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Bem jurídico, Constituição e crimes tributários

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Agenda 29/04/2013 às 16:00

O patrimônio tributário do Estado constitui bem jurídico-penal relevante? É legítima a instituição de crimes tributários?

Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar a legitimidade dos crimes tributários, previstos na Lei 8.137/90. Para isso, será necessário investigar a relevância constitucional do bem jurídico supostamente protegido, isto é, saber se o bem jurídico possui relevância constitucional e se se trata de bem jurídico essencial para a vida em comunidade. Antes disso, porém, serão expostas as teorias constratualistas formuladas por Thomas Hobbes e John Locke, das quais serão extraídas algumas noções filosóficas basilares para justificar e legitimar a intervenção do Estado na vida dos cidadãos e nortear o poder de punir do Estado. Partindo dessas premissas, serão analisadas as teorias do bem jurídico, dando ênfase às teorias constitucionais, que buscam na Constituição um substrato material para o bem jurídico. Nessa etapa, serão abordadas também a evolução histórica, críticas e as principais funções que o bem jurídico exerce no âmbito legislativo e judiciário, além de se estudar a relação do bem jurídico com a Constituição Federal de 1988, identificando-se alguns bens jurídicos essenciais. Serão ainda delineados alguns princípios fundamentais do direito penal, os quais, somados com a noção de bem jurídico, são necessários para direcionar adequadamente a atividade incriminadora do legislador. Por fim, com base nas conclusões alcançadas, será feita uma análise sobre a relevância constitucional do bem jurídico protegido nos crimes contra a ordem tributária, para que se possa responder as seguintes questões: o bem jurídico supostamente protegido pelos crimes contra a ordem tributária efetivamente merecem proteção penal? Ou se trata apenas de um mecanismo utilizado pelo Estado para cobrar tributos?

Palavras-chave: Direito penal. Contrato social. Bem jurídico. Constituição. Princípios fundamentais. Crimes tributários.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 TEORIAS LEGITIMADORAS DO DIREITO DE PUNIR. 2.1 A teoria contratualista de Thomas Hobbes. 2.2 A teoria contratualista de John Locke. 2.3 O contrato social como limite e parâmetro do poder de punir. 3 TEORIA DO BEM JURÍDICO. 3.1 Evolução histórica das concepções de bem jurídico. 3.2 Críticas à teoria do bem jurídico. 3.3 Teorias constitucionais do bem jurídico. 3.4 Conceito de bem jurídico. 3.5 A função limitadora do bem jurídico-penal. 3.6 A função dogmática do bem jurídico-penal. 3.7 As funções individualizadora e sistemática do bem jurídico-penal. 3.8 Bem jurídico-penal e Constituição Federal de 1988. 4 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL. 4.1 Princípio da ofensividade ou exclusiva proteção de bens jurídicos. 4.2 Princípios da intervenção mínima ou subsidiariedade (ultima ratio). 4.3 Princípio da fragmentariedade. 4.4 Princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso. 5 TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA NA CONSTITUIÇÃO. 5.1 A proteção penal de bens jurídicos supraindividuais. 5.2 O bem jurídico tutelado nos crimes contra a ordem tributária. 5.3 A relevância constitucional do sistema tributário. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1 INTRODUÇÃO

Os crimes contra a ordem tributária estão tipificados na Lei 8.137/90, responsável por punir com pena privativa de liberdade aqueles que suprimirem ou reduzirem tributos, mediante omissão de informações, fraudes à fiscalização tributária, inserção de elementos inexatos em livros contábeis, falsificação de notas fiscais dentre outras condutas.

Diante desse diploma legal, este estudo tem como objetivo analisar a legitimidade dessa criminalização, bem como perscrutar se os bens jurídicos que se pretende proteger com a referida norma penal são de fato merecedores de tutela penal, isto é, se possuem relevância constitucional e se são imprescindíveis para a coexistência social pacífica, livre, justa e igualitária.

Ives Gandra Martins tece ferrenhas críticas à criminalização das condutas lesivas ao fisco. Para isso, afirma que “a imposição fiscal é uma norma de rejeição social”. Argumenta que essa rejeição “reside na carga fiscal desmedida” e no fato de que a arrecadação “também é utilizada para a manutenção do poder dos governantes, com todo o séquito de desperdícios, corrupção, favorecimento (...)”[1].

