3 TEORIA DO BEM JURÍDICO
Com exceção de alguns críticos da teoria do bem jurídico, como é o caso de Jakobs, o qual entende que a função do direito penal é garantir a vigência da norma[50], é praticamente unânime da doutrina jurídico-penal contemporânea de que a missão do direito é a proteção de bens jurídicos.[51]
O simples argumento de que o legislador é representante da soberania do povo e está legitimado democraticamente não é justificativa suficiente para que a criminalização de um determinado comportamento encontre legitimidade unicamente na discricionariedade do legislador,[52] mormente se consideramos que o legislador é humano suscetível a equívocos, parcialidade e, principalmente, influências de determinados grupos.
As mais modernas teorias do bem jurídico buscam responder as seguintes questões: “pode o legislador declarar punível uma conduta pelo simples fato de não querer que ela seja praticada? Há algum limite ao poder do legislador de incriminar?”[53] Porém, apesar de ser uma teoria que se encontra no cenário jurídico-penal internacional há mais de um século, ainda não existe consenso sobre (a) seu conceito material, isto é, o que é bem jurídico e quais são os bens jurídicos existentes, e (b) sobre o problema de sua fundamentação, ou seja, de onde a teoria do bem jurídico decorre sua autoridade para vincular o legislador.[54]
Não obstante os problemas da teoria do bem jurídico e a ausência de consenso, o direito penal não pode ser aplicado arbitrariamente, sem um parâmetro minimamente concreto para limitar a atividade incriminadora do legislador e impedir a penalização desnecessária de algumas condutas.
É importante ressaltar que o direito penal é a mais grave de todas as formas de intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos, tendo em vista que viola um dos direitos mais fundamentais protegido constitucionalmente: a liberdade. Não estamos pregando o abolicionismo, mas sim uma forma de aplicação do direito penal limitada ao estritamente necessário.
Nesse sentido, Mir Puig preconiza uma aplicação restritiva do direito penal, voltada apenas à proteção de bens jurídicos. Sua fundamentação é no sentido de que o direito penal constitui um mal menor que só pode ser utilizado quando estritamente necessário, isto é, quando outras formas de intervenção estatal não se demonstre eficaz.
“Entre los límites que hoy suelen imponerse al lus puniendi del Estado, ocupa un lugar destacado el expresado por el principio de exclusiva protección de bienes jurídicos. Se hace hincapié en la exigencia de que el Derecho penal castigue únicamente ataques a bienes jurídicos. Supone la concepción del Derecho penal como un mal menor que sólo es admisible en la medida en que resulte del todo necesario. Pero ¿cuándo ha de reputarse necesaria la intervención del Derecho penal?”[55]
Ocorre que, malgrado a teoria do bem jurídico seja objeto de estudo do direito penal há mais de um século, está longe de ser um assunto esgotado, mormente quando levarmos em conta que na legislação penal brasileira e alemã ainda existem delitos cuja legitimidade é questionada.
Tem-se como exemplo, na lei brasileira, boa parcela das contravenções penais (“Art. 54. Exibir ou ter sob sua guarda lista de sorteio de loteria estrangeira”; “Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”[56]; “Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia”; “Art. 63. Servir bebidas alcoólicas: (...) II – a quem se acha em estado de embriaguez), além do crime do artigo 234 do Código Penal: “Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”.
Na legislação criminal alemã os exemplos são mais patentes. Mesmo com a reforma penal de 1973, responsável por retirar do ordenamento alguns delitos contra os costumes e contra a moral, ainda persistem os delitos de incesto (§ 173) e de pornografia com animais (§ 184a).[57]
Por essa razões, o estudo da teoria do bem jurídico ainda poderá contribuir de forma significativa para a ciência criminal, sempre buscando parâmetros para limitar e racionalizar a atividade legislativa.
3.1 Evolução histórica das concepções de bem jurídico
Durante a idade média, o delito tinha natureza estritamente teológica[58]. As condutas criminosas eram as mesmas condutas qualificadas pela Igreja como pecado, tendo em vista que Direito não gozava de autonomia frente à religião e à moral.
A Igreja, portanto, era quem ditava o direito. Isso significa que a conduta delituosa era encarada como uma ofensa às leis divinas e a pena a expiação dos ofensores. O delito equivalia ao pecado, isto é, desobediência à vontade de Deus.[59]
Nessa fase, denominada por alguns estudiosos de “vingança divina”[60], as penas eram infligidas pelos sacerdotes, considerados delegados divinos, que aplicam-na de forma severa, cruel e desumana.[61]
Com o desenvolvimento do Iluminismo, caracterizado por ser um movimento secularizado que buscava a separação entre Estado e religião, o delito passou a ser concebido como uma violação ao contrato social e a pena como medida preventiva.[62] Essa concepção do delito é defendida por Beccaria e ganhou visibilidade após a publicação da obra “Dos delitos e das penas”.[63]
O movimento da ilustração promovia o secularismo e o humanismo. Por essa razão, a tendência era de garantir os direitos individuais, frente o arbítrio judicial e a desproporcionalidade das penas. Passou-se a buscar, portanto, um conceito material para o delito.[64]
O primeiro conteúdo material assimilado foi o delito como violação de um direito subjetivo (da pessoa ou do Estado), conceito esse que remonta à Anselm Feuerbach (1832)[65]. Disso decorre que não haveria delito sem lesão a um direito subjetivo[66], ainda que a conduta lesiva ofendesse um bem material do mundo.
Não obstante a fragilidade do conceito de delito formulado pelo mencionado jurista e filósofo alemão – já que inviabiliza a tutela penal de outras condições imprescindíveis à vida em sociedade – sua construção ficou marcada por exercer uma função limitadora ao poder de incriminar do legislador, uma vez que delineou um conceito material de delito.[67]
Conforme adverte Hernan Hormazaval Malaree, esse conceito material de delito como lesão a um direito subjetivo
no es más que la expresión de la teoría del contrato social en el derecho penal: los hombres ante la inseguridad que supone vivir aislados, deciden organizarse en sociedad y confiar al Estado la conservación del nuevo orden creado. El Estado se erige como garante de las condiciones de vida en comúm.[68]
Como consequência disso, tem-se que a incriminação de determinadas condutas pelo Estado somente seria legítima quando essas condutas causassem algum dano social.[69]
Foi Birbaum (1834), porém, quem introduziu na ciência do direito penal a primeira noção de bem jurídico.[70] Segundo ele, a conduta delituosa lesionava “bens” existentes no mundo material, e não direito subjetivos como propunha Feuerbach.[71]
Corroborando a teoria desenvolvida por Birbaum, Mezger afirmou que “existem numerosos delitos nos quais não é possível demonstrar a lesão de um direito subjetivo e, no entanto, se lesiona ou se põe em perigo um bem jurídico.”[72]
A teoria de Birbaum resolve o problema da impossibilidade de incriminação de condutas que lesionam circunstâncias necessárias à convivência pacífica em sociedade, mas que não estavam diretamente ligadas a um direito subjetivo, como é o caso da moral[73] e da religião.[74]
Como assevera Hormazábal Malareé, Birnbaum jamais delineou um conceito de “bem”.[75] Isso importa dizer que a colocação de determinado objeto do mundo real na qualidade de “bem” a que se refere Birnbaum, dependerá do sujeito o valora. Trata-se, portanto, de uma decisão política, já que o sujeito valorante é o Estado.[76]
Consequência disso é que a concepção de delito como ofensa a um bem material do mundo não estabelece qualquer tipo de limite à atividade incriminadora do Estado, como bem assinala Heloisa Estellita.[77]
Posteriormente, com a influência do positivismo, entram em cena as concepções formais do bem jurídico, dentre elas a formulada por Karl Binding,[78] que foi caracterizada por um racionalismo estritamente juspositivista e ausente de qualquer influência filosófica ou suprajurídica.[79]
Como adverte Luiz Regis Prado, na concepção de Binding, “o delito consiste na lesão de um direito subjetivo do Estado”[80]. Porém, para que uma conduta seja considerada delituosa, é imprescindível a existência de ofensa a um bem jurídico.[81]
Binding passa a investigar um conceito material de bem jurídico, chegando a conclusão, em síntese, de que bem jurídico nada mais é do que o objeto protegido pela norma penal, livremente valorado e escolhido ao critério do legislador.[82]
Por ser estritamente positivista e por não delimitar um conceito material, essa concepção de bem jurídico não estabelece qualquer parâmetro concreto apto a limitar o poder de punir do legislador e tampouco capaz de lançar críticas ao direito positivado. Como consequência, os cidadãos ficam em posição de vulnerabilidade frente ao arbítrio do Estado[83].
Hormazábal Malarée critica a construção teórica de Binding, argumentando que, além de sua proposta ser extremamente normativista, ela coloca o Estado como elemento central responsável por todas as fases de incriminação, criação das normas, escolha dos bens jurídicos e execução penal. Os cidadãos são afastados da participação do debate racional legiferante e deixam de ser o fim da norma, para serem unicamente destinatários dela e de uma pena exclusivamente retributiva. Assim, não resta ao indivíduo alternativa, senão obedecer.[84]
Em contraposição à concepção formal do bem jurídico, a qual carece de qualquer critério substantivo, Franz von Liszt desenvolve uma teoria material do bem jurídico, vangloriada, inicialmente, por sua capacidade de limitação à atividade legislativa.[85]
Liszt afirma que o direito existe para tutelar os interesses dos homens e, dessa forma, define bem jurídico como “o interesse juridicamente protegido”, seja esse interesse individual ou da coletividade. Assim, o interesse humano é criado pela vida e não pelo direito, mas é a proteção jurídica que eleva esse interesse à categoria de bem jurídico. [86]
Como assinala Luiz Regis Prado, na concepção de Liszt, o conteúdo do bem jurídico existe de forma autônoma, pois seu conteúdo valorativo não depende da escolha do legislador. É dizer, o bem jurídico é um conceito preexistente ao ordenamento jurídico. Isso significa que não é a norma quem cria o bem jurídico, mas o bem jurídico preexistente que deve ser buscado pela norma como objeto de tutela.[87]
Disso extrai-se que o bem jurídico não é uma criação da norma, “sino una creación de la vida y como tal un interés vital del individuo o de la comunidad a la que la protección del derecho le da la categoría de bien jurídico.”[88]
Heloisa Estelitta ressalta o mérito da concepção de von Liszt por tentar delinear um conceito material de bem jurídico – interesses vitais do indivíduo ou da comunidade – que sirva de parâmetro concreto para fixação de limites ao poder de incriminar do legislador. Adverte, porém, que a delimitação desses interesses restou em aberto,[89] o que acaba por dificultar sua função limitadora.
