Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Habeas data.

a polêmica garantia constitucional de conhecimento e retificação de informações pessoais em poder do Estado

Exibindo página 1 de 2
Agenda 01/11/2001 às 01:00

1. Noções Iniciais

A Constituição Federal, no título referente aos direitos e garantias fundamentais, prevê, em seu art. 5º, inciso LXXII, o remédio constitucional do habeas data.

O instituto foi introduzido na ordem jurídica brasileira em atendimento ao grave problema da proteção da privacidade ante a evoluída organização dos bancos de dados mantidos pelo Estado ou entidades de larga atuação no interior do tecido social. Volta-se à garantia do direito ao conhecimento pleno e à retificação de dados. Enquanto segurança para a observância e garantia da reserva legal da intimidade ou privacidade, tem suporte no inciso XXXIII do art. 5º do diploma constitucional no qual assegurada a amplitude do direito à informação, oponível a órgãos públicos ou entidades de caráter público. Para a obtenção de informações em geral vigoram os mecanismos peculiares ao Direito Processual, ao amparo da previsão do inciso XIV do mesmo preceito.

Configurando, pois, um instituto de grande polêmica e repercussão desde a edição da carta constitucional de 1988, e principalmente, com a posterior edição da Lei regulamentadora ( Lei 9507/97), o habeas data, tema do presente estudo, desperta o interesse dos profissionais, pesquisadores e demais interessados da área jurídica, especialmente os que se dedicam aos campos do Direito Constitucional, Administrativo e Processual, visto que possui implicações nessas três esferas do saber jurídico.


2. Conceituação de Habeas Data

O habeas data, no ordenamento jurídico pátrio, configura inovação introduzida pelo art. 5º, inciso LXII, da Constituição Federal de 1988, que assim versa:

" Conceder-se-á habeas data:

a)para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros públicos ou banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b)para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo."

Costuma-se apontar na doutrina a sua origem à legislação ordinária dos Estados Unidos da América, por meio do Freedom of Information Act, de 1974, que fora alterado pelo Freedom of Information Reform Act, do ano de 1978, o qual visava a possibilitar o acesso do particular às informações constantes de registros públicos ou particulares permitidos ao público(1).

Consiste o instituto em um direito que assiste a todas as pessoas de solicitarem, por via judicial, a exibição de registros públicos ou privados em que estejam incluídos seus dados pessoais, a fim de que deles se tome conhecimento e, caso se faça necessário, promovam-se as competentes retificações de dados inexatos ou obsoletos ou que impliquem em discriminação.

O ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, citando a lição de Firmin Morales Prats, entende que tal remédio possui como objeto a proteção da esfera íntima dos indivíduos contra: a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; b) introdução nesses registros de dados sensíveis(discriminatórios); c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei.(2)

Não se deve confundir o instituto em exame com a garantia do direito à informação, previsto pelo mesmo art. 5º da Carta Magna, em seu inciso XXXIII, segundo o qual todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, as quais serão prestadas no prazo legal, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Não se confunde porque a informação protegida pelo habeas data é sempre relativa à pessoa do impetrante, com a particularidade de constar de banco ou registro de dados. Já o direito à informação, exercido na via administrativa, é mais amplo e pode se referir a assuntos mais variados.(3)


3. O Direito ao Conhecimento e à Retificação de Dados Pessoais

Em regimes políticos de exceção, e especialmente a partir do instante em que se desencadeia o processo de retorno ao Estado de Direito, torna-se aguçada a sensibilidade para este ou aquele problema relacionado com a preservação de direitos. Episódios em curso ou já encerrados, mas vivos na memória popular, evidenciam e caracterizam dificuldades e carências que até ali talvez não houvessem despertado maior atenção.