Porém, a alta carga tributária e a má utilização da verba pública não são argumentos capazes de, isoladamente, deslegitimarem a aplicação do direito penal na seara tributária. Outros aspectos de especial relevância também devem ser analisados, por exemplo, a função do tributo na Constituição e a destinação da arrecadação tributária.

Além disso, a análise da legitimidade dos tipos penais tributários depende de um estudo sobre os limites ao poder de incriminar do Estado. Depois de fixados esses limites poderemos dizer se a punição da sonegação fiscal se encontra dentro dos limites (portanto, legítima) ou além dos limites (portanto, ilegítima).

Imprescindível também investigar quais parâmetros deve o legislador levar em consideração no momento de criação da norma penal.

Nesse sentido, a doutrina reiteradamente suscita questionamentos sobre a existência de limites ao poder de punir do Estado e sobre quais seriam os parâmetros que devem ser observados pelo legislador ao definir determinado comportamento como ilícito penal.

Luis Greco, partindo de um enfoque geral, resume a problemática a partir das seguintes perguntas: “pode o legislador declarar punível uma conduta pelo simples fato de não querer que ela seja praticada? Há algum limite ao poder do legislador de incriminar?”[2]

Uma parcela importante da doutrina afirma categoricamente a existência desses limites, recorrendo, para isso, à teoria do bem jurídico.[3] Nessa parcela, por exemplo, insere-se Claus Roxin, para quem a proibição de determinadas condutas não está à plena disposição do legislador.[4]

A teoria do bem jurídico traduz não apenas um limite que vincula o legislador, mas também um norte que, se observado, o conduz à criminalização apenas daquelas condutas altamente lesivas à sociedade e à proteção apenas dos bens jurídicos de especial relevância.

Essas mesmas observações de caráter geral se aplicam à problemática aqui delineada. Por essa razão, para responder às perguntas acima formuladas – que irão nortear o estudo – será necessário fazer uma abordagem sobre a teoria do bem jurídico, incluindo-se sua evolução histórica, suas diversas concepções, conceituação, funções limitadora, dogmática e sistemática e sua relação com a Constituição Federal de 1988.

É oportuno mencionar que não se pretende esgotar o tema (teoria do bem jurídico), mesmo porque se trata de assunto com alto grau de complexidade, além de que é praticamente impossível chegar a um conceito concreto e material de bem jurídico[5].

O que se pretende, com efeito, é expor e analisar as questões mais pertinentes sobre a teoria do bem jurídico, principalmente no que diz respeito à sua função crítica à legislação[6] (também chamada de função limitadora[7]), pois é justamente nesse aspecto em que será possível extrair critérios para limitar e nortear a atividade incriminadora do legislador.

Esses critérios, registre-se desde já, serão perscrutados a partir de uma análise dos princípios presentes no corpo axiológico constitucional. Toma-se como substrato para tanto, as teorias constitucionais do bem jurídico, para as quais, resumidamente, “o conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais.”[8]

Antes disso, contudo, faremos uma breve exposição das teorias contratualistas que buscam justificar e legitimar a intervenção do Estado na vida privada dos indivíduos.

Apesar de essas teorias, por si só, não delinearem parâmetros concretos dos quais se possa extrair limites ao poder de punir, sua apresentação se torna necessária, pois a partir delas, posteriormente, serão desenvolvidas outras teorias que buscam estabelecer limites e parâmetros à atividade legislativa no âmbito penal.[9]

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Logo em seguida, passaremos à analise dos princípios que impedem a aplicação do Direito Penal  de forma arbitrária e, portanto, delineam critérios que limitam a atividade legislativa e norteiam o aplicador na atividade interpretativa. É o caso dos princípios da exclusiva proteção de bens jurídicos, da subsidiariedade (ou intervenção mínima), da fragmentariedade e da proporcionalidade.