No início do século XX, surgiram as concepções metodológicas do bem jurídico, primeiramente representada por Richard Honig, para quem o bem jurídico nada mais é do que a própria ratio da norma.[90]
Honig, em sua obra publicada em 1919, analisa a evolução histórica de bem jurídico demonstrando a impossibilidade de se determinar um conceito material de delito. Essa impossibilidade decorre do fato de que é inviável determinar materialmente o objeto protegido pela norma.[91]
Assim é que, segundo Richardo Honig, a finalidade do direito penal é a proteção dos valores sociais, os quais constituem o objetivo de proteção do delito. Porém, aduz Honig que esse valores sociais não existem de forma autônoma, pois são nada mais do que uma escolha do Estado.[92]
Conforme assinala Heloisa Estellita, a teoria de Honig identificou o bem jurídico com a ratio da norma[93] e, por essa razão, retirou-lhe a “capacidade crítica e limitadora do poder punitivo estatal.”[94]
Essa concepção de bem jurídico ausente de qualquer capacidade crítica a legislação, como adverte Malerée, foi acolhida pelo Estado nacional socialista para fundamentar um direito penal voltado exclusivamente aos interesses do Estado e sem qualquer tipo de limitação.[95]
Porém, com a queda dos regimes totalitários, surgem as concepções sociológicas de bem jurídico e as que procuram na Constituição o seu conteúdo material.[96]
As concepções sociológicas do bem jurídico têm como representantes Amelung, Habermas, Jakobs e Hassemer, Gomes Benitez, H. Otto e R. P. Calliess.[97]
Em apertada síntese, segundo Amelung, o bem jurídico deve ser entendimento como aquilo que seja “socialmente danoso”, categoria onde se enquadram os “comportamentos disfuncionais”. Amelung busca um conceito de danosidade social anterior ao direito positivo e, por isso, apto a limitar a atividade do legislador.[98]
Contudo, por desenvolver uma teoria sistêmica, Amelung preconiza a sobreposição dos valores da sociedade em detrimento dos direitos individuais, já que à teoria sistêmica interessa a “sobrevivência do sistema”.[99] Por essa razão M. C. F. Cunha assinala que “a teoria sistêmica não apõe nenhum limite à funcionalização da pessoa, se tal se afigurar necessário para a estabilização do sistema.”[100]
Amelung, porém, ao discorrer sobre a definição de “danosidade social”, recorre a um critério positivista, pois afirma que “deve-se reservar ao conceito de bem jurídico aos objetos que são valorados positivamente pelo legislador parlamentar”.[101]
Por essa razão, mais uma vez as críticas anteriormente feitas por Cunha são pertinentes, já que o conceito de bem jurídico elaborado por Amelung carece de um caráter crítico e limitador à legislação.
A concepção de bem jurídico desenvolvida por Habermas encontra fundamento na identidade social.[102] Isso porque a legitimidade da incriminação de determinadas condutas decorreria de um debate racional, por meio do qual todos os cidadãos chegariam a um consenso. Nesse debate, com efeito, os indivíduos teriam igualdade de participação e estariam isentos de dominação, sendo resultado disso um critério para estabelecer a verdade.[103]
Sem embargo, Cunha adverte para a dificuldade em se viabilizar uma situação de diálogo ideal, no qual os participantes sejam totalmente imparciais. Além disso, afirma que o debate racional é uma forma legítima de se alcançar a dita “verdade”, mas com ela não se confunde.[104]
Por fim, Luiz Regis Prado, após analisar a evolução das concepções de bem jurídico, assinala que é preciso “se evitar tanto o exagero de uma postura puramente normativista, despida de cunho social, como também uma espécie de totalitarismo sociológico (funcionalista) – prescindindo de qualquer juízo normativo – altamente nefasto.”[105]
As teorias constitucionais do bem jurídico serão analisadas em tópico próprio, pois a partir delas é que será possível chegar próximo a um conceito de bem jurídico capaz de vincular e limitar a atividade do legislador.
Antes disso, porém, faremos a exposição de algumas críticas à teoria do bem jurídico traçadas por parte da doutrina.
3.2 Críticas à teoria do bem jurídico
A teoria do bem jurídico encara principalmente dois problemas: o primeiro consistente na dificuldade em delinear um conceito material de bem jurídico e o segundo se refere à sua fundamentação, isto é, explicar de onde decorre a autoridade da teoria do bem jurídico, principalmente no que diz respeito a sua vinculatoriedade para limitar o legislador.[106]
Partindo dessas premissas, Hirsch, Stratenwerth e Jakobs são considerados na atualidade os principais críticos da teoria do bem jurídico.
Segundo Hirsch, não existe um conceito de bem jurídico pré-estabelecido (anterior ao direito positivo) e que seja idôneo para obrigar a discricionariedade do poder legislativo.[107]
Stratenwerth argumenta que, não obstante ser dominante na doutrina de que o direito penal sirva à proteção de bens jurídicos, seu conceito permanece completamente obscuro.[108]
Stratenwerth parte da existência dos diversos conceitos de bem jurídico existentes na doutrina para concluir que “o problema não está ‘ainda por solucionar-se’, mas é simplesmente insolúvel. Há tempos isso foi demonstrado pela história da dogmática e repetido já suficientemente: uma definição abrangente e material do bem jurídico é a quadratura do círculo”.[109]
Por fim, afirma a incriminação de determinada conduta não se funda na tutela de bens jurídicos, mas na inconveniência social de um comportamento.[110]
Günter Jakobs é reconhecido como um dos críticos mais contundentes à teoria do bem jurídico.Ele afirma categoricamente que “o Direito Penal garante a vigência das normas, não a proteção de bens jurídicos.”[111] Em sua concepção, o direito não é um instrumento de proteção de bens, mas uma “estrutura de relação entre pessoas”.[112]
Por isso, Jakobs analisa a questão sob outra perspectiva. O direito penal, portanto, não se presta à proteção de bens, mas sua missão é garantir a expectativa de não ocorram ofensas a bens.[113] Não obstante parecer uma mera reformulação linguística, ele garante que não, pois sustenta que “o bem se manifesta jurídico-penalmente tão só como a pretensão do titular de que os demais respeitem o bem”.[114] Exemplifica sua afirmação a partir da propriedade:
“Eis um bem, por exemplo, a propriedade, que não pode ser lesionado. O proprietário desse bem pode deixá-lo decair; se o bem se encontra em perigo, não estão todos obrigados a ajudar o titular a salvá-lo; apenas não podem eles destruir ou subtrair o bem.”
Por essa razão, Jakobs conclui que o bem, sob a perspectiva jurídico-penal, não é um objeto externo, mas sim a própria norma, “enquanto expectativa garantida”.[115]
Jakobs corrobora seu posicionamento lançando mão da teoria dos fins da pena. Segundo ele, por ser um adepto da teoria sistêmica, o crime é uma ofensa à estrutura da sociedade e a pena é a negação dessa ofensa, logo, a pena é a confirmação da estrutura[116]. Em outras palavras: “o fato é lesão à vigência da norma; a pena é a eliminação dessa lesão”.[117]
Esse pensamento de Jakobs guarda estreita semelhança com a teoria da pena elaborada por Hegel, segundo o qual a pena é a “negação da negação do direito”.[118]
Claus Roxin rebate com veemência as críticas formuladas por Jakobs por entender que um sistema social “não deve ser mantido por ser um valor em si mesmo”[119], tendo em vista que o sistema social e o direito têm como fim primeiro os homens que vivem em sociedade.[120]
O argumento de Roxin encontra sustentação na ideia de que no Estado Democrático de Direito as normas devem ter como finalidade a garantia de uma comunidade livre e pacífica, na qual os direito humanos sejam respeitados. Por essa razão é que a norma não pode ter como fim unicamente a obediência dos indivíduos[121], como pretende Jakobs.
3.3 Teorias constitucionais do bem jurídico
Como bem assinala Luiz Regis Prado, as teorias constitucionais buscam o conceito de bem jurídico na Constituição “operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais”.[122]
Isso significa que a Constituição é que vai indicar ao legislador quais são os bens jurídicos merecedores de tutela penal. Preterem-se aqui as noções de bens jurídico-penais pré-estabelecidos.
As concepções constitucionais do bem jurídico são subdividas em teorias de caráter geral e teorias de fundamento constitucional estrito,[123] sendo que a diferença entre elas decorre do maior ou menor grau de vinculação do conteúdo material do bem jurídico com as normas constitucionais.[124]
As teorias de caráter geral encontram o conteúdo do bem jurídico no corpo axiológico constitucional, de maneira geral, tendo-se em vista os princípios, a forma de Estado e seus objetivos.[125]
Por outro lado, as teorias de fundamento constitucional estrito vinculam o conteúdo do bem jurídico levando-se em conta o texto constitucional, por meio de prescrições específicas[126]. Não é necessário que o objeto de tutela penal esteja expressamente descrito na Constituição, porém, é imprescindível que decorra diretamente do texto constitucional.
Dentre os defensores da teoria constitucional de caráter geral, destacam-se Walter von Sax, M. Marx, D. Pulitanò, G. Fiandaca, Claus Roxin, e H. J. Rudolphi.[127]
Walter von Sax (1972) distingue os valores constitucionais dos valores penais, afirmando que trata-se de ordens que se encontram em diferentes níveis de eficácia. Por essa razão, os valores penais somente coincidiriam com os valores constitucionais no que diz respeito àqueles bens mais básicos, como é o caso da vida, liberdade e propriedade.[128]
Por essa razão, seria legítimo ao direito penal tutelar outros valores que não estivessem expressamente incorporados na Constituição,[129] desde que, como observa Heloisa Estellita, não houvesse conflito com as diretrizes constitucionais.[130]
Além disso, na concepção de Sax, o Estado somente poderia lançar mão dos instrumentos jurídico-penais nos estritos casos de merecimento e necessidade de pena (ultima ratio).[131] Sax usa como fundamento para a ultima ratio a ideia de que a pena inflige “uma violação aos valores morais de seu destinatário.”[132]
Hans Joachim Rudolphi (1970) elabora sua concepção de bem jurídico partindo da ideia de Estado de Direito Constitucional, no qual a atividade estatal não está vinculada tão somente ao princípio da legalidade, mas deve ser norteada por uma noção de justiça material, de modo a concretizar uma sociedade justa e igualitária.[133]
Rudolphi assinala que os instrumentos jurídico-penais somente poderiam ser empregados na proteção das condições de vida de uma sociedade estruturada na liberdade individual.[134]
Essas condições seriam extraídas da Constituição e são elas que Rudolphi eleva à categoria de bem jurídico. Seu conteúdo material, dessa forma, é extraído conjuntamente a partir das normas constitucionais e das condições e funções em que se baseia a vida social.[135]
Dessa forma, Rudolphi conceitua bem jurídico como uma unidade de função social não estática,[136] imprescindível para a sobrevivência da comunidade e que tem como substrato a Constituição.[137] O dinamismo dessa unidade de função social decorre do fato de que as condições de vida em comunidade estão em constante desenvolvimento e modificação.[138]
Segundo Michael Marx (1972) a finalidade do Estado é a proteção da dignidade humana. Marx extrai essa finalidade do artigo primeiro da Constituição alemã. Assim, a função do direito penal não poderia ser outra, senão a proteção do homem como ser livre e capaz de se desenvolver.[139]
Dessa forma, os instrumentos jurídico-penais deveriam ser empregados visando proteger e impedir lesões à tudo o que fosse necessário para o desenvolvimento pessoal do homem[140]. Marx, por conseguinte, chega a conclusão de que bens jurídicos são “aquellos objetos que el hombre necesita para su libre realización”.[141]
Já as teorias constitucionais estritas são representadas por F. Bricola, E. Musco, F. Angioni, J. J. Gonzalez Ruz e E. Gregori.
