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Breves considerações sobre a tortura

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Agenda 10/03/2013 às 16:17

II – ATROCIDADES COMETIDAS POR POLICIAIS

Dentre os órgãos estatais encarregados da repressão a delitos e promoção de segurança pública, a Polícia é, sem dúvida, a instituição mais antiga e de mais difícil teorização. Nas palavras de NALINI[xviii]: “A polícia é um organismo poderoso. Talvez o mais poderoso daqueles que funcionam no Estado Moderno. Está na linha de frente dos acontecimentos, acorre a todos os chamados. É normal que, ao se defrontar com emergência, a pessoa tenda a acionar a polícia, mesmo que o problema não guarde pertinência com as atribuições da polícia.”.

Sendo assim, trata-se de obrigação o emprego de todos os mecanismos possíveis para que os abusos sejam evitados e, caso ocorram, punidos com rigor.

Na obra de referência “Operários da Violência”, Martha Huggins e os demais autores[xix] trazem à tona informações relativas a entrevistas realizadas com vinte e três policiais civis e militares encarados como facilitadores ou perpetradores de atrocidades em suas atividades profissionais durante e após a saída dos militares do poder no Brasil.

Dessa forma, e a partir da leitura do texto de tal livro, observa-se que as práticas policiais brasileiras na atualidade têm muito ainda dos ranços autoritários de “caça a subversivos” do período supracitado, pelo que dentre eles está a tendência em torturar detidos e presos pelas mais variadas razões.

Segundo JESUS[xx]: “A tortura, que no final da ditadura e durante todo o período de transição democrática foi alvo de denúncias e repúdio, continuou clandestinamente a fazer parte do trabalho policial e da rotina das prisões, unidades de internação e manicômios, cujas vítimas são as pessoas suspeitas, os afrodescendentes, jovens, moradores das periferias das grandes cidades e presos. (...).”.

Interessante notar que não há estrita relação entre a doutrina de “segurança nacional” e a violência policial, haja vista que, como dito, não foi o governo militar quem criou a prática de atrocidades por parte de policiais em serviço ou fora dele. A ideia de que o uso da violência e da coação é inerente à prática policial pode ser encontrada ainda no Brasil Colônia e certamente atravessou os mares a bordo das caravelas.

No entanto, é preciso ter em mente que nem todos são alvos de tais práticas. Há uma seleção feita no ato da abordagem. Por isso, a seguir serão tecidas algumas considerações sobre autor e vítima do crime de tortura no Brasil.

2.1 – Os “torturáveis”

Não é preciso apontar que o sistema penal como um todo é marcado pela seletividade de suas ações, dando preferência a minorias étnicas e religiosas, negros, pardos, latinos, estrangeiros e pobres para serem abarcados pelos tipos penais eleitos como meio de controle social por parte do Estado.

Esse é o caso apresentado pela imprensa em 28.04.2010[xxi], quando da prisão de policiais militares que prenderam, torturaram e mataram Eduardo dos Santos dentro das dependências de um quartel da Polícia Militar em São Paulo. Pelo que consta, a vítima exercia a profissão de motoboy, era negro e morador da periferia paulistana. Primeiro preso ilegalmente (abuso de autoridade), foi levado para o batalhão de polícia para ser espancado e ali confessar o delito de furto de que era acusado. Chegou morto ao hospital.

Observa-se, desta forma, que nos termos do que foi apontado por CHEVIGNY[xxii]: “A tortura é usada, claramente, contra aqueles que são “torturáveis” – em geral, criminosos comuns. É importante notar que ela é usada como uma forma de punição tanto quanto é usada para obter informação. É raramente usada contra pessoas da classe média, exceto em casos políticos extremos ou algumas vezes com propósitos corruptos. Assim, ter sido torturado pela polícia é um emblema de pobreza e degradação.”.

Dessa maneira, e como apontado acima, ser torturado pelas forças policiais é sinal de vulnerabilidade social e não de periculosidade. Esta é a visão de JÚNIOR[xxiii], quando aponta que: “Durante quase três séculos de Brasil-Colônia, registra-se uma seqüência de violências, verdadeiro genocídio de índios, escravatura de negros e processos desumanos contra os inconformados com as medidas políticas que favoreciam os interesses da Coroa e que se voltavam contra o bem-estar dos nativos.”