O que se pretende com a parte inicial do estudo, exposta alhures, é encontrar critérios minimamente objetivos a partir dos quais se possa estabelecer limites e parâmetros ao poder estatal de punir, seja esses critérios obtidos pela teoria do bem jurídico, seja pelos princípios penais ou ainda por outras formas racionais de limitação.[10]

Na última etapa do trabalho, as conclusões e critérios alcançados serão perscrutados para que, ao fim, seja possível responder a seguinte questão: o bem jurídico supostamente protegida pelos crimes contra a ordem tributária efetivamente merecem proteção penal? Ou se trata apenas de um mecanismo utilizado pelo Estado para cobrar tributos?


2 TEORIAS LEGITIMADORAS DO DIREITO DE PUNIR

Antes de perscrutar os limites ao direito/poder de punir do Estado, é necessário analisar as teorias que explicam a criação do Estado e legitimam sua interferência na vida privada dos cidadãos. Isso porque, conforme será demonstrado, essas teorias servirão de substrato teórico para outras que se desenvolverão objetivando-se auferir limites ao poder de incriminar.

2.1 A teoria contratualista de Thomas Hobbes

Em 1651, Thomas Hobbes publicou a obra “Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil”, na qual discorre sobre a natureza humana e a estrutura da sociedade e do governo, preconizando ser imprescindível a existência de um governo central, forte e soberano para que a sociedade possa se desenvolver de forma pacífica.

Nessa obra que Hobbes desenvolve a “teoria do contrato social”. Tal teoria é responsável por explicar e justificar a legitimidade de um Estado soberano com amplos poderes para interferir na vida privada dos súditos, inclusive com a aplicação de punições por meio da força.

Resumidamente, a criação e a justificativa do Estado é resultado de um pacto celebrado entre os indivíduos com o objetivo de superar o estado de beligerância (estado de natureza). Com isso, Hobbes pretere qualquer tipo de explicação divina ou natural do Estado.

No capítulo XIII do “Leviatã”, Hobbes afirma que os homens são iguais. A igualdade a que se refere não é normativa – já que se trata de uma fase anterior à existência do direito –, mas diz respeito à igualdade fática de corpo e de espírito.

Essa igualdade decorre do fato de que eventual superioridade física de um homem é compensada pela superioridade de espírito de outro. Assim, nenhum homem é tão mais fraco que o outro que não seja capaz de matar seu par. Ainda que o fosse fisicamente, o mais fraco poderia lançar mão de sua qualidade de espírito, “quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo”.[11]

Logo, por serem iguais faticamente, comungam os homens das mesmas aspirações e desejos, isto é, da esperança de atingir os mesmos fins. Contudo, isso conduz a uma situação aparentemente sem solução, pois “se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos”.[12]

A partir dessa situação, os homens dão início aos primeiros atos de violência, pois passam a destruir e subjugar um ao outro em busca de interesses individuais. A convivência mútua, portanto, torna-se temerária, pois os indivíduos passam a viver em constante desconfiança e receio de sofrer ataques de outrem.

A desconfiança e receio agravam a situação, pois o homem, para salvaguardar-se de atentados de terceiros, passa a antecipar-se, isto é, inicia ele mesmo ataques objetivando subjugar a maior quantidade de pessoas possível, “durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo.”[13]

A convivência em sociedade, diante desse quadro caótico, passa a ser desprazerosa, tendo em vista que, como demonstrado, o homem vive em constante estado beligerância e com medo da morte violenta. Essa situação é denominada por Hobbes como o estado de natureza ou estado de guerra. Esse estado, contudo, não importa necessariamente em uma guerra efetiva de todos contra todos, mas é caracterizado também pela iminência da guerra.[14]

Enquanto não existir um poder soberano que edite leis e assegure a ordem na sociedade, o homem viverá em estado de guerra de todos contra todos. Nesse estado de beligerância não existem as noções de bem e mal, de justiça e injustiça, pois “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”.[15]

Chegou um momento, porém, em que os homens, cansados de viver na discórdia, na desconfiança e, sobretudo, com medo da morte violenta, passaram a desejar uma vida confortável e pacífica (busca pela paz).

