4. Superabilidade das regras. Derrotabilidade (defeasibility). A tese de Humberto Ávila.
Em tópico anterior foi realizado uma ponderação entre dois princípios, verificando-se um método de harmonização de seus preceitos de sorte a não trazer abalo ao núcleo essencial de qualquer um deles.
O problema é que o art. 155, §2º, XII, alínea ‘g’ da Constituição possui uma regra clara e peremptória de que a concessão de isenções ou qualquer beneficio fiscal de ICMS deve ocorrer por deliberação dos Estados e Distrito Federal, nos termos da Lei Complementar.
Para tanto, relembre-se que a doutrina tradicionalmente traz a distinção entre princípios e regras. O primeiro caracteriza-se por ser normas com alto grau de abstração, contendo conceitos vagos e indeterminados. Segundo Luís Roberto Barroso, a aplicação dos princípios não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato.[42]
Já as regras, são normas com um grau de abstração relativamente reduzido, seus conceitos revelam uma aplicação direta, contendo determinações fáticas e jurídicas a serem obrigatoriamente cumpridas. Diante do seu conflito, o esquema de sua aplicação é no tudo ou nada. A regra somente não aplicaria se inválida ou se houver outra mais específica ou ainda se não mais estiver em vigor.[43]
Nesse contexto, torna-se claro que o dispositivo constitucional supramencionado caracteriza-se como uma regra e, consoante a doutrina tradicional, não poderia ser relativizado ou ponderado, pois esta técnica somente seria aplicável aos princípios. É claro que para parcela da doutrina a ponderação feita em tópico anterior já seria suficiente para conclui pela correta decisão do Supremo. Todavia, não deixaria de ter vozes em sentido contrário, sustentando a falta de pressuposto para a ponderação em comento.
Para responder a isso necessário se faz trazer a baila as considerações de Humberto Ávila do fenômeno que o autor chamou de “superabilidade das regras” ou que outros estudiosos chamam de derrotabilidade (defeasibility).
No entanto, vale registrar que o próprio Luis Roberto Barroso reconhece os avanços dessa sistemática trazida por Ronald Dworkin e Alexy, porém, observa que o esquema do “tudo ou nada” para as regras pode ser relativizado. Para Barroso, as regras também podem ser ponderadas. Nesse sentido, explica o autor da seguinte maneira:
“já se discute tanto a aplicação do esquema tudo ou nada aos princípios como a possibilidade de também as regras serem ponderadas. Isso porque, como visto, determinados princípios – como o princípio da dignidade da pessoa humana e outros – apresentam um núcleo de sentido ao qual se atribui natureza de regra, aplicável biunivocamente. Por outro lado, há situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em determinado ambiente, ou ainda, há hipóteses em que a adoção do comportamento descrito pela regra violará gravemente o próprio fim que ela busca alcançar.”[44]
Humberto Ávila, nesse contexto, destaca que há várias justificativas para a obediência às regras como a eliminação da controvérsia e da incerteza, eliminação da arbitrariedade e entre outros Para o autor, as regras devem ser obedecidas não por serem apenas regras e emanadas por uma autoridade, mas porque o seu cumprimento é moralmente bom, além de prestigiar valores importantes ao ordenamento como paz, segurança e igualdade.[45]
Assim, segundo o autor, é possível se pensar na superabilidade das regras quando a sua aplicação provoca um resultado injusto. As regras, em circunstancias excepcionais, também envolvem valores e carecem de ponderação. Contudo, o próprio autor reconhece que a superabilidade das regras não é algo fácil. É necessário algumas condições:
i) requisitos materiais: a superação da regra pelo caso individual não pode prejudicar a concretização dos valores inerentes a regra. Nesse caso, segundo o doutrinador “há casos em que a decisão individualizada, ainda que incompatível com a hipótese da regra geral, não prejudica nem a promoção da finalidade subjacente a regra, nem a segurança jurídica que suporta as regras, em virtude da pouca probabilidade de reaparecimento freqüente da situação similar, por dificuldade de ocorrência ou de comprovação.”[46]
Trazendo a baila o caso ora em estudo, vê-se que o art. 155, §2º, XII, alínea ‘g’, caracteriza-se como uma regra. Contudo, é uma norma que carrega consigo valores materiais, quais sejam: proteção do pacto federativo, além de buscar assegurar a autonomia financeira dos entes e evitar o fenômeno competitivo da guerra fiscal.
Quando a lei paranaense, nesse panorama, isentou os templos do ICMS, a despeito do dispositivo constitucional, não trouxe qualquer violação para os valores aos quais o comando visou proteger. Com isso, a superação da regra (art. 155, §2º, XII, alínea ‘g’) no caso da ADI 3421/PR não prejudicou os valores previstos pela própria norma, cumprindo, portanto, o primeiro requisito para a superabilidade ou derrotabilidade.
ii) requisito procedimental: a superação de uma regra deve ter justificativa, fundamentação e comprovação condizentes.
Para Humberto Ávila, a justificativa condizente é a “demonstração de incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente”. Em outras palavras, deve-se demonstrar que o afastamento da regra não provocará expressiva insegurança jurídica, ou seja, a justiça individual não poderá afastar a justiça geral.
A fundamentação condizente, por sua vez, revela-se que as razões da superação da regra devem ser exteriorizadas, para que, assim, possam ser controladas.[47] Portanto, “a fundamentação deve ser escrita, juridicamente fundamentada e logicamente estruturada”[48].
Já a comprovação condizente quer dizer que a mera alegação não pode ser suficiente para superar uma regra. É necessário a demonstração exaustiva, não se baseando em fatos notórios ou presunções, de maneira que não haja o aumento de incerteza ou da insegurança.
Diante do caso em estudo, veja-se que a tese da flexibilização do art. 155, §2º, XII, alínea ‘g’ compõem uma estrutura lógica e racional, cujo intuito é privilegiar a liberdade religiosa ou mesmo a própria imunidade aos templos de qualquer culto, que não são reconhecidas em razão da técnica jurídica dos tributos indiretos. A solução encontrada pelo legislador estadual para se esquivar desse modelo de repercussão econômica do ICMS é licita e válida no ordenamento.
Não se encontra a tese, pois, em meras especulações ou decorre de meras alegações. A tese levantada visa garantir um direito fundamental as entidades religiosas, as quais estariam mais aptas a verter os valores economizados com as suas atividades fins.
Ademais, não causa qualquer insegurança jurídica, pois, como já relatado alhures, a medida não traz competitividade odiosa aos entes da federação. Muito pelo contrário, se há a possibilidade de tais valores serem mais bem utilizados para difusão da crença ou mesmo para o desenvolvimento de trabalhos sociais e de caridade sem qualquer fim lucrativo, haverá, em verdade, a consolidação de valores sociais e redução da desigualdade regional entre os entes da federação. Não há, portanto, incompatibilidade do presente caso com os valores subjacentes ao qual a regra visa assegurar.
Encontra-se, dessa forma, a flexibilização do dispositivo constitucional posto em exaustivo estudo, em seu aspecto material e formal, satisfeita a luz da tese da superabilidade das regras. Assim, demonstrado o caráter injusto do comando para aquela situação excepcional, justificável é a sua ponderação, como ocorrera na espécie.
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