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E, ainda, assevera que: “Estudos sobre a escravidão urbana no Brasil mostram as raízes de alguns hábitos culturais e policialescos hoje existentes. “O escravo urbano – comenta LEILA MEZAN ALGRANTI – era alugado para serviços na rua e vigiado pela polícia no lugar do dono; daí a polícia comumente desconfiar até hoje dos negros e aplicar-lhes violência quando o prendem.”.

A tradição de emprego de força desmedida e de práticas abusivas contra parcelas pobres da sociedade tem raízes no início da colonização do território brasileiro. Sendo dessa forma, a polícia segue fazendo o que fez quando mantinha os perigosos e suspeitos longe dos bairros em que residem os ricos e “mais esclarecidos”.

Embora não possa ser considerado por acuidade científica, a obra de CACO BARCELLOS sobre as atividades da R.O.T.A. (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), unidade de elite da Polícia Militar do Estado de São Paulo, traz dados relevantes pela análise de fatos levantados sobre os homicídios cometidos por seus integrantes.

Segundo tal relato[xxiv]: “Minha investigação mostra que os PMs são alunos que aprenderam o pior de seus professores do passado. Além de terem copiado o método brutal da repressão – o fuzilamento -, ainda conseguem a proeza de desrespeitar a lei do direito à vida de forma mais insana. Enquanto os policiais da repressão política se baseavam em uma investigação para selecionar o inimigo a ser morto, os matadores da PM agem espontaneamente, sem nenhum critério prévio. Escolhem suas vítimas a partir de uma simples desconfiança.”

E, seguindo, aponta o autor quem foram os alvos das ações dos policiais militares: “Do total de 33 vítimas, apenas onze eram registrados como ladrões nos arquivos da polícia. A grande maioria tinha ficha limpa: dezessete não eram criminosos. Cinco eram operários. Foram fuzilados também um mecânico, um cozinheiro, um motorista, um sapateiro, um comerciante, um vigilante, um carpinteiro, um industriário, dois desempregados e dois estudantes. Todos estes dezessete foram mortos sem terem sido presos uma única vez na vida.”

Assim, a imposta seletividade do sistema repressivo restringe o campo de atividades dos perpetradores de atrocidades policiais, fazendo com que as camadas sociais menos abastadas ou influentes sejam alvos preferenciais de tais grupos ou equipes.

Portanto, observa-se que ocorrências envolvendo atividades policiais contra pessoas mais “esclarecidas” resultam, geralmente, em delitos de abuso de autoridade, tidos como antessala para cometimento de crime de tortura como acima indicado. E param por aí.

Porém, quando em atividades relacionadas a crimes cometidos por alvos preferenciais do sistema, e dependendo do delito investigado e da garantia do anonimato, equipes policiais podem vir a cometer atrocidades como forma, por exemplo, de encontrar objetos, veículos ou valores furtados/roubados, localizar cativeiros em sequestros ou, simplesmente, castigar e punir antecipadamente autores de crimes em que foram vítimas policiais e seus familiares, autoridades, empresários e pessoas de classes sociais mais abastadas.

Bom ser citado que policiais sabem exatamente aqueles que podem ser submetidos à tortura sem que sejam alvo de punição administrativa e judicial por seus atos.

2.2 – Os torturadores

Em relação aos sujeitos ativos dos crimes de tortura, consideram-se parâmetro de pesquisa os estudos sobre a transição do regime de exceção para as “democracias” na América Latina.

No entanto, é imperioso afirmar que não foi o período de governo militar entre 1964 e 1985 que determinou ou moldou a cultura policial no Brasil. O tratamento reservado a escravos, pobres, negros e populações marginalizadas já fazia com que a polícia utilizasse contra tais camadas sociais de força desmedida para controle e punição desde o Brasil-Colônia.

