo de adequação até maio de 1999, pudesse ter causado danos a ela.
O pedido acabou, pois, por ser julgado improcedente.
Para uma adequada compreensão da adequação da jurisprudência do TJCE acerca da não outorga de efeito direto aos acordos GATT/OMC, impõe-se, inicialmente, analisar o tratamento dispensado aos tratados de direito internacional pela União Européia em geral, para então discorrer sobre a existência de diferenças significativas daquele tratado em especial.
3) Efeito Direto do DIP em Geral no âmbito da União Europeia
Considerando o extenso rol de atribuições da Comunidade Europeia, inclusive a capacidade para, dentro de suas competências, celebrar tratados internacionais com um ou mais Estados ou organizações internacionais, o Tratado constitutivo desde o início cuidou de estabelecer os efeitos dos tratados de Direito Internacional Público relativamente às instituições comunitárias e aos Estados Membros.
Assim, o art. 228 CE previa, em seu numeral sétimo (atual art. 300, 7, com idêntica redação):
"7. Os acordos celebrados nas condições definidas no presente artigo são vinculativos para as Instituições da Comunidade e para os Estados-membros"
Observa-se, pois, que os tratados celebrados pela Comunidade Europeia, no uso de suas competências, vinculam não apenas a própria Comunidade e suas instituições, como também os Estados-membros.
O Tratado não faz, entretanto, menção expressa à necessidade ou aos efeitos da internalização do tratado por parte da Comunidade. Posta em juízo a questão o TJCE, interpretando o artigo supra citado, fixou entendimento no sentido de que os tratados concluídos sob o manto do art. 228 (atual art. 300) CE equivalem a atos da própria comunidade, sendo, pois, obrigatórios desde a data de sua vigência[9].
O TJCE assume, assim, uma concepção monista entre o Direito Internacional e o Direito Comunitário[10], concedendo caráter meramente instrumental ao ato (normalmente um Regulamento) que internaliza o Tratado.
Outrossim, a evolução da jurisprudência do TJCE consolidou entendimento que, apesar de os Tratados travados pela Comunidade não possuírem prevalência sobre os tratados institutivos da própria Comunidade (o que, conforme análise de Fausto de Quadros, pode levar à violação de obrigações internacionais, um aspecto ainda não enfrentado na prática), possuem prevalência sobre o Direito derivado. Assim se manifesta o autor português:
"Os acordos internacionais em causa prevalecem sobre o Direito derivado, tanto anterior, como posterior - em moldes análogos àqueles em que se coloca, portanto, o problema do primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais. Conforme já decidiu o TJ, as Comunidades, em caso de conflito entre um acordo internacional e um acto de Direito derivado, devem começar, sempre, por interpretar este em conformidade com o primeiro. É o princípio da interpretação conforme do Direito derivado com os tratados concluídos pela Comunidade"[11]
Consolidado que os Tratados celebrados pela Comunidade constituem parte do direito comunitário, a eles passou a ser aplicada a doutrina criada pelo TJCE na década de sessenta, a teoria do "Efeito Direto", a qual surge para solucionar um problema de aplicação de normas que teria o condão de impedir a CE de alcançar seus objetivos intrínsecos.
Ocorre que segundo as normas de Direito Internacional Público, ao menos nas ordens jurídicas dualistas, a efetividade de um tratado internacional está intrinsecamente ligada à forma como este é internalizado.
Ou seja, se determinado Estado internaliza uma obrigação decorrente de um tratado através de ato com força de lei, lei posterior poderá ou não retirar seus efeitos internamente, a depender exclusivamente do direito constitucional do Estado em questão. Caso derrogada a obrigação em comento, o Estado estará, indubitavelmente, infringindo uma obrigação internacionalmente assumida, mas o indivíduo, como regra, não possuirá mais suporte jurídico para exigir das cortes nacionais o cumprimento daquela obrigação, já que, no plano interno, a força jurídica do tratado depende do ato de internalização.
A ser seguindo esse modelo jurídico, não só o direito comunitário teria efeitos diversos em cada Estado Membro, mas também se vislumbra que um sistema tão complexo e com objetivos tão grandiosos como o instituído com a criação da Comunidade Europeia estaria fadado ao fracasso.[12]
Essa questão surgiu pela primeira vez no caso Van Gend & Loos[13], no qual a referida empresa insurgiu-se contra a alteração da classificação do produto que comerciava, para fins de pautas aduaneiras, a qual resultou no efetivo aumento do imposto de importação a ser pago. Segundo sua argumentação, a alteração (que teve por base a internalização posterior de outro tratado internacional) feria a obrigação assumida através do art. 12 EC (posteriormente alterado pelo Tratado de Amsterdã)[14]. A seu turno, os governos belga, alemão e holandês defendiam a tese segundo a qual o artigo 12 seria endereçado aos Estados-Membros, e não aos indivíduos, e que o confronto entre dois tratados internacionais dizia respeito unicamente ao direito interno de cada Estado, não cabendo ao TJCE manifestar-se a respeito, vez que teria, unicamente, competência para interpretar o Tratado da CE, e não seus efeitos ou prevalência no âmbito do direito interno[15].