No Brasil, durante os governos discricionários que se sucederam ao longo de duas décadas, razões bem fundadas fizeram surgir, ou aumentar, uma inquietação relativamente nova, ou, quando menos, revestida de nova forma. Informações aleatória e arbitrariamente colhidas em fontes de discutível idoneidade e por meios escusos, não raro manipuladas sem escrúpulos, ou mesmo fabricadas pela paranóia de órgãos repressivos, viram-se incorporadas a registros oficiais ou para-oficiais e passaram a fornecer critérios de avaliação para a imposição de medidas punitivas ou discriminatórias. Tais critérios eram insuscetíveis de objeção e discussão, até pelo simples e óbvio motivo de que os interessados não tinham acesso aos dados constantes dos registros. Ninguém poderia sequer tentar demonstrar a falsidade ou incorreção de algo que ignora em que consiste.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O problema tem ligação manifesta com o da preservação do direito à intimidade: na coleta e armazenamento indiscriminado de dados atinentes a uma pessoa, à revelia dela e sem controle de sua parte, não há como deixar de ver uma invasão da privacidade. A rigor, porém, o que avulta aqui é uma idéia mais particularizada, suscetível de expressão sintética nos seguintes termos: a ninguém se deve negar o conhecimento do que outros sabem ou supõem saber a seu respeito, nem a possibilidade de contestar a exatidão de tais noções e, sendo o caso, retificar o respectivo teor, principalmente quando a utilização dos elementos coligidos seja capaz de causar dano material ou moral.(4)


4. Natureza Jurídica do Instituto

O habeas data é uma ação constitucional, de caráter civil, conteúdo e rito sumário, o qual tem por objeto a proteção de direito líquido e certo do impetrante em conhecer todas as informações e registros relativos à sua pessoa e constantes de repartições públicas ou particulares acessíveis ao público, para eventual retificação de seus dados pessoais.(5)


5. Finalidades

O instituto do habeas data objetiva fazer com que todos tenham acesso às informações que o Poder Público ou mesmo entidades de caráter público, como o Serviço de Proteção ao Crédito, por exemplo, possuam a seu respeito.

Antes da Constituição Federal de 1988, que instituiu entre nós tal remédio, várias decisões judiciais admitiam a utilização do mandado de segurança, com a finalidade hoje estabelecida no habeas data.

Deve-se analisar o habeas data sobre uma dupla finalidade, depreendendo-se de seu texto constitucional. Uma se refere à obtenção de informações existentes na entidade governamental ou de caráter público, e outra corresponde a uma eventual retificação dos dados nelas constantes.

Possui, portanto, uma natureza mista, desenvolvendo-se em duas etapas. Inicialmente, concede-se ao impetrante o direito ao acesso às informações(mandamental), para que, posteriormente, caso necessário, sejam as mesmas retificadas(constitutiva).

Ao impetrante do habeas data, basta a vontade de conhecer tais informações relativas à sua pessoa, não ficando na dependência de comprovação de relevância de causas ou demonstração de que elas se prestarão à defesa de seus direitos.

Considera-se que a Lei 9507/97, que regulamentou o rito processual do habeas data, instituiu ainda uma terceira finalidade, que seria a concessão para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro, mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável. O objetivo seria exatamente o de evitar possíveis humilhações que tais dados pudessem causar ao indivíduo.


6. Legitimação Ativa e Passiva

No que pertine aos legitimados ativos para a impetração desse remédio constitucional, pode ser pessoa física, brasileira ou estrangeira ou até mesmo pessoa jurídica, pois essas têm existência diversa das pessoas físicas que as integram.

Pode-se pleitear informações relativas ao próprio impetrante, sendo vedada através de terceiros. Há nessa ação um caráter personalíssimo, o qual deriva da própria amplitude do direito defendido, já que esse direito ao conhecimento dos próprios dados compreende o direito a que esses dados não sejam devassados ou difundidos por terceiros.

Por outro lado, quanto à legitimação passiva, entende-se que podem ser as entidades governamentais, da administração pública, direta ou indireta, assim como as instituições, entidades e pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços para o público ou de interesse público, desde que possuam dados referentes à pessoa do impetrante.