Conforme indicado por JÚNIOR[xxv]: “Cumpre lembrar que a violência institucional dessas duas ditaduras de nossa recente história política deixou sequelas irreparáveis na sociedade brasileira, resultando disso uma polícia militar com fortes segmentos de despreparo e distorcida visão sobre a metodologia de segurança pública.”.

O que deve ser levado em consideração é que com a evolução dos sistemas repressivos e, ainda mais, de controle da atividade policial, já não há mais espaço nas sociedades modernas para a prática de atrocidades por parte de funcionários públicos, policiais ou não. Basta, para tanto, seguir normas e regras já definidas para controle interno e externo da atividade policial.

Pelo que consta do Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei -CCEAL, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua resolução 34/169 de 17 de dezembro de 1979, em seu artigo 5º:  “Nenhum funcionário encarregado de fazer cumprir a lei poderá infligir, instigar ou tolerar ato de tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, nem invocar a ordem de um superior ou circunstâncias especiais, como estado de guerra ou ameaça de guerra, ameaça à segurança nacional, inestabilidade política interna, ou qualquer outra emergência pública, como justificativa da tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.”

No entanto, são justamente tais funcionários os maiores responsáveis pelo cometimento do crime aqui estudado. A referência de HUGGINS[xxvi] sobre as influências recebidas pelos perpetradores de atrocidades policiais para que assim procedessem denota que poderiam ser observadas a partir de três esferas: a política de uma ideologia de segurança interna, a hierarquia especializada e a organização competitiva de unidades de controle social e, finalmente, a desindividualização, obediência, desumanização, aceitabilidade de violência modeladora e descomprometimento moral.

Sendo assim, não haveria predisposições biológicas ou morais que justificassem a transformação de um policial “comum” em um assassino ou torturador.  Na verdade, as respostas mais convincentes para a manutenção da cultura policial nestes moldes são ligadas à modelação da conduta humana a partir dos padrões historicamente estabelecidos pelos que mantém a polícia como ela é atualmente.

Tecendo comentários sobre as influências da Lei de Anistia na manutenção do quadro atual em matéria de segurança pública, CORTEZ[xxvii] indica que: “A violência e tortura policial, que ainda resiste após 20 anos de democracia, mostram que esse legado da ditadura está consolidado como prática constante no Brasil. Acontece com jovens que fazem pequenos furtos, mas a maioria dos torturados e mortos é de trabalhadores sem passagem pela polícia, inocentes. Há uma cultura, gerada pelos torturadores da ditadura militar no Brasil, que é a cultura do temor à autoridade, temor policial. A pacificação gerada pela Lei da Anistia é uma grande falácia. A violência dos torturadores militares ou a serviço de militares durante a ditadura escapou ao controle do Estado e da sociedade. Claro que não são todos os policiais, assim como não foram todos os militares que torturaram. É preciso saber quem são e puni-los. O Supremo Tribunal Federal, ao legitimar a Lei da Anistia, acabou por legitimar a tortura que acontece atualmente no Brasil. Se historicamente não punimos torturadores, continuaremos a ser lenientes com essa prática horrenda.”

Portanto, e novamente segundo HUGGINS[xxviii], policiais que ingressam nas instituições mesmo após a “redemocratização” acabam por aprender sobre técnicas de controle social, investigação criminal e autoproteção com aqueles que trabalham mais de perto.

Ainda, os pesquisadores mencionados[xxix] indicam que são quatro as situações em que se processa esse aprendizado. A primeira delas se dá exatamente como afirmado acima, ou seja, com um “professor” (policial mais antigo), isso em situações cotidianas não emergenciais.

Em seguida, apontam que os policiais que ingressam assumem o aprendizado através da tradição oral, quer dizer, passam a ouvir histórias de enfrentamentos, investigações, tiroteios e, da mesma forma, atrocidades das quais participaram ou “ouviram dizer” seus colegas de trabalho.

Uma terceira maneira de aprendizado foi identificada como sendo por experiência em serviço, não emergencial e a longo prazo. Desta forma, os novos policiais passavam a enfrentar as situações pelas quais passariam a se comportar conforme indicado pela cultura da qual passaram a fazer parte.