O Tribunal, debruçando-se sobre o ponto, adotou a posição segundo a qual o fato de determinada norma criar obrigações para os Estados, e não direitos aos indivíduos, não afasta a possibilidade de aplicação direta:
"O fraseado do Artigo 12 contém uma clara e incondicional proibição que não é uma positiva, mas sim negativa obrigação. Essa obrigação, ademais, não é qualificada por nenhuma reserva por parte dos estados que faria sua implementação condicionada por uma medida legislativa positiva exarada sob o direito nacional. A própria natureza dessa proibição faz dela idealmente adepta a produzir efeito direto na relação jurídica entre Estados-Membros e seus súditos"[16]
Com essa argumentação, o TJCE contornou o problema decorrente da ausência de base jurídica para invocação, pelo particular, do cumprimento das obrigações postas pelo Tratado da CE e, com a adição da teoria da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional na esfera de atribuição da Comunidade, conseguiu a estabilidade e executoriedade necessárias ao cumprimento de seus objetivos intrínsecos. Conforme anota Jacques Ferstenbert, "a aplicabilidade directa teve por principal efeito fazer do direito comunitário uma realidade concreta e viva, fornecendo ao cidadão europeu, cuja identidade jurídica se precisou assim progressivamente, um conjunto de prerrogativas que podem ser directamente invocadas perante o juiz da ordem interna"[17].
Refinando a teoria do efeito direto em casos subsequentes, o Tribunal consolidou a possibilidade de incidência do efeito direto a normas comunitárias, veiculem estas obrigações ou proibições, conquanto referida norma seja clara e não ambígua, incondicional e cuja operação não dependa de ato adicional da Comunidade ou das autoridades nacionais[18].
A clareza da norma, conforme interpretação corrente, diz com a presença de precisão necessária que determine qual a atitude específica esperada do Estado-Membro, sendo tão flexível esta exigência quanto autorizado pelo tipo de norma analisada, caso a caso.
A incondicionalidade, por sua vez, demanda que a norma a quel se queira conceder efeito direto não dependa de algo sob controle de alguma autoridade independente (seja ela da Comunidade ou do Estado-Membro). Não deve, pois, haver discricionariedade no cumprimento da obrigação posta.
Finalmente, a não dependência de ato adicional determina que, caso a norma em apreço exija um ato de natureza legislativa ou executiva a ser tomado pela Comunidade ou pelo Estado-Membro, não poderá gozar de efeito direto[19].
Em suma, o Tribunal criou um verdadeiro "teste" pelo qual deve ser analisada cada norma comunitária, a fim de se determinar se esta é ou não dotada de efeito direto.
Considerando, pois, a prevalência das obrigações decorrentes do Direito Internacional Público (comutadas em direito comunitário) sobre o direito comunitário derivado, e o efeito direto, o TJCE acabou por formular um sistema que possibilitava o controle da validade dos atos da própria Comunidade (bem como dos Estados-membros) com fundamento nas obrigações contraídas pela União Europeia no plano externo.
Assim, por exemplo, no caso Sindicato Profissional Coordenação da Lagoa de Berre e da Região[20], assim se manifestou o Tribunal:
"39. Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, uma disposição de um acordo celebrado pela Comunidade com países terceiros deve ser considerada directamente aplicável sempre que, atendendo aos seus termos bem como ao objecto e à natureza do acordo, contém uma obrigação clara e precisa que não esteja dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de qualquer acto posterior (v., nomeadamente, acórdãos Demirel, já referido, n.° 14, e de 8 de Maio de 2003, Wählergruppe Gemeinsam, C?171/01, Colect., p. I?4301, n.° 54).
40. Para decidir se o artigo 6.°, n.° 3, do protocolo responde a esses critérios, importa, antes de mais, analisar os seus termos.
41. A este respeito, há que referir que essa disposição consagra, em termos claros, precisos e incondicionais, a obrigação de os Estados?Membros fazerem depender as descargas de substâncias enumeradas no anexo II do mesmo protocolo da concessão, pelas autoridades nacionais competentes, de uma autorização que tenha devidamente em conta as disposições do seu anexo III."
Observa-se, pois, que o efeito direto, no âmbito dos tratados de Direito Internacional Público "em geral" não é mais sequer discutido, sendo encarado como um princípio básico de aplicação normativa no âmbito da Comunidade Europeia.
Tal posição da Comunidade, inclusive, é ressaltada e elogiada por internacionalistas, na medida em que consegue outorgar aos tratados internacionais um tipo de efetividade impensável com o manejo apenas dos princípios da pacta sunt servanda e da boa fé.
Giuliana Ziccardi Capaldo, discorrendo sobre a teoria do efeito direto, destaca que "a Corte de Justiça das Comunidades Europeias tem contribuído extensivamente para precisamente definir o conceito da aplicabilidade direta dos acordos, tanto com relação à capacidade do Direito Comunitário produzir efeito direto na ordem jurídica dos estados membros quanto com relação à entrada de acordos celebrados pela Comunidade Europeia com terceiros países"[21][22].
Entretanto, e como deixa transparecer a autora acima citada, se no âmbito do DIP "geral" o efeito direto se encontra absolutamente consolidado, mesmo tratamento não tem sido concedido às obrigações decorrentes das normas dos tratados GATT/OMC.