Para alcançar a paz, os homens celebraram um pacto (contrato social), por meio do qual os indivíduos, mútua e reciprocamente, renunciaram ao “direito de fazer tudo quanto queira”[16], transferindo esse direito ao Estado soberano. A função do Estado, portanto, seria viabilizar a convivência pacífica, podendo lançar mão de tudo o que fosse necessário para cumprir tal fim.

Hobbes acredita na existência de leis naturais, consideradas como “fazer aos outros o que queremos que nos façam”[17] (p. ex, justiça, equidade, modéstia e piedade). Contudo, as paixões naturais dos homens os fazem agir com parcialidade, orgulho e vingança[18] e, consequentemente, descumprir seus pactos.

Assim, a única forma de se efetivar as leis naturais e garantir o cumprimento do pacto social seria por meio da existência de um poder absoluto, soberano e forte, pois “os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém”[19]. Isso significa que o contrato social e as leis de natureza somente são cumpridos por meio da força e “por medo do castigo”.[20]

Como se observa, Thomas Hobbes preconiza a monarquia absoluta como melhor forma de governo para viabilizar a convivência pacífica entre os indivíduos, afastar o estado de natureza e garantir o cumprimento do contrato social.

Conquanto possa parecer que, segundo sua teoria contratualista, não existem limites ao poder de punir do monarca, é possível extrair da teoria de Hobbes alguns elementos abstratos que irão limitar a atuação do Estado.

Essa questão será melhor analisada no item 2.3, quando trataremos do contrato social como limite ao poder de punir.

2.2 A teoria contratualista de John Locke

Assim como Thomas Hobbes, John Locke elaborou uma teoria contratualista para explicar o surgimento do Estado e legitimar sua interferência na vida privada dos súditos.

Segundo John Locke, antes de se organizarem numa sociedade civil, os indivíduos viviam em um estado de natureza, caracterizado pela “perfeita liberdade”, na qual o homem podia agir e dispor de seus bens e das pessoas da forma como entendesse ser correto, independentemente da vontade do outro, respeitando alguns limites impostos pelas leis naturais.[21]

Caracterizava-se também por ser um estado de igualdade, não existindo qualquer tipo de subordinação ou sujeição entre os indivíduos, pois seria “absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, prosmiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras.”[22]

John Locke questiona, entretanto, por que motivo o homem abriria mão de sua liberdade absoluta e se submeteria ao domínio do Estado[23]. Logo em seguida responde afirmando que, não obstante o homem gozasse de liberdade total no estado de natureza, o exercício dessa liberdade era incerto, já que poderia ser violado constantemente por outro indivíduo.[24]

Por esse motivo, segundo Locke, o “usufruto que lhe cabe (ao homem) da propriedade é bastante incerto e está constantemente exposto à violação por parte dos outros”[25], tendo em vista que nem todos os homens pautam sua conduta conforme os ditames da justiça e da equidade.[26]

Objetivando a conservação da propriedade contra as investidas de outros indivíduos, o homem busca a vida em sociedade, submetendo-se a um governo que seria responsável por viabilizar a segurança e a paz social.

Malgrado a existência das leis de natureza, a convivência pacífica era inviabilizada pela ausência de “leis estabelecidas” (leis positivas) capazes de ditar padrões objetivos de probidade. Isso porque, segundo Locke, os homens são facilmente influenciados por seus interesses individuais, o que os levaria a ignorar e os impediria de reconhecer as leis naturais.[27]

Além disso, falta no estado de natureza um “juiz conhecido e parcial” que fosse capaz de julgar os litígios conforme as leis estabelecidas. Os homens, conquanto fossem todos, e ao mesmo tempo, juízes e executores das leis naturais, são parciais em favor de si próprios, altamente influenciados pela paixão e pela vingança, o que inviabilizaria um julgamento e execução justos.[28]

Por fim, o estado de natureza é ausente de um poder forte capaz de, por meio da coerção, executar a sentença plenamente. Isso porque aquele que praticou alguma injustiça raramente permitirá que se lhe apliquem a punição.[29]

Por esses motivos, o estado de natureza não permite ao homem uma convivência pacífica e segura. Isso leva os homens a se agruparem em sociedades e a criarem um governo capaz impor leis e, desse modo, garantir a “conservação da propriedade”.[30]

Para isso, os homens renunciam ao direito  natural de “fazer tudo quanto considere adequado para a preservação de si e do resto da humanidade”[31], além de abrirem mão do “poder de castigar”[32], transferindo-os para o corpo político.