Por fim, e com forma mais chocante de introspecção de conhecimentos, o aprendizado através de experiências em ambientes emergenciais, “onde a rapidez e o perigo eram percebidos ou enfatizados como obrigando a uma aprendizagem imediata de lições necessárias de ação policial” [xxx].

Sendo assim, os policiais identificados como torturadores não teriam pré-disposição para o cometimento de atrocidades, não sendo também comprovado que a barbárie de suas ações não é resultado do treinamento recebido em academias e cursos de formação de forma absoluta, até mesmo porque policiais civis suspeitos de serem torturadores não passaram por treinamento específico para tanto.

 Fica indicado, portanto, que se trata de formação adquirida no cotidiano, muitas vezes a partir do ingresso em grupos táticos, equipes operacionais ou de inteligência, como resultado até mesmo de uma cultura organizacional repassada dos policiais mais antigos para os novatos por meio de práticas não-oficiais.


III – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação ao crime de tortura e aos abusos de autoridade cometidos por policiais, civis, militares ou federais ou todo o país, considera-se que a Lei nº 9.455/97, trazida pela previsão constitucional como ordem ao legislador infraconstitucional, embora com imprecisos contornos, tenha contribuído para, pelo menos, trazer a lume fatos que antes ficavam imprecisamente acolhidos por outros tipos legais.

No entanto, fica indicado que não será por meio de punições administrativas ou judiciais que a cultura arraigada nas práticas em tela será extinta. Uma das razões para tanto pode ser observada em falha gritante na citada lei, qual seja, a pena muito menor prevista para os assim chamados facilitadores de atrocidades policiais.

Conforme indicado, o cometimento de crimes de abuso de autoridade, em legislação aprovada ainda no período ditatorial (Lei nº 4.898/65), pode servir de início para a perpetração de delitos de maior gravidade, tais como a própria tortura. Sendo assim, e como exemplo, alguém pode ser preso ilegalmente, mantido em cárcere e incomunicável, período em que sofre espancamento como meio de tortura.  

Por isso mesmo, acredita-se que as penalidades previstas por cometimento de crimes de abuso de autoridade deveriam ser aumentadas e diversificadas, haja vista a necessária comparação com a reprimenda prevista pela Lei nº 9.455/97.

Observando-se os relatos oficiais e decisões judiciais a respeito do assunto, observa-se que, como parte do sistema penal brasileiro viciado, a tortura ocorre em condições e ambientes específicos, isso contra “alvos” preferenciais, sendo estes geralmente pobres, negros ou pardos, desempregados, moradores de periferias urbanas ou membros de movimentos ou grupos sociais específicos. Dessa maneira, afirma-se que há pessoas “torturáveis” e pessoas “não-torturáveis”.

Quanto aos responsáveis por tais atividades ilícitas, demonstra-se que o cotidiano policial, geralmente demonstrado pelas práticas e diligências em grupos táticos e equipes “de elite”, é o verdadeiro formador de perpetradores de atrocidades, devendo ser levado em consideração o importante papel exercido pelos facilitadores em suas atividades.

Sendo assim, só há tortura porque os responsáveis pela lavratura de flagrantes, chefes de equipes de busca e apreensão, diretores de inteligência e comandantes de grupos e batalhões são coniventes com tal atividade, não sendo possível acreditar que nada saibam ou que nada veem.

Tanto é assim que raramente há prisões em flagrante ou indiciamentos de policiais em ocorrências de tortura, pelo que se depreende a ocorrência de práticas corporativistas ou desleixo de superiores hierárquicos em coibir tais atividades.

Concluir-se, desse modo, que as mudanças podem até acontecer “de fora para dentro”, mas seriam muito mais eficazes se fossem forçadas “de dentro para fora” do ambiente policial.

Sobre o autor
Rafael Francisco França

Delegado de Polícia Federal - Departamento de Polícia Federal, lotado na Delegacia Regional Executiva da Superintendência em Porto Alegre/RS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal, e em Segurança Pública. Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Rafael Francisco. Breves considerações sobre a tortura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3539, 10 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23855. Acesso em: 19 mai. 2024.

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