Dentre os teóricos italianos, Bricola (1973) é considerado o primeiro a formular uma teoria impondo uma vinculação do direito penal à Constituição[142].
Segundo sua teoria, os objetos tutelados pelo direito penal deveriam, obrigatoriamente, estar prescritos na Constituição. Bricola parte dos princípios fundamentais da República, previsto no artigo 3º da Constituição Italiana[143], para concluir que o direito penal somente pode ser empregado para sancionar a violação de um bem de mesma hierarquia do bem sacrificado com a pena (a liberdade individual), ou ao menos dotado de relevância constitucional. Isso significa que os instrumentos jurídico-penais devem ser utilizados exclusivamente para a proteção de valores com relevância constitucional.[144]
A relevância constitucional do bem, como anota Bricola, decorre não apenas da descrição expressa do bem, mas também dos “valores garantidos explícita ou implicitamente pela Constituição”. Bricola, contudo, reconhece a amplitude da expressão “relevância constitucional”.[145]
Angioni elabora sua teoria de fundamento constitucional estrito partindo do pressuposto de que um direito penal que se preste à proteção de bens jurídicos deverá sempre observar os princípios da proporcionalidade, necessidade e efetividade da tutela penal.[146]
Segundo Angioni, a pena privativa de liberdade, por seu caráter reeducador somente poderia ser aplicada para sancionar aquelas ofensas a valores constitucionais primários, enquanto que a pena pecuniária poderia ser utilizada tantos para as ofensas a bens primários ou secundários.[147]
Angioni entende que a liberdade constitui o bem de maior hierarquia dentro da ordem constitucional. Partindo dessa ideia, bens primários seriam todos aqueles sem os quais o ser humano não pode realizar-se minimamente em sua existência ou cuja ausência importaria em ofensa à dignidade humana.[148] Dessa forma, como a ofensa aos bens primários resulta também uma ofensa à liberdade individual, o Estado está autorizado a sancionar o ofensor com pena de prisão.[149]
Com relação à forma de proteção, Angioni assinalava que é a importância do bem jurídico que determinará com qual grau de antecipação o bem poderá ser tutelado. Dessa maneira Angioni legitima os crime de perigo abstrato.[150]
Musco (1974) entende ser imprescindível delinear um conceito material de bem jurídico e que este conceito deve ser perscrutado em uma ordem pré-positiva com equivalência na Constituição.[151] A teoria desenvolvida por Musco tem o contratualismo clássico como substrato, uma vez que define bem jurídico como “aquellos valores conceptualmente aprehensible, de cierto e inmediato origen constitucional, que sirvem para asegurar las condiones esenciales de la vida em común”.[152]
3.4 Conceito de bem jurídico
Como se pode extrair das diversas concepções de bem jurídico expostas nos subtópicos anteriores, existe grande controvérisa na doutrina no que diz respeito ao conceito material de bem jurídico, muito embora seja quase unânime que o direito penal deva servir exclusivamente à proteção desses bens.[153]
Na doutrina nacional, Cezar Roberto Bitencourt define bem jurídico como “todo valor da vida humana protegida pelo Direito.”[154] Aníbal Bruno, por sua vez, adota concepção semelhante à formulada por Von Liszt, anotando que bens jurídicos são “interêsses (sic) fundamentais do indivíduo ou da sociedade, que, pelo seu valor social, a consciência comum do grupo ou das camadas sociais nêle (sic) dominantes elevam à categoria de bens jurídicos”.[155]
Segundo Heleno Cláudio Fragoso, bem jurídico “é todo valor da vida humana ou social, protegido pelo direito. A vida, por exemplo, é um bem. Como o direito protege a vida humana incriminando o homicídio, a vida humana é um bem jurídico.”[156] Luiz Regis Prado assinala que bem jurídico “vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual ou reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido.”[157] Afirma ainda que a referida concepção deve sempre estar em consonância com quadro axiológico da Constituição e com o princípio do Estado democrático e social de Direito.[158]
Assis Toledo conceitua bens jurídicos como “valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou lesões efetivas”,[159] enquanto Magalhães Noronha os conceitua como “o bem-interesse protegido pela norma penal”.[160]
Já na doutrina estrangeira, as mais reconhecidas teorias do bem jurídico já foram expostas nos subtópicos anteriores, quando tratamos da evolução histórica e das teorias sociológicas e constitucionais. Porém, é pertinente citar a definição perfilhada por outros estudiosos renomados.
Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, bem jurídico passível de tutela penal pode ser conceituado como “la relación de disponibilidad de una persona con un objeto, protegida por el Estado, que revela su interés mediante normas que prohíben determinadas conductas que las afectan”.[161]
Zaffaroni, porém, adverte que não é qualquer ofensa a um bem jurídico que caracteriza um injusto penal, mas tão somente àquelas ofensas tipificadas em lei.[162]
Nesse sentido, é válido relembrar as observações de Jakobs, para quem existem diversas formas de lesões a bens jurídicos que não caracterizam ilícito penal algum; por exemplo, quando um objeto (propriedade) se deteriora e terceiros permanecem inertes, já que não estão obrigados legalmente a evitar seu deterioramento.[163]
Winfried Hassemer propõe uma teoria pessoal do bem jurídico. Ele parte do pensamento não-funcionalista de Arthur Kaufmann, para quem “o conceito de pessoa é o eixo e o centro de rotação de uma fundamentação jurídica (...) ele constitui um critério indisponível de um Direito justo.”[164] Hassemer afirma, portanto, que a finalidade do Estado é o indivíduo e, por isso, deve o Estado sempre buscar proteger o desenvolvimento do ser humano[165].
Dessa forma, Hassemer entende que bens jurídicos são “interesses humanos que carecem de proteção penal”.[166] Esclarece, contudo, que sua concepção não afasta a existência dos chamados bens jurídicos supra-individuais, mas que tutela penal desses bens somente deve ocorrer “como condição de possibilidade de servir a interesses dos seres humanos”.[167]
Por fim, Hassemer anota que a teoria do bem jurídico não é suficiente para resolver o problema do merecimento da pena e que o conceito de bem jurídico não deve ser muito restrito de modo a impedir a discricionariedade do legislador.[168]
Santiago Mir Puig, por sua vez, atenta para o fato de que nem todo bem jurídico é merecedor de proteção penal.[169] Assim, afirma que para que um bem jurídico transmute-se em jurídico-penal é preciso que tenha importância social e sua proteção penal seja necessária,[170] porém, é ainda necessário que importe concretas possibilidades para o indivíduo.[171]
Segundo Mir Puig, não se pode negar que o reconhecimento constitucional de um bem é fator importante para aferir ele faz jus à tutela penal, porém, essa circunstância não é suficiente, já que a Constituição de um Estado tem como objetivo fundamental organizar o exercício do poder político e não regular as relações humanas.[172]
Já Francisco Munõz Conde afirma que a função da norma penal é garantir as condições mínimas de convivência social e, ao mesmo tempo, servir de incentivo para que os indivíduos não lesionem essas condições.[173]. Dessa forma, bens jurídicos seriam “aquellos presupuestos que la persona necesita para la autorrealización en la vida social”.[174] Conde descreve bens jurídicos individuais como sendo a vida, a saúde e todos os demais pressupostos necessários para garantir a vida e impedir o sofrimento, além de outros bens necessários para o desenvolvimento do homem e de sua personalidade; e reconhece a existência de bens jurídicos comunitários.[175]
Hernán Hormazabal Malerée reconhece a posição de hipossuficiência e desigual do indivíduo frente ao poder Estatal, o que leva à necessidade da adoção de uma política criminal voltada exclusivamente à proteção de bens jurídicos.[176]
Malerée critica as teorias constitucionais do bem jurídico por entender que elas não explicam o que vem a ser bem jurídico, mas limitam-se a indicar na Constituição de determinado Estado quais seriam os bens merecedores da proteção penal.[177]
Em sua concepção, o bem jurídico é um produto social das relações concretas e específicas de uma sociedade identificada no tempo e no espaço. Desse modo, bens passíveis de tutela penal seriam o resultado de um processo dialético da sociedade civil.[178] Assim, Malarée define bens jurídicos como “relaciones sociales concretas de carácter sintético protegidas por la norma penal que nacen de na la propia relación social democrática como una superación del proceso dialéctico que tiene lugar en su seno.”[179]
Não obstante a propriedade com qual os estudiosos mencionados acima formulam suas próprias teorias do bem jurídico, analisaremos com mais profundidade a teoria elaborada pelo alemão Claus Roxin e adotaremos seu conceito de bem jurídico para os fins deste trabalho, por entendermos ser uma teoria completa e por sua influência e reconhecimento na doutrina jurídico-penal internacional. Roxin, além disso, defendendo a tese de que o direito penal somente encontra legitimidade quando utilizado exclusiva e subsidiariamente na proteção de bens jurídicos, foi responsável pela descriminalização de alguns delitos considerados na época contra a moral[180] (e que não ofendiam bens jurídicos), como é o caso do homossexualismo entre adultos.[181]
Claus Roxin entende que a utilização dos mecanismos de intervenção penal somente encontra legimitamação quando voltada para uma função social. Essa função, com efeito, consiste em “garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando essas metas não possam ser alcançadas por outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos”.[182]
Roxin assevera que a função social do direito penal não necessita de uma fundamentação teórica mais aprofundada, pois seria decorrência lógica de uma democracia parlamentar.[183]
Recorre, contudo, à teoria clássica do contrato social e ao Iluminismo para fundamentar seu entendimento. Segundo Roxin, conforme a concepção ideológica do contrato social, os indivíduos transferiram ao Estado somente os mecanismos penais mínimos necessários para a manutenção de uma convivência pacífica e livre em comunidade. Isso importa dizer que esses mecanismo só poderiam ser utilizados em último caso, quando outros meios menos gravosos não surtissem o efeito pretendido.[184]
Disso extrai-se que, em um Estado democrático de Direito, no qual todo poder emana do povo, “as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantir de todos os direitos humanos”.[185]
Roxin ressalta que o Estado deve garantir, por meio dos mecanismos de intervenção penal, não apenas aquelas condições individuais imprescindíveis para alcançar a mencionada função social (p. ex., vida, integridade física, liberdade individual, propriedade), como também deve proteger o funcionamento das instituições do Estado que viabilizem aquelas condições individuais; e exemplifica: “uma administração de justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de corrupção etc.”[186]
Assim é que Roxin denomina bens jurídicos todas essas condições individuais e instituições estatais que viabilizam a convivência pacífica em comunidade. Registra, dessa forma, que os bens jurídicos não são necessariamente objetos materiais, mas fazem parte da realidade empírica. Por exemplo, os direitos humanos, como a liberdade de opinião e liberdade religiosa: não se tratam de bens materiais existentes no mundo corpóreo, porém, a ofensa a esses bens prejudica a convivência pacífica em comunidade.[187]
Diante do que foi exposto, Claus Roxin conclui conceituando bens jurídicos como “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.”[188]
Por se tratar de uma teoria constitucional, essas condições reais ou finalidades devem ser extraídas dos princípios da Lei Maior e levando em consideração principalmente a liberdade individual.[189]
Dessa definição, Roxin esclarece que os bens jurídicos não estão pré-estabelecidos para o legislador, mas podem ser criados, como é o caso dos bens referentes ao âmbito tributário.[190]
Como é possível extrair de sua concepção de bem jurídico, Roxin afirma com convicção a existência de bens jurídicos supraindividuais. Porém, ressalta que a intervenção jurídico-penal visando a proteção desses bens gerais só será legítima quando importar na tutela do indivíduo.[191]
A obrigação de pagar impostos, exemplifica, é imprescindível para o livre desenvolvimento do indivíduo na sociedade, tendo em vista que sua finalidade não é o enriquecimento do governo, mas sim garantir a receita para o Estado despenda investimentos que serão revertidos ao benefício do próprio cidadão.[192]
3.5 A função limitadora do bem jurídico-penal
O bem jurídico exerce função limitadora – também denominada função de garantia – na medida que, em um Estado democrático e social, não é permitido ao legislador incriminar condutas que não lesionem ou ao menos coloquem em perigo bens jurídicos. Segundo Prado, essa função possui caráter político-criminal e atua limitando o poder legislativo no momento da produção da norma penal.[193]
Claus Roxin aprofunda o estudo da função limitadora do bem jurídico indicando nove situações concretas nas quais um determinado comportamento não pode ser criminalizado por não consistir ofensa ou perigo de ofensa a um bem jurídico.