Sem embargo, quando o homem renuncia aos seus direitos à liberdade ilimitada, à igualdade e ao poder executivo de que dispunha no estado de natureza e transfere esses direitos naturais à sociedade civil, ele o faz buscando, exclusivamente, proteger a vida, a liberdade e a propriedade (direitos naturais pré-concebidos, anteriores ao Estado). Isso porque, “não se pode supor que uma criatura racional mude propositadamente a sua condição para pior”.[33]

Isso significa que o poder do Estado não é absoluto, pois nunca pode extrapolar o necessário para a garantia do bem comum.[34] Assim, o Estado somente está autorizado a governar segundo as leis promulgadas pelo povo e a empregar a força na execução dessas leis. “E tudo isso não deve estar dirigido a outro fim a não ser a paz, a segurança e o bem público do povo”.[35]

2.3 O contrato social como limite e parâmetro do poder de punir

A teoria contratualista de Thomas Hobbes estipula, abstratamente, limites e parâmetros ao poder de punir do Estado, na medida em que prescreve que o direito de punir do soberano deve ser empregado na preservação do homem.

Segundo Hobbes, não foram os súditos que transferiram ao Estado o direito de punir. Tal direito surgiu com a celebração do contrato social, na medida em que cada indivíduo renunciou ao seu próprio direito de punir. O soberano, todavia, por não fazer parte do pacto, manteve esse direito de natureza intacto, potencializando-o ante a renúncia dos súditos.

O direito de punir, portanto, tem origem no estado de natureza, no qual cada indivíduo tinha liberdade ilimitada para fazer tudo quanto desejasse. No estado de natureza, como já demonstrado, inexistiam as noções de bem e mal, de justiça e injustiça (“onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”). Poder-se-ia argumentar, por esse motivo, que tal direito é ilimitado.

Porém, Hobbes afirma que o exercício do direito de punir somente pode ser empregado na “preservação de todos”.[36] Além disso, esse direito encontra outros limites estabelecidos pelas leis naturais (justiça, equidade, modéstia e piedade).

“Porque não foram os súditos que deram ao soberano esse direito; simplesmente, ao renunciarem ao seu, reforçaram o uso que ele pode fazer do seu próprio, da maneira que achar melhor, para a preservação de todos eles. De modo que ele não lhe foi dado, foi-lhe deixado, e apenas a ele; e tão completo (com exceção dos limites estabelecidos pela lei natural) como na condição de simples natureza, ou de guerra de cada um contra seu próximo.”[37] [grifo nosso]

Conquanto a teoria hobbesiana não estabeleça critérios concretos para limitar o poder estatal, o contrato social é utilizado por outros estudiosos (p. ex, Beccaria e Claus Roxin), para justificar a imposição de limites ao poder do Estado, conforme será demonstrado.

A teoria de John Locke, por outro lado, é bastante clara em estipular limites ao poder de punir do soberano. Locke afirma categoricamente a existência de direitos naturais pré-concebidos, identificados como a vida, liberdade e propriedade.[38]

Ao celebrar o contrato social, o homem abriu mão da liberdade absoluta que gozava no estado de natureza com o propósito de ter garantido o usufruto pleno dos direitos naturais supramencionados.

Assim é que a atuação do Estado e seu direito de punir encontram limites nos direitos naturais (vida, liberdade, propriedade). Isso porque, segundo Locke, “não se pode supor que uma criatura racional mude propositadamente a sua condição para pior”.[39] Esses limites se estabelecem também como parâmetros, na medida em que o Estado deve procurar proteger ao máximo esses direitos, utilizando-se, quando necessário, da sanção penal.

Disso decorre que toda a atuação do Estado deve buscar exclusivamente a paz, a segurança e o bem público[40], sendo que toda ação que se desvirtue dessa finalidade e ofenda os direitos naturais é ilegítima, sendo lícito aos súditos se insurgirem contra o soberano.