7. Competência

Está regulada, em grande parte, na própria Constituição a competência para conhecer de habeas data e julgá-lo. No grau inferior de jurisdição, ela se reparte entre a Justiça Federal e a Justiça dos Estados. São competentes os juízes federais para os habeas data impetrados contra autoridade federal, excetuados os casos de competência originária de tribunais federais (art. 109, nº VIII). Os juízes estaduais têm competência residual: exercem-na quando não haja disposição que a atribua ou aos juízes federais ou, originariamente, a algum tribunal.

A competência originária pertence: a cada um dos Tribunais Regionais Federais, para os habeas data contra o próprio tribunal ou órgão inferior da Justiça Federal (art. 108, nº I, letra c); ao Superior Tribunal de Justiça, para os habeas data contra Ministro de Estado ou o próprio tribunal (art. 105, nº I, letra b); ao Supremo Tribunal Federal, para os habeas data contra o Presidente da República, a Mesa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, o Tribunal de Contas da União, o Procurador Geral da República ou o próprio tribunal (art. 102, nº I, letra d).

Todas essas regras foram reproduzidas no art. 20, nº I, letras a, b, c, d, f, da Lei nº 9.507. A letra "e" trata de hipótese não contemplada expressis verbis na Carta Política da União: a da competência originária de Tribunal Estadual. Na conformidade da cláusula final, a matéria ficará sujeita ao "disposto na Constituição do Estado" – o que se harmoniza com a norma do art. 125, § 1º, da Constituição Federal: "A competência dos tribunais (estaduais) será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária da iniciativa do Tribunal de Justiça".

Encontram-se também na Carta Magna regras sobre a competência para conhecer de recurso interposto contra decisão em habeas data. Se ela emanar de juiz federal, competente para julgar a apelação será o Tribunal Regional Federal (art. 108, nº II, em que a palavra causas abrange, à evidência, a de que estamos cuidando, objeto de menção específica, quanto ao primeiro grau, no art. 109, nº VIII); a Lei nº 9.507 repete a disposição no art. 20, nº ll, letra c. Sendo a decisão proferida em única instância por qualquer dos tribunais superiores, e denegatória, o recurso cabível é o ordinário, e a competência recursal é do Supremo Tribunal Federal (art. 102, nº II, a, reproduzido no art. 20, nº II, letra a, da Lei nº 9.507). Pode ainda caber a competência recursal aos tribunais estaduais e ao do Distrito Federal e Territórios, "conforme dispuserem a respectiva Constituição e a lei que organizar a justiça do Distrito Federal" (Lei nº 9.507, art. 20, nº ll, letra d).

Falta aludir a um caso peculiar. Na enumeração das hipóteses de competência recursal do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, nos II e III), a Constituição da República nada contém de específico acerca do habeas data. No que toca a recursos contra decisões proferidas pelos Tribunais Regionais Federais, há apenas duas referências: a do nº II, letra b, atinente ao recurso ordinário em "mandados de segurança decididos em única instância" por esses tribunais, "quando denegatória a decisão"; e a do nº III, concernente ao recurso especial cabível, em determinadas hipóteses, nas "causas decididas, em única ou última instância", pelos mesmos Tribunais Regionais Federais (em ambos os textos se faz menção a outros tribunais, que aqui não interessam). No entanto, lê-se no art. 20, nº II, letra b, da Lei nº 9.507, que o julgamento do habeas data compete, em grau de recurso, ao Superior Tribunal de Justiça, "quando a decisão for proferida em única instância pelos Tribunais Regionais Federais".

O dispositivo gera problema hermenêutico de difícil solução. Não se sabe se pretendeu somente – à semelhança de vários outros do art. 20 – reiterar previsão constitucional, ou se visou a abrir via recursal não contemplada na Lei Maior. Neste último caso, expõe-se à argüição de inconstitucionalidade, desde que se adote a premissa de que a competência do Superior Tribunal de Justiça se acha exaustivamente definida na Constituição e não pode ser ampliada por lei ordinária. No primeiro, a única possibilidade consiste em entendê-lo como referente ao recurso especial; mas os pressupostos de cabimento, tais como enunciados na Lei nº 9.507, não coincidem com os constitucionalmente estabelecidos.