Esses limites são extraídos do conceito de bem jurídico e da finalidade do direito penal: a de “garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas.”[194]
Esse conceito, como já afirmado, é resultado do contrato social, pelo qual os indivíduos transferem ao Estado somente os meios jurídico-penais indispensáveis para garantir a convivência social livre e pacífica. É resultado também dos fundamentos da democracia parlamentar e do reconhecimento dos direitos humanos[195], pois não se pode conceber que o povo, único detentor do poder, outorgaria ao Estado poderes para agir de forma que os viesse a prejudicar arbitrariamente. Nesse sentido, é pertinente citar a frase de John Lo name="_ftnref196" title="">[196]
Disso exsurge imediatamente o princípio da ultima ratio, segundo o qual o direito penal só pode ser empregado para coibir uma conduta quando outras medidas menos gravosas não forem eficazes.[197] Isso porque a pena, por si só, constitui uma ofensa (legal e necessária) à liberdade individual; logo, só pode ser utilizada em último caso.[198]
Partindo desses pressupostos, Roxin ensina que (1) o legislador não pode criminalizar uma conduta impelido por motivações ideológicas e tampouco pode criar normas que sejam ofensivas aos direitos fundamentais e humanos. Por exemplo, não é permitido ao legislador punir o casamento entre pessoas de diferentes raças, porquanto seria uma norma atentatória ao princípio da igualdade, insculpido na Constituição alemã[199] e na brasileira no caput do artigo 5º.[200]
Afirma Roxin ainda que (2) “a simples transcrição do objeto da lei não fundamenta um bem jurídico”,[201] ou, em outras palavras, “a descrição da finalidade da lei não basta para fundamentar um bem jurídico que legitime um tipo”.[202]
Roxin utiliza como exemplo o crime de homossexualismo entre homens adultos (abolido na Alemanha em 1969). Esse delito era justificado por alguns sob o argumento de que se estava protegendo o “estrutura heterossexual das reações sexuais”. Porém, como bem aponta Roxin, indicar a “estrutura heterossexual das relações sexuais” nada mais é do que mencionar a finalidade da norma, de modo que não se analisa se essa finalidade constitui de fato um dos pressupostos necessários para a coexistência livre e pacífica em sociedade.[203]
Aqueles que entendem que o bem jurídico tutelado é a própria ratio da norma, como é o caso de Honig (sua teoria já foi analisada no presente trabalho), foram severamente criticados, uma vez que essa teoria retira do bem jurídico qualquer caráter limitador da atividade legislativa. Não bastasse, essa teoria pode ainda ser utilizada para legitimar qualquer norma penal editada pelo Estado, ainda que vá de encontro aos princípios mais básicos do Estado democrático de direito. Tanto é verdade que a mencionada teoria do bem jurídico foi utilizada pelos regimes totalitários para justificar uma série de intervenções penais desmedidas.
Também não é permitido ao legislador punir aquelas (3) condutas que, sem ofender os pressupostos de uma convivência livre e pacífica, constituem apenas “imoralidades, contrariedade ética ou mera reprovabilidade”.[204]
A concepção de bem jurídico formulada por Roxin importa, necessariamente, na proteção penal da dignidade humana (sempre respeitando o princípio da ultima ratio). Contudo, (4) a afronta à dignidade humana somente deverá ser punida quando se tratar de ofensas à terceiros; jamais da própria dignidade. Isso porque o direito penal deve ser empregado para impedir lesões a terceiros e não a si próprio.[205] Nesse ponto, cabe novamente o fundamento de que não existe, nas condutas que afrontam a própria dignidade, ofensa aos pressupostos de uma convivência pacífica.
Em um mundo globalizado, onde diversas culturas convivem em um mesmo espaço, (5) a proteção de sentimentos não pode ser objeto do direito penal, a não ser que se trate de sentimentos de ameaça, capaz de infligir medo nos indivíduos e, com isso, afetar os pressupostos da convivência livre e pacífica. Isso porque esse tipo de sociedade requer tolerância e respeito frente às diversas concepções culturais e diferenças de opinião e costumes.[206]
Roxin entende ainda que não é legítimo a criminalização de (6) condutas de autolesão consciente, uma vez que o direito penal somente deve ser utilizado para proteger as pessoas de lesões perpetradas por outras contra sua vontade. As lesões voluntárias dizem respeito exclusivamente ao âmbito privado no indivíduo e, nesse ponto, o Estado não deve interferir.[207]
Os Estados que se ocupam da proteção do indivíduo contra ele mesmo, por exemplo, punindo o consumo de fumo, álcool, condução de veículos velozmente, prática de esportes perigosos, são denominados paternalistas. Porém, o paternalismo – por ser uma interferência indevida na autonomia privada do indivíduo – só se justifica no caso de pessoas com capacidade de autonomia reduzida, como é o caso de menores de idade, enfermos mentais e todos os outros que não conseguem compreender completamente as consequências de seus atos.[208]
Nesse sentido, Claus Roxin defende com categoria a descriminalização das condutas de obtenção e uso de drogas suaves (p. ex., cannabis sativa), pois entende que o consumo pessoal causa danos apenas ao próprio usuário e não a terceiros.[209]
Da mesma forma, (7) as normas penais simbólicas não são legítimas, uma vez que não se prestam à proteção de bens jurídicos.[210] Leis penais simbólicas podem ser compreendidas como aquelas que objetivam promover ou proteger os ideais de grupos políticos ou ideológicos, por meio da imposição de determinados valores.[211] Tem-se como exemplo o delito, previsto no §130, alíena III do Código Penal Alemão[212], popularmente conhecido como “mentira de Auschwitz”. Esse delito pune com pena de até 5 (cinco) anos aquele que negar a existência do genocídio perpetrado pelos nazistas. Em que pese o caráter reprovável deste comportamento, a negação de um fato histórico ou de seu caráter lesivo não “prejudicam a convivência pacífica das pessoas”,[213] sendo sua punibilidade, portanto, ilegítima.
O direito penal tampouco pode pretender (8) a proteção de tabus, como é caso do incesto.[214] Os argumentos utilizados para preterir a criminalização de tabus são semelhantes àqueles que não admitem a punição de condutas meramente imorais, já que, em muitas circunstâncias, os tabus e a moralidade se equivalem.
O sexo entre irmãos adultos não afeta a convivência livre e pacífica na sociedade, sendo certo que se trata de uma conduta que diz respeito ao âmbito da autonomia privada dos indivíduos. O incesto, porém, é punido pela lei alemã (§ 173 do Código Penal)[215]. Nesse ponto, a legislação penal brasileira se mostra mais evoluída, uma vez que não pune conduta semelhante.
Por fim, (9) não se justifica a proteção penal de bens jurídicos de “abstração impalpável”, a respeito dos quais não é possível imaginar nada como um mínimo de concretude, como é o caso da “saúde pública” e da “paz pública”.[216] Deixando de lado a denominação do bem jurídico, é preciso que determinado pressuposto necessário para a convivência livre, igualitária e pacífica seja ofendido para que determinada conduta possa ser sancionada com pena privativa de liberdade.
3.6 A função dogmática do bem jurídico-penal
Enquanto a função de garantia do bem jurídico atua numa fase anterior à criação da norma penal, vinculando o legislador e limitando-o em sua escolha política, de modo a punir apenas aqueles comportamentos aptos a lesionar bens jurídico-penais, a função dogmática é direcionada ao intérprete, atuando após a criação da lei penal, no momento de sua aplicação. Segundo Zaffaroni, “esta funcción (transcendental en la interpretación de los tipos) implica la introducción del pensamiento teleológico en la construcción dogmática”.[217]
A função dogmática, também conhecida por teleológica ou interpretativa, estabelece parâmetros de interpretação dos tipos penais.[218] Isso significa que, por meio dessa função, o intérprete deverá averiguar se determinada conduta, apesar de formalmente típica, causou lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma. Caso a resposta seja negativa, a depender do caso concreto, poderá resultar na atipicidade da conduta.