De tudo o que foi exposto, pode-se concluir que em ambas as teorias contratualistas os indivíduos somente aceitaram renunciar ao direito à liberdade ilimitada para superar o estado de natureza e alcançar uma convivência pacífica, ou seja, uma condição de vida melhor.

O filósofo italiano Cesare Beccaria, ao tratar da origem das penas e do direito de punir (§ II, “Dos delitos e das penas”), vincula diretamente os limites ao direito de punir ao contrato social. Segundo Beccaria, a soberania da nação é resultado das parcelas de liberdade que os indivíduos renunciaram em benefício do bem comum, sendo o soberano o depositário dessas liberdades. É o príncipe, portanto, na qualidade de detentor da soberania, o responsável por elaborar as leis e administrar a sociedade.[41]

Aduz o marquês de Beccaria que o único motivo que leva o homem a ceder uma parcela de sua liberdade é a necessidade de convergir para um estado no qual a convivência seja pacífica. A consequência disso é que “cada qual apenas concorda em por no depósito comum a menor porção possível dela [liberdade], quer dizer, exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante.”[42]

Dessa forma, segundo Beccaria, o direito de punir do Estado decorre da soma de cada parcela de liberdade e o “exercício do poder que deste fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.”[43]

Assim é que, toda pena que exceda o necessário a para manter a coexistência pacífica entre os cidadãos é injusta e a atuação do Estado nesse sentido é ilegítima.[44]

O criminologista Alessandro Baratta, analisando o pensamento de Beccaria, corrobora a ideia de que a autoridade do Estado e das leis encontra supedâneo no contrato social, o qual constitui também o limite lógico do sacrifício da liberdade individual pela ação do Estado.

“El contrato social está en la base de la autoridad del Estado y de las leyes; su función, que se deriva de la necesidad de defender la coexistencia de los intereses individualizados en el Estado civil, constituye también el límite lógico de todo legítimo sacrificio de la libertad individual mediante la acción del Estado, y en particular del ejercicio de la potestad punitiva del Estado mismo.”[45]

Da mesma forma o faz o jurista brasileiro Aníbal Bruno, ao afirmar, com supedâneo no pensamento de Beccaria, que “o Direito Penal é constituído por aquêle (sic) conjunto de pequenas porções de liberdade assim livremente renunciadas e postas no depósito público.”[46]

As considerações traçadas até o momento, sobre o contrato social e os limites ao poder de punir, embora possam parecer um tanto filosóficas e abstratas, possuem relevância, tendo em vista que a partir dessas ideias é que serão desenvolvidos os princípios da subsidiariedade, fragmentariedade, intervenção mínima e proporcionalidade.

Claus Roxin, a propósito, fundamenta a teoria do bem jurídico a partir da ideia do contrato social. Afirma o jurista alemão que a missão do direito penal é promover uma existência social pacífica, livre e segura. Porém, o Estado só poderia lançar mão do direito penal, passa assegurar essas metas, quando outras medidas político-sociais, menos ofensivas à liberdade, não forem eficientes.[47]

Isso porque, segundo Roxin, conforme a ideologia do contrato social, os indivíduos somente transferem ao Estado os mecanismos de intervenção jurídico-penal que são estritamente imprescindíveis para a promoção de uma convivência livre e pacífica em comunidade[48] e “eles fazem isso somente na medida em que este objetivo não se possa alcançar por outros meios mais leves.”[49]

A partir das considerações feitas por Cesare Beccaria e por Claus Roxin fica visível como a noção do contrato social pode ser utilizada como critério racional de limitação ao poder de incriminação do Estado, ainda que de lege ferenda.

Com o desenvolvimento da doutrina jurídico-penal e partindo-se do contrato social, outras teses foram elaboradas de modo a permitir um maior controle do direito de punir do Estado, como é o caso da teoria do bem jurídico, defendida por Claus Roxin e dos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade, intervenção mínima e proporcionalidade, os quais serão melhor analisados ao longo deste trabalho.

Sobre o autor
Igor Saúde Izoton

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduando em L.LM Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IZOTON, Igor Saúde. Bem jurídico, Constituição e crimes tributários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3589, 29 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24247. Acesso em: 24 nov. 2024.

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