Com efeito, de um lado, o recurso especial, segundo a Constituição (art. 105, nº III), não cabe apenas contra decisões proferidas em "única instância" por Tribunal Regional Federal, senão também contra decisões por qualquer deles proferidas "em última instância"; de outro lado, para que caiba o recurso especial, sempre de acordo com o art. 105, nº III, da Constituição, é imprescindível que se configure alguma das hipóteses catalogadas nas letras a, b e c, a saber: que a decisão impugnada contrarie tratado ou lei federal; julgue válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; ou dê à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. Ora, ao propósito, é de todo em todo silente o art. 20, nº II, letra b, da Lei nº 9.507. Resta verificar como desatará a jurisprudência o nó dado pelo legislador.(6)

Para terminar, faz-se mister ainda anotar que o nº III do mesmo art. 20 faz alusão ao "recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal", cabível em matéria de habeas data (como em qualquer outra!) "nos casos previstos na Constituição", isto é: nas causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da própria Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição (art. 103, nº III, letras a, b e c, respectivamente).


8. A Polêmica do Esgotamento Prévio da Via Administrativa

Questão que sempre suscitou muita polêmica na doutrina e na jurisprudência concerne à necessidade do prévio esgotamento da via administrativa para o ingresso com o remédio do habeas data. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido da necessidade de negativa da via administrativa para que se justifique o ajuizamento do habeas data. Inexistirá, de sorte, interesse de agir se não houver relutância do detentor das informações em fornece-las ao interessado. Faltará uma das condições da ação se não houver prévia solicitação administrativa, e conseqüente negativa em seu fornecimento.

O Supremo Tribunal Federal inclinou-se no mesmo sentido, ao considerar que o interesse de agir configurava-se pela prova do anterior indeferimento do pedido de informações de dados pessoais ou da omissão em atende-lo e que, em inexistindo esse interesse de agir, haveria carência de ação.

Tal entendimento jurisprudencial do STJ e do STF foi consagrado pela Lei 9507/97, a qual, no art. 8º, prevê que a petição inicial deverá ser instruída da recusa ao acesso às informações ou do decurso de mais de dez dias sem decisão; da recusa em se fazer a retificação ou do decurso de mais de quinze dias sem decisão; da recusa em se fazer a anotação sobre a explicação ou contestação de determinado dado ou do decurso de mais de quinze dias sem decisão.

Contrariando a jurisprudência, hoje pacífica do STF e do STJ, e da previsão na lei regulamentadora, boa parte dos renomados doutrinadores brasileiros consideram tal exigência de esgotamento da via administrativa como contrária à Constituição Federal. Não há fundamento constitucional para exigir o prévio recurso à via administrativa como condição para a propositura do habeas data, no entender da eminente administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro.(7)

O constitucionalista Alexandre de Moraes prefere entender que o parágrafo único do art. 8º da Lei 9507/97 deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, no sentido de não se exigir em todas as hipóteses a prova de recusa do órgão competente ao acesso ou da recusa à retificação ou anotação, mas tão somente nas hipóteses em que o impetrante optou pelo acesso às instâncias administrativas. Se porém, o impetrante optasse diretamente pelo Judiciário, a prova exigida não se lhe aplicaria, pela impossibilidade de se restringir a utilização de uma ação constitucional, sem expressa previsão no texto maior.(8)

Sobre o autor
Marco Aurélio Ventura Peixoto

Advogado da União, Mestre em Direito Público pela UFPE e Professor Universitário em Recife/PE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Habeas data.: a polêmica garantia constitucional de conhecimento e retificação de informações pessoais em poder do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2362. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!