Esse argumento foi utilizado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 194742-MS, de relatoria do Ministro Haroldo Rodrigues, em 17 de março de 2011. No caso, o paciente foi preso em flagrante pelo porte de arma de fogo desmuniciada. A ordem foi concedida sob o argumento de que o porte de arma sem munição não apresenta um mínimo de ofensividade concreta ao bem jurídico, não bastando a existência de perigo abstrato. Vejamos a ementa:
“AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. AUSÊNCIA. OFENSIVIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 1. A Sexta Turma desta Corte firmou compreensão de que não caracteriza o delito de porte de arma de fogo se esta se encontra desmuniciada, sem que exista munição ao alcance, porquanto o princípio da ofensividade em direito penal exige um mínimo de perigo concreto ao bem jurídico tutelado pela norma, não bastando a simples indicação de perigo abstrato. 2. Agravo regimental a que nega provimento.”[219]
No mesmo sentido, confiram-se os seguintes precedentes:
“DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA. ART. 16, CAPUT, DA LEI 10.826/03. ARMA COM NUMERAÇÃO RASPADA. ARTEFATO DESMUNICIADO. BEM JURÍDICO TUTELADO. AFETAÇÃO. AUSÊNCIA. 1. Não sendo o paciente denunciado nem condenado pela figura do parágrafo único, inciso IV, do art. 16 do Estatuto do Desarmamento, não se deve sustentar a tipicidade, invocando-se a circunstância de se tratar de arma com numeração raspada, encontrando-se o artefato desmuniciado. 2. Diante do princípio da ofensividade, não há falar em comportamento típico quando inexiste afetação do valor objeto de tutela. In casu, o paciente foi flagrado portanto arma de uso restrito sem munição, ausente, portanto, qualquer risco para a incolumidade pública. 3. Ordem concedida para, revogando o trânsito em julgado, trancar a ação penal n. 630/05, da 6.ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos/SP.”[220]
“HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. Atipicidade DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. No delito de porte ilegal de arma de fogo, mesmo comprovado por laudo pericial que a arma se encontrava apta a realizar disparos, encontrando-se desmuniciada, atípica é a conduta, por ausência de ofensa ao princípio da lesividade. 2. Na linha da orientação prevalente na Sexta Turma desta Corte, o fato de a arma de fogo estar desmuniciada afasta a tipicidade do delito de porte ilegal de arma de fogo. 3. Ordem concedida para, com base no art. 386, III, do CPP, absolver o paciente em relação à acusação que lhe é dirigida por porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (Processo nº 2006.001.003066-9 - 34ª Vara Criminal do Rio de Janeiro).[221]
É importante registrar que o entendimento acima jamais foi unâmine no Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de entendimento perfilhado exclusivamente pela 6ª Turma, de modo que o entendimento da 5ª Turma é em sentido oposto.[222]
O objetivo dessa exposição jurisprudencial é unicamente no intuito de demonstrar que a função dogmática do bem jurídico – a qual também pode ser assumida sob o prisma do princípio da ofensividade, como comentam os julgados – é utilizado pelos tribunais brasileiros na interpretação das normas penais, com aptidão, inclusive, para se concluir pela atipicidade de uma determinada conduta, embora formalmente típica (perfeita subsunção).
A função dogmática do bem jurídico também é utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça na aplicação do princípio da insignificância. A configuração do referido princípio depende da presença de alguns requisitos: (a) mínima ofensividade da conduta; (b) reduzíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; (c) nenhuma periculosidade social da ação e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.[223]
Isso significa que se determinada conduta não causar um mínimo de ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma e se satisfeitos os demais requisitos, a conduta é insignificante do ponto de vista penal e, portanto, atípica.
3.7 As funções individualizadora e sistemática do bem jurídico-penal
Assim como a função dogmática, a função individualizadora vincula o intérprete durante a aplicação da norma penal, sendo utilizado pelo juiz como critério para fixação da pena, considerando a maior ou menor “gravidade da lesão ao bem jurídico”.[224]
Tome-se como exemplo o crime de injúria racial, tipificada no artigo § 3º do artigo 140 do Código Penal. Caso o agente venha a proferir uma única palavra capaz de ofender o decoro da vítima, porém sem causar-lhe grandes consequências, o juiz poderá levar a baixa ofensividade ao bem jurídico “honra” para fixar a pena em patamares reduzidos. Por outro lado, se o agente profere reiteradamente diversas ofensas de cunho racial, de modo a ferir gravemente a dignidade da vítima, buscando diminui-la perante à sociedade, é certo que o juiz poderá, com base na gravidade da ofensa ao bem jurídico, fixar uma pena mais alta.
A função sistemática, ao contrário das demais mencionadas, não exerce qualquer espécie de limitação ao legislador ou tampouco ao intérprete, tendo em vista que se presta unicamente “como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal. Os próprios títulos ou capítulos da parte especial são estruturados com lastro no critério do bem jurídico em cada caso pertinente.”[225]
3.8 Bem jurídico-penal e Constituição Federal de 1988
Em sua origem, o Estado de direito remetia a um conceito liberal, principalmente caracterizado pela legalidade, divisão de poderes e baseado no primado dos direitos e garantias individuais. [226]
Nesse tipo de Estado, tanto governo quanto população estão submetidos ao império das leis (legalidade estrita), em contraposição ao Estado absolutista, no qual o poder estava concentrado nas mãos do déspota, que estava acima das leis, isto é, o “soberano não estava sujeito às leis positivas que ele próprio emanava”, conforme a máxima priceps legibus solutus[227].
Assim, nas palavras de Bobbio, “por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam.”[228] Já segundo Prado, o Estado de Direito é aquele “cujo ordenamento jurídico confere específica estrutura e conteúdo a uma comunidade social, garantindo os direitos individuais, as liberdade públicas, a legalidade e a igualdade formais.”[229]
O Estado de direito, dessa forma, busca principalmente proteger a sociedade do próprio Estado, limitando seus poderes por meio da divisão dos poderes e do princípio da legalidade estrita.[230]
As mencionadas características ainda se fazem presentes na atual concepção de Estado de Direito, porém, seu conceito evoluiu de modo a aprimorar seu conteúdo e, principalmente, para superar aquelas concepções distorcidas, exclusivamente formalistas e ausentes de qualquer conteúdo material, que serviam de fundamento legitimador dos regimes fascistas. [231]
O individualismo do Estado liberal e seu abstencionismo foram responsáveis por provocar algumas injustiças, fato que impulsionou os movimentos sociais a clamar pela necessidade de justiça social. Foi nesse contexto em que o individualismo clássico liberal precisou abrir espaço para a afirmação dos direitos sociais, surgindo, dessa maneira, o Estado Social,[232] marcado pelo intervencionismo.
Acontece que o Estado social, preocupado em superar as barreiras formais impostas pelo Estado liberal, acabou por afastar algumas das garantias liberais, que passaram a ser consideradas como benefícios burgueses. Isso abriu espaço para o advento de regimes totalitaristas tanto de ideologia esquerdista como direitista. [233]
José Afonso da Silva, nesse sentido, observa que a expressão “Estado Social” pode ser interpretada sob diversas perspectivas e servir a regimes antagônicos. Dessa maneira, tanto regimes democráticos quanto regimes totalitários, como é o caso da Alemanha nazista, da Itália fascista, da Espanha franquista e do Brasil durante a “Revolução de 30”, podem ser denominados “Estado sociais”.[234]
Por fim, evolui-se para o que hoje denominados Estado Social e Democrático de Direito. Trata-se de um tipo de Estado de cunho social, isto é, que tome partido e intervenha na sociedade, garantindo os direitos sociais e a justiça social, porém que encontre óbices nos limites formais estabelecidos pelo Estado de direito (legalidade, divisão de poderes, garantias individuais).[235]
No tocante ao cunho democrático, nas palavras de Luiz Regis Prado, o Estado pode ser compreendido no sentido de que os governantes “têm legitimação democrática, essencialmente à base de eleição por sufrágio universal de assembléia representativas, com a participação livre de uma pluralidade de partidos e com um mínimo de informação e debate político.”[236]
A Constituição Federal de 1988 adotou como modelo o “Estado democrático de direito” (art. 1º, caput), baseado na soberania popular, na medida em que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, § único, CF/88). O regime de Estado brasileiro, ademais, possui forte conteúdo social,[237] como veremos, caracterizando, assim, verdadeiro “Estado social e democrático de direito”.
O Estado brasileiro tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, considerado elemento aglutinador,[238] os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (CF/88, art. 1º, I, II, III, IV e V).
Tem como característica a separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário, os quais são independentes e harmônicos entre si (CF/88, art. 2º), enquanto que o Estado tem como objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e, por fim, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF/88, art. 3º).
Após delinear seus fundamentos e objetivos, o Título II da Constituição Federal consagra os direitos e garantias fundamentais, subdividos em direitos e deveres individuais e coletivos e em direitos sociais, de nacionalidade e políticos. Como bem observa Heloisa Estellita, a Constituição tem como ponto de partida a dignidade da pessoa humana, fundando-se como consequência no primado da liberdade e da justiça social.[239]
Isso significa que o Estado, objetivando garantir ao máximo a dignidade da pessoa humana (elemento aglutinador), deverá ao mesmo tempo assegurar aos cidadãos direitos individuais, tendo como norte a liberdade e promover políticas positivas para concretizar a isonomia e assegurar os direitos sociais.[240] Nas palavras de Prado, “são admitidas intervenções públicas no sentido de corrigir eventuais distorções – propiciando condições de liberdade e de igualdade que o indivíduo muitas vezes não pode conseguir isoladamente.”[241]
As distorções a que refere são aquelas causadas, por exemplo, por alguns tipos de formalismo. A igualdade formal ilustra bem a circunstância: todos são iguais perante à lei, porém isso não garante uma igualdade efetiva, material.
A satisfação da dignidade humana necessita principalmente da garantia da liberdade individual, bem jurídico cuja importância é inegável, ao lado da vida, igualdade, segurança e propriedade (CF/88, art. 5º, caput).[242] A Constituição vai mais além, pormenorizando a forma como esses bens jurídicos devem ser assegurados, conforme incisos I ao LXXVIII do artigo 5º, dentre eles destacam-se: a igualdade entre homens e mulheres; princípio da legalidade; proibição da tortura e de tratamento desumano e degradante; liberdade de pensamento; direito à indenização; liberdade religiosa; liberdade de consciência; liberdade de expressão; inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; inviolabilidade do domicílio; inviolabilidade da correspondência; livre exercício do trabalho e da profissão; direito à informação; direito à propriedade; direito à herança; defesa do consumidor; direito de petição; direito de obtenção de certidões; acesso à justiça; princípio da legalidade penal; irretroatividade da lei penal; inafiançabilidade do racismo, da tortura e do tráfico de entorpecentes; proibição de penas vexatórias, desumanas ou cruéis; direito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal; proibição da prisão civil por dívidas; dentre outros.
Estellita observa, ademais, que o princípio da dignidade humana é responsável por nortear a atividade do Estado de modo a implementar políticas públicas que satisfaçam os objetivos do Estado de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Para isso, é imprescindível que sejam assegurados aos cidadãos todas as condições que viabilizem os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, consistentes na educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.[243]
Em que pese a irrefutável importância constitucional dos direitos e garantias de cunho social, há quem afirme que “as garantias e direitos individuais têm valor preeminente, sobrepondo-se aos direito e garantias sociais”,[244] argumentando, para tanto, que os direitos e garantias individuais foram elevadas à categoria de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, CF/88). Por outro lado, o mesmo não ocorre com os direitos sociais. Em outras palavras, os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos sob o pretexto de se efetivar direitos coletivos. [245] Isso, porém, não significa que os direitos coletivos e difusos, p. ex., meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF/88), não devem ser assegurados.
Para alcançar uma noção material-constitucional de bem jurídico, deve-se partir dos princípios e dos direitos e garantias individuais e sociais expostos acima e delineados principalmente nos artigos 1º ao 6º da Constituição Federal.
Essa análise inicial, permite afirmar que o Estado Democrático de Direito tem como norte o conceito de pessoa, consubstanciado no princípio da dignidade humana. Esse princípio é alcançado, principalmente, dentre outras circunstâncias, através da garantia da liberdade e da igualdade. A liberdade diz respeito à autodeterminação do homem na sociedade e de sua inviolabilidade, enquanto que a igualdade se consubstancia em garantir a todos os homens a mesma dignidade e mesmos direitos e, num viés negativo, na abstenção de dar tratamento diferenciado.[246]
Isso significa que o homem não pode ser funcionalizado ou instrumentalizado, tendo em vista que a pessoa humana constitui um fim em si mesma. É dizer, o ordenamento jurídico, as instituições e o Estado servem aos homens no sentido de assegurar seus direitos e garantias fundamentais.
A afirmação de que o homem é o fim primeiro do Direito e não pode ser funcionalizado – deve-se preservar seus direitos e garantias individuais – é imprescindível para se evitar o cerceamento desses direitos e garantias sob o pretexto de viabilizar os direitos sociais. Como demonstrado, os direitos individuais são capazes de proteger o indivíduo do poder do Estado, porém não viabilizam uma sociedade materialmente justa e igualitária. Nessa medida, os direitos individuais e sociais devem funcionar como contrapesos, de modo a (a) proteger o cidadão dos abusos estatais, garantindo-lhe liberdade, igualdade e autonomia e, ao mesmo tempo, (b) promover uma sociedade materialmente justa e igualitária, em que todos os indivíduos tenham efetivo acesso à educação, saúde, moradia, alimentação, trabalho, segurança, lazer etc.
A esse respeito, José Afonso da Silva afirma que os direitos sociais garantem melhores condições de vida aos mais necessitados, de modo a viabilizar condições materiais para se alcançar a igualdade real:
(...) podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas elo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.[247]
Não há maiores dificuldades em se identificar os bens jurídico-penais clássicos, pois, além de estarem expressamente descritivos na Constituição Federal, não existe dissenso sobre a necessidade de o Estado, por meio do direito penal, proteger a vida, a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana, a honra, a liberdade de expressão, a propriedade etc.
Contudo, o mesmo não ocorre com os chamados bens jurídicos supra-individuais, tutelados pelo direito penal secundário ou acessório. Nesses casos, o bem jurídico protegido é melhor visualizado a partir da criação do tipo penal.[248] Porém, seu fundamento sempre deverá encontrar respaldo constitucional como tem-se demonstrado.
Assim é que esses bens jurídicos supra-individuais, por exemplo, a ordem tributária, o meio ambiente, as relações de consumo, a ordem econômico-financeira, a economia popular, dentre outros, são bens jurídicos que, de acordo com a Constituição, merecem proteção penal. A necessidade de intervenção penal nesses casos, todavia, ao contrário do que ocorre com os bens jurídicos clássicos, não está expressa na Carta Magna, mas decorre principalmente dos princípios constitucionais delineados a partir da análise dos artigos primeiro ao sexto.
Nesse ponto, os direitos sociais possuem especial relevância, tendo em vista que muitos desses direitos somente serão viabilizados por meio da proteção penal de outros bens jurídicos supra individuais. O direito à saúde (art. 6º, caput, da Constituição) somente será viabilizado e garantido aos cidadãos se o Estado possuir receita financeira suficiente para construir hospitais, pronto socorros, comprar ambulância, contratar médicos e enfermeiros. Para isso, é imprescindível que o Estado proteja a ordem tributária, de modo que a arrecadação seja a mais eficaz possível, garantindo assim receita suficiente para investir na saúde. É como assinalava Prado:
A tutela penal da ordem tributária se encontra justificada pela natureza supraindividual, de cariz institucional, do bem jurídico, em razão de que são os recursos auferidos das receitas tributárias que dão o respaldo econômico necessário para a realização das atividades destinadas a atender às necessidades sociais. Tal assertiva é corroborada pela proteção constitucional conferida à ordem econômica (art. 170 da CF).[249]
Antonio Ribeiro Lopes afirma que os mecanismo de intervenção jurídico-penal devem ser utilizados visando a proteção da dignidade humana e quando estritamente necessários “à paz e à conservação sociais, ou seja à própria defesa dos direitos e liberdades e garantias em geral, que são a base do Estado”.[250] Estellita, porém, observa que:
A necessária recondução à pessoa humana não implica dizer, todavia, que somente os valores individuais poderão ser objeto da tutela penal. Também os valores coletivos, na medida em que permitam tal recondução, poderão e, às vezes, deverão ser objeto de tutela penal.[251]
Como delineado, as teorias constitucionais buscam o conteúdo material do bem jurídico na Constituição, de modo que o legislador deve encontrar no bloco constitucional, i.e, nos princípios, fundamentos e objetivos quais os bens jurídicos merecedores de proteção penal. Luis Greco, contudo, suscita dúvidas sobre como a ideia de bem jurídico com arrimo constitucional poderia exercer uma função limitadora, mormente em se tratando de uma Constituição analítica, como a do Brasil, que faz referência a um amplo rol de valores.[252] A criminalização do homossexualismo, por exemplo, poderia ser defendida, já que a Constituição possui dispositivos tutelando a família (art. 226 et seq.) e a moralidade (art. 221, IV). Contudo, prontamente afasta essa possibilidade demonstrando que a mesma Constituição veda discriminações por motivos de raça ou origem e prescreve que todos são iguais perante a lei, sem qualquer tipo de distinção, além de garantir aos cidadãos a liberdade, privacidade e intimidade, valores estes que devem se sobrepor à tutela da família e da moralidade.[253]
Observe-se que os argumentos utilizados para justificar ou não a criminalização de uma conduta foram exclusivamente baseados em preceitos constitucionais. Por essa razão, Greco indaga se a teoria do bem jurídico não seria prescindível, pois seria bastante nortear a criação de normas penais segundo os valores da Constituição.
Parece-me que grande parte dos defensores do conceito de bem jurídico, especialmente entre nós, o utiliza como sinônimo desta descrição “valor acolhido ou não vedado pela Constituição”, apesar de isso fazer do conceito de bem jurídico algo dispensável. Não seria, portanto, mais adequado renunciar ao conceito de bem jurídico, falar unicamente em tutela de valores constitucionais, e com isso simplificar consideravelmente a teoria geral do direito penal? [254]
Greco contesta negativamente o questionamento afirmando que, não obstante o conteúdo material do bem jurídico deva ser auferido da Constituição, ele é obrigatoriamente mais restrito do que os valores constitucionais, haja vista que “nem tudo que a Constituição acolhe em seu bojo pode ser objeto de tutela pelo direito penal”.[255] A solução, segundo Greco, reside no princípio da subsidiariedade. Além disso, é imprescindível que o bem tutelado seja considerado de suprema relevância que justifique o rigor da sanção criminal.[256]
Dessarte, para não incidir no equívoco de se permitir a criminalização de condutas que atentem contra valores que, malgrado sejam protegidos constitucionalmente, não justificam a intervenção penal, o legislador deve ter como paradigma somente aqueles valores constitucionais mais importantes e fundamentais, i.e, os direitos individuais, sociais e coletivos e os objetivos, princípios e fundamentos da Constituição da República.
Sem embargo, esses valores, por si só, não são suficientes, pois somente podem ser elevados à categoria de bens jurídicos merecedores de tutela penal quando forem imprescindíveis à coexistência social pacífica, justa e igualitária e na medida em que constituam “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade”,[257] respeitando-se sempre o princípio da subsidiariedade, ou seja, restringindo a utilização dos mecanismos jurídico-penais somente quando outros meios de repressão menos gravosos não seja eficazes.4 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL
Os princípios penais fundamentais que trataremos a seguir possuem assento constitucional, são inerentes à ideia de Estado democrático e social de direito e possuem amparo principalmente no artigo 5º da Constituição Federal, seja expressa ou implicitamente.[258]
Esses princípios, baseados nas concepções de igualdade e liberdade, garantiram ao direito penal uma atuação mais branda e menos cruel – em oposição ao direito penal vigente nos Estado absolutistas – e foram responsáveis por instituir limites ao poder de ingerência do Estado. Como observa Bitencourt, muitos desses princípios ganharam previsão expressa em códigos penais de países democráticos e assento constitucional, consagrando-se como garantia máxima dos direitos fundamentais do indivíduo.[259]
Rogério Greco afirma o caráter normativo dos princípios, por se tratarem de normas com “alto nível de generalidade e informadoras de todo o ordenamento jurídico, com capacidade, inclusive, de verificar a validade das normas que lhe devem obediência.”[260] ainda que tais princípios sejam implícitos ou não positivados. Isso porque, na atual fase pós-positivista, os princípios exercem primazia sobre todo o ordenamento jurídico, de modo que, na seara penal, a produção legislativa só será válida quando não for discrepante aos princípios fundamentais.
4.1 Princípio da ofensividade ou exclusiva proteção de bens jurídicos[261]
Durante a idade média, Estado e Igreja se confundiam. A inquisição foi responsável por perseguir, condenar e executar sumariamente pessoas que pensavam de forma diferente da Igreja, as quais eram taxadas de hereges.[262]
No Brasil, antes do Código Criminal do Império de 1830, aplicavam-se no âmbito penal as Ordenações Filipinas (Livro V), promulgada por Filipe II, em 1603 e revalidadas por D. João IV em 1643. As ordenações não faziam distinção entre direito, moral e religião[263] e tinham como marca uma ampla criminalização com severas punições, com o predomínio da pena de morte, açoitamento, amputação de membros, as galés, degredo, dentre outras penas cruéis.[264] Além disso, a referida lei repressiva previa a punição dos “hereges, dos apóstatas, dos feiticeiros, dos que renegavam ou blasfemavam contra Deus ou contra os santos da Igreja Católica, dos que benziam cães ou bichos sem a autorização das autoridades”.[265] A vinculação com a religião era tão visível que o vocábulo “pecado” era por diversas vezes utilizado no texto legal, como se observa no título n. XIII: “Dos que commetem pecado de sodomia, e com alimárias” (sic) e em seu respectivo tipo penal:
Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia per qualquer maneira commetter, seja queimado, e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos os seus bens sejam confiscados para a Corôa de nossos Reinos, postoque tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles e infames, assi como os daquelles que commettem crime de Lesa Magestade. (sic)[266]
Como se observa, a punição era totalmente dissociada da ideia da proteção exclusiva de bens jurídicos, já que se criminalizava qualquer comportamento supostamente contrário à moral e aos ideais da religião católica. O desenvolvimento do Iluminismo deu início a diversas mudanças sociais, principalmente no sentido de separar Estado e religião e, consequentemente, dissociar direito e moral. Dessa forma, aquelas condutas meramente imorais, teoricamente, não mais poderiam ser criminalizadas. Nesse contexto, Luigi Ferrajoli afirma que o princípio da lesividade tem suas raízes no Iluminismo e que só o dano causado a terceiros justifica a imposição de sanções penais:
Se trata de um principio que surge ya en Aristóteles y Epicuro y que es denominador común a toda la cultura ilustrada: de Hobbes, Pufendorf y Locke a Beccaria, Hommel, Bentham, Pagano y Romagnosi, quienes ven en el daño causado a terceros laz razones, los criterios y la medida de las prohibiciones y de las penas. Sólo así las prohibiciones, al igual que las penas, pueden ser configuradas como instrumentos de minimización de la violencia y de tutela de los más débiles contra los ataques arbitrarios de los más fuertes en el marco de una concepción más general del derecho penal como instrumento de protección de los derechos fundamentales de los ciudadanos.[267]
A partir desse momento o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos (princípio da lesividade ou ofensividade) começa a se afirmar no pensamento jurídico-penal. Nilo Batista aduz que “no direito penal, à conduta do sujeito autor do crime deve relacionar-se, como signo do outro sujeito, o bem jurídico” [268] e, por essa razão, “à conduta puramente interna, ou puramente individual – seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal.”[269]
Partindo dessas premissas, Nilo Batista desenvolve quatro consequências do princípio da lesividade: (a) proibição de incriminação de atitudes meramente internas; (b) proibição da incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; (c) proibição de incriminação de simples estados ou condições existenciais[270] e, por fim, (d) proibição de incriminação de condutas desviadas que não afetam qualquer bem jurídico.[271]
Rogério Greco sintetiza as premissas de Batista de forma bastante esclarecedora: “o Direito Penal só pode, de acordo com o princípio da lesividade, proibir comportamentos que extrapolem o âmbito do próprio agente, que venham a atingir bens de terceiros.”[272] No direito anglo-saxão, essa diretriz tem origem no “harm principle to others” (princípio de dano ao outro), formulado por John Stuart Mill, em 1859, com a publicação da obra “On liberty”:
Segundo esse princípio, o único motivo pelo qual a humanidade autoriza, individual ou coletivamente, a interferência na liberdade de agir de qualquer de seus membros é a auto-proteção. O único propósito pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é para evitar dano a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é autorização suficiente. Ele não pode ser compelido legitimamente a fazer ou se abster de fazer algo porque será melhor para ele, porque o fará mais feliz, porque, na opinião dos demais, fazê-lo seria sábio, ou até mesmo correto. Essas são boas razões para contestá-lo, para serem debatidas, persuadi-lo ou para pedir-lhe que aja de uma determina maneira, mas não para coagi-lo, ou infligir-lhe algum mal caso ele aja de maneira diversa. Para que isso se justifique, a conduta que se espera, para que seja possível detê-lo, deve produzir um mal a outrem. A única parte da conduta de algum indivíduo, pela qual ele é responsável perante a sociedade, é aquela que tenha relevância perante os demais. Na parte que diz respeito unicamente a ele próprio, sua independência é, por direito, absoluta. Sobre ele mesmo, sobre seu corpo e sua consciência, o indivíduo é soberano. (Tradução livre)
“That principle is, that the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively, in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection. That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilized community, against his will, is to prevent harm to others.His own good, either physical or moral, is not a sufficient warrant. He cannot rightfully be compelled to do or forbear because it will be better for him to do so, because it will make him happier, because, in the opinions of others, to do so would be wise, or even right. These are good reasons for remonstrating with him, or reasoning with him, or persuading him, or entreating him, but not for compelling him, or visiting him with any evil in case he do otherwise. To justify that, the conduct from which it is desired to deter him must be calculated to produce evil to some one else. The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign.”[273]
Essas premissas e conclusão são praticamente unânimes na doutrina jurídico-penal moderna, de modo que não restam dúvidas de que a função primordial do direito penal resume-se à exclusiva proteção de bens jurídico-penais e que os instrumentos penais somente podem ser empregados na medida em que outras formas de intervenção estatal menos gravosas não sejam eficazes.
Isso porque, como afirmado, “não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão (princípio da lesividade ou ofensividade) a um bem jurídico determinado.”[274] Por essa razão, afirmam os estudiosos do direito penal que a intervenção penal só é legítima quando estritamente necessária.[275]
A vinculação do direito penal à proteção exclusiva de bens jurídicos é necessária para limitar o arbítrio do legislador e impedir, dessa forma, a criminalização desnecessária – e às vezes com objetivos duvidosos – de certas condutas que não colocam em risco a coexistência social pacífica, justa e igualitária; e ainda para evitar a criação de normas penais que não reflitam os princípios constitucionais.
Por isso, no momento de criação de normas penais, o legislador deve proibir somente aquelas condutas que (a) imprimam lesão a bens de terceiros; (b) ofendam bens jurídicos essenciais à coexistência social pacífica justa e igualitária e (c) que tenham relevância constitucional. “Só assim a noção de bem jurídico pode desempenhar uma função verdadeiramente restritiva.”[276]
Com base nos fundamentos expostos e, principalmente, nas assertiva de que “diante da ausência de lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico não se pode falar em fato ofensivo típico”[277], há quem afirme que os crimes de perigo abstrato seriam in totum inconstitucionais.
Luis Greco rechaça essa tese. Para isso, afirma que a problemática em torno da (in)constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato não deve ser analisada sob o prisma da teoria do bem jurídico, mas sim a partir da ideia da “estrutura do delito”, pois a teoria do bem jurídico investiga quais os bens merecedores de tutela penal, enquanto a “estrutura do delito” estuda como tutelar esses bens.[278]
Greco critica os defensores da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, pois afirma que poucos ou nenhum deles se preocupa em delimitar o conceito de “perigo abstrato” e “perigo concreto.”[279] Essa definição depende da perspectiva de análise. A doutrina majoritária alemã parte de um estudo ex post, i.e, levando em consideração as circunstâncias do caso concreto.[280]
Existem duas correntes sobre o conceito de perigo concreto. Horn é responsável pela elaboração de uma definição de natureza ontológica que acabou por não agregar muitos seguidores. Citando Horn, Luis Greco registra que essa corrente afirma “existir perigo concreto quando a não-ocorrência do resultado não é cientificamente explicável por meio de uma lei natural”.[281]
A segunda vertente (majoritária) assume um caráter normativo, refutando qualquer conceito que necessite buscar dados ônticos do mundo material. Segundo essa teoria, nas palavras de Luis Greco, citando Schünemann, “estaremos diante de um perigo concreto somente quando não se pudesse ser confiado na não-ocorrência do resultado.”[282] Em outras palavras: “o bem jurídico terá passado por perigo concreto quando a inocorrência da lesão parece mera obra do acaso, quando um homem racional não pudesse contar com um final feliz para os acontecimentos.”[283]
Apesar de reconhecer o reconhecimento e aceitação dessa última concepção no meio jurídico-penal, Luis Greco tece algumas críticas sobre a afirmação de que a inocorrência da lesão seria obra do mero acaso. Utiliza para tanto o exemplo do condutor embriagado[284] que faz uma ultrapassagem pela direita e apenas não colide com um motociclista, pois este, por ser competidor de motocross, esquivou-se sem qualquer dificuldades, evitando um acidente. Segundo Greco, a não-ocorrência do resultado, partindo de uma análise ex post, decorreria das habilidades do motociclistas, e não do mero acaso.[285]
Por outro lado, Luis Flávio Gomes advoga que o tipo “não exige perigo concreto para pessoa determinada, ao contrário, trata-se de perigo a um número indeterminado de pessoas (perigo indireto ou comum, que entraram no raio de ação da conduta (...)”.[286] No mesmo sentido entende Damásio de Jesus.
Desse modo, tem-se que os defensores da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato são, geralmente, seguidores da vertente que analisa o perigo de uma perspectiva ex ante[287]. Sob esse prisma, no caso concreto mencionado acima haveria perigo concreto, já que a habilidade do motociclista, responsável por afastar a possibilidade de ocorrência do resultado, não seria levada em consideração. Por essa razão, Luis Greco afirma que o critério utilizado por este setor da doutrina tem como consequência ampliar demasiadamente o conceito de perigo concreto.[288]
A crítica formulada por Greco, portanto, é no sentido de que, diante desse conceito amplo de perigo concreto, muitas condutas se adequariam aos tipos penais descritos em leis (para a doutrina seguidora da perspectiva ex post seriam condutas atípicas). Por essa razão, a solução encontrada por esse setor da doutrina é julgar deliberadamente inconstitucionais os crimes de perigo abstrato.[289]
Outra questão abordada por Luis Greco, no artigo “Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato: Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 49, trata dos falsos bens jurídicos coletivos.
Segundo Greco, muitos dos bens jurídicos coletivos, como é o caso da saúde pública, paz pública, incolumidade pública, não passam da soma de diversos bens jurídicos individuais. Por essa razão, refutando a existência desses bens coletivos, tem-se que diversos delitos deixariam de ser crimes de perigo concreto, para serem crimes de perigo abstrato.[290]
Propõe como exemplo o crime de envenenamento de água potável, ou de substância alimentícia ou medicinal (art. 270). Considerando a inexistência do bem jurídico coletivo “incolumidade pública”, a verdade é que esse delito é de perigo abstrato aos bens individuais “vida” e “integridade física”. Apesar disso, ninguém questiona a legitimidade desse tipo penal.[291] Com isso, Greco demonstra que não existe problema de legitimidade ou constitucionalidade nesses crimes.
A conclusão a que chega é que não existe uma solução global e cada delito deve ser analisado em sua particularidade, partindo-se da “estrutura do delito”, para tentar-se “formular critérios para distinguir os crimes de perigo abstrato legítimos dos ilegítimos.”[292]
Seguindo essa proposta, Wohlers desenvolve três espécie de delitos de perigo abstrato: (a) os delitos de ação concretamente perigosa; (b) delitos de cumulação e (c) delitos de preparação.[293]
Os delitos de ação concretamente perigosa referem-se aos crimes que proíbem condutas não mais controláveis pelo agente e, por isso, evidentemente perigosas para o bem jurídico.[294] Essa construção explica e justifica a necessidade de punição de determinados crimes de perigo abstrato. Se agindo de determinada forma o agente não mais possui controle de suas ações, é fácil constatar que o bem jurídico protegido pode ser ofendido a qualquer momento e, por essa razão, a proteção penal antecipada é necessária. Essa proteção antecipada se justifica principalmente quando o bem jurídico em risco possui especial importância, como é o caso da vida.
Utilizando esses argumentos, i.e, diante da impossibilidade de o agente controlar as consequências de sua ação, embora concretamente não exista risco a um bem jurídico, Claus Roxin afirma que os crimes de perigo abstrato não podem ser rechaçados deliberadamente. Um exemplo: o delito de embriaguez ao volante (§316 StGB) é necessário e está devidamente justificado, uma vez que, diante de condutores ébrios, a atuação Estatal preventiva só logra êxito quando nenhum dano foi ainda causado.[295] Isso significa que, diante da importância dos bens jurídicos vida e integridade física, o Estado não pode esperar que alguém morra ou seja gravemente lesionado para agir.
Un delito como la conducción bajo el efecto de bebidas alcohólicas §316 StGB) –por sólo poner el caso más frecuente y simple – es necesario y está justificado. Porque frente a los conductores ebrios sólo se puede reaccionar con éxito en el momento en que aún no ha pasado nada. La descripción de la acción típica está descrita con claridad, el bien jurídico es reconocible para cualquiera (protección de la integridad, de la vida y de valores importantes) y el peligro es de una clase que en cualquier momento puede realizarse.[296]
Por exemplo, a condução de um automóvel em estado de embriaguez é punível também quando inclusive não ocorreu absolutamente nada. (...) O problema inerente a estas normas é que o comportamento culpado é que o comportamento culpado está ainda bastante distante da verdadeira lesão de bens jurídicos. Do conceito de proteção de bens jurídicos se infere, então, somente que, tratando-se de uma antecipação considerável da punibilidade, necessita-se fundamentar, especialmente porque isto é necessário para a proteção efetiva do bem jurídico. A fundamentação pode contribuir no primeiro caso (porque um condutor embriagado já não domina seu comportamente suficientemente, de modo que em cada momento pode ocorrer algo).[297]
Nas palavras de Luis Greco, citando Wholers, “tais proibições só são legitimáveis, se existirem especiais fundamentos que justifiquem o dever antecipado de responsabilizar-se pela integridade do bem jurídico ou pelo comportamento de terceiros”.[298]
Partindo dessas premissas, Greco refuta as afirmações globais no sentido de que os crimes de perigo abstrato seriam in totum ilegítimos ou inconstitucionais e propõe uma análise pormenorizada e cuidadosa da multiplicidade de crimes de perigo abstrato, para formular novos critérios capazes de distinguir as incriminações legítimas das ilegítimas, observando-se sempre o princípio da subsidiariedade, proporcionalidade e proibição de incriminação de bagatelas.
4.2 Princípios da intervenção mínima ou subsidiariedade (ultima ratio)
Assim como o princípio da lesividade, o princípio da intervenção mínima tem suas origens no desenvolvimento do movimento iluminista como reação a um sistema penal extremamente abrangente e duramente repressor.[299]
Em oposição a esse sistema opressor, Cesare Beccaria publicou a obra “Dos delitos e das penas”, na qual assinalava que “as penas que vão além da necessidade de manter o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza.”[300] Além disso, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, prescrevia no artigo 8º que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias”. A partir dessas diretrizes, a doutrina jurídico-penal passou a desenvolver o que denominamos hoje “princípio da intervenção mínima”.
O princípio da intervenção mínima limita e orienta o legislador no momento da produção de normas penais,[301] de modo que os mecanismos de intervenção jurídico-penais somente devem ser empregados na proteção dos “bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens”[302] e como ultima ratio legis, ou seja, quando outras formas de intervenção estatal menos gravosas para o indivíduo não sejam eficazes. A justificativa para isso reside no fato de que a sanção criminal ofende um dos bens jurídicos de maior importância: a liberdade individual. Disso decorre dizer que o direito penal tem natureza subsidiária.
Nesse sentido, Roxin afirma que “como el derecho penal posibilita las más duras de todas las intromisiones estatales en la libertad del ciudadano, só se le puede hacer intervenir cuando otros medios menos duros no prometan tener un éxito suficiente.”[303] Mir Puig aduz que por trás desse princípio há a convicção de que é necessário proteger o cidadão do poder coercitivo do Estado e isso só é possível quando a aplicação do direito penal é limitada aos casos estritamente necessários, i.e, quando inevitável. A justificativa empregada por Mir Puig é que, num Estado social, objetiva-se primordialmente um intervencionismo estatal voltado para o assistencialismo e promoção do bem-estar, ao passo que a intervenção repressiva, quando não obedece à imprescindibilidade, é rechaçada. [304]
Francisco Muñoz Conde, por seu turno, ressalta que “el derecho penal sólo debe intervenir en los casos de ataques muy graves a los bienes jurídicos más importante. Las pertubaciones más leves del orden jurídico son objeto de otras ramas del derecho.”[305] Por essa razão, quando as medidas civis ou administrativas forem suficientes para prevenir determinado comportamento indesejado ou para reestabelecer a ordem jurídica violada, a utilização do direito penal é ilegítima.[306]
Roxin adverte que a utilização imprudente do direito penal, i.e, quando outros meios mais suaves de intervenção bastem para reinstaurar a ordem jurídica, além de ser ilegítima, causa um efeito contrário capaz de perturbar a paz jurídica, pois “nada favorece tanto a criminalidade como a penalização de qualquer bagatela.”[307] Recrudescendo essa assertiva, Prado afirma que a inflação legislativa penal acarreta ao sistema penal uma função meramente simbólica, com efeitos negativos perante a sociedade[308]; falhando em sua missão primordial: tutelar bens jurídicos.
Roxin traz como exemplo o inadimplemento contratual. Trata-se de uma conduta indesejada, que o direito procura coibir. Porém, as medidas cíveis e a execução forçada são meios adequados para buscar o ressarcimento do lesado, de modo que a intervenção penal torna-se inadequada. Por outro lado, quando alguém utiliza-se de uma fraude para obter vantagem pecuniária ilícita em prejuízo de outrem numa negociação, o bem jurídico patrimônio é afetado de forma tão consistente que os instrumentos penais de intervenção tornam-se necessários; entra em cena e figura típica do estelionato (CP, art. 171).[309]
O referido penalista alemão preconiza três principais medidas alternativas que devem ser utilizadas como alternativa à imposição de sanção privativa de liberdade. A primeira delas consiste nas indenizações do direito civil, a segunda nos mecanismos do direito administrativo: controles, determinações de segurança, revogações de autorizações e permissões, proibições e fechamento de empresas; e por fim, descriminalizar algumas condutas impondo-lhes a qualidade de contravenções sujeitas a penas pecuniárias.[310]
Com relação às medidas de direito público a que se refere Roxin, tem-se que o direito administrativo, por meio do poder de polícia, é mais célere e eficaz para a manutenção ou restauração da ordem jurídica, de modo que os mecanismos penais tornam-se prescindíveis[311]. O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos fundamenta esse entendimento, tendo em vista que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “o Poder Público pode compelir materialmente o administrado, sem precisão de buscar previamente as vias judiciais, ao cumprimento da obrigação que se impôs e exigiu.”[312]
Como se observa, o direito administrativo dispõe de mecanismos imediatos e eficazes para alterar materialmente o mundo corpóreo – através da imposição forçada do administrado – e tutelar determinado bem jurídico ou interesse social, ao passo que qualquer sanção aplicada pelo direito penal deve vir precedida de um longo e demorado processo judicial, com ampla defesa e contraditório.[313]-[314]
Tomemos como exemplo um estabelecimento que tem como atividade a comercialização de laticínios e que exponha à venda produtos em condições impróprias ao consumo, p. ex, com prazo de validade vencido (CDC, art. 18, § 6º, I).
O responsável pelo estabelecimento, ciente dessa situação e agindo dolosamente, incorre no crime previsto no artigo 7º, inciso IX da Lei 8.137/90, cuja pena cominada é de detenção de dois a cinco anos ou multa.Nesse caso específico, fica bem visível que a imediata interdição do estabelecimento pela vigilância sanitária, a cassação do alvará de funcionamento e a aplicação de uma significativa multa são medidas muito mais eficazes e rápidos na proteção do consumidor, enquanto que o direito penal não surte o mesmo efeito imediato, além de ser dispensável e mais gravoso.
À título de esclarecimento, há quem considere o princípio da intervenção sob dois enfoques distintos. Em um primeiro momento, a intervenção mínima diz respeito à finalidade do direito penal de proteger unicamente os bens jurídicos mais importantes, imprescindíveis para uma vida em sociedade livre, justa e igualitária. Esse primeiro enfoque remete ao princípio da proteção exclusiva de bens jurídicos e à teoria do bem jurídico. Já em sua segunda vertente, o princípio da intervenção mínima diria respeito ao caráter subsidiário do direito penal[315], sendo este um princípio corolário. Por outro lado, há quem trate o princípio da intervenção mínima e o caráter subsidiário do direito penal como um só princípio, como é o caso de Luiz Regis Prado[316] e Cezar Roberto Bitencourt.[317]
Em que pese o amplo e inequívoco reconhecimento deste princípio pela doutrina jurídico-penal, Nilo Batista atenta para o fato de que este princípio não está expressamente descrito na Constituição ou no Código Penal, mas isso não retira sua força vinculante de parâmetro norteador do legislador, já que ele decorre da “compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático.”[318]
Apesar da importância desse princípio, os legisladores contemporâneos têm lançado mão dos instrumentos de intervenção penal reiteradamente e com objetivos muitas vezes questionáveis, gerando uma inflação legislativa penal indesejável. Isso tem como consequências: (a) a perturbação da paz jurídica e o aumento da criminalidade (Roxin)[319], (b) o descrédito do direito penal e da pena criminal, diminuindo-lhes a força intimidadora (Bitencourt)[320], (c) a desqualificação do direito penal a uma função meramente simbólica e negativa (Prado) [321] e, por fim, (d) potencializa as consequências maléficas do direito penal, como o efeito estigmatizante da pena e dos reflexos da condenação (Rogério Greco)[322].
Do que foi exposto, conclui-se que o direito penal só deve ser empregado para proteger os bens jurídicos mais importantes, necessários à manutenção de uma vida em sociedade livre, justa e igualitária e somente quando outros mecanismo menos gravosos para a liberdade individual não sejam eficazes.
4.3 Princípio da fragmentariedade
O princípio da fragmentariedade está intimamente relacionado ao princípio da intervenção mínima (subsidiariedade), de forma que se afirma ser aquele corolário deste.[323] Em que pese esta estreita relação, a distinção entre eles não é de difícil compreensão.
Enquanto dos princípios da ofensividade e da subsidiariedade decorre que o direito penal deve se limitar a tutelar bens jurídicos de especial relevância contra ataques de terceiros, somente na medida em que outras formas de intervenção menos gravosas não sejam eficazes; do princípio da fragmentariedade decorre que os bens jurídicos somente podem ser protegidos pelo direito penal contra ofensas especialmente graves direcionadas contra bens jurídicos de extrema importância.[324] Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt:
Nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como nem todos os bens jurídicos são por eles protegidos. O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, deccorendo daí so seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica.
No mesmo sentido, a respeito da natureza fragmentária, Roxin enfatiza que o direito penal somente tutela uma parcela dos bens jurídicos, porém não globalmente, mas unicamente os protege contra formas concretas de ataques. Essa limitação punitiva, complementa, decorre do princípio da proporcionalidade.[325]
Seguindo o mesmo raciocínio, Muñoz Conde é categórico ao afirmar que não são todos os bens jurídicos que são protegidos pelo direito penal, nem tampouco são proibidas todas as agressões direcionadas aos bens protegidos, pois o direito penal somente serve para “castigar las acciones más graves contra los bienes jurídicos más importantes, de ahí su carácter ‘fragmentário’”,[326] ou seja, o direito penal preocupa-se em proteger apenas um “fragmento” dos bens mais importantes.
Damásio de Jesus sintetiza o referido princípio de forma bem esclarecedora, motivo pelo qual é válido transcrever suas palavras:
O Direito Penal não protege todos os bens jurídicos de violações: só os mais importantes. E, dentre estes, não os tutela de todas as lesões: intervém somente nos casos de maior gravidade, protegendo um fragmento dos interesses jurídicos. Por isso é fragmentário.[327]
Nas legislações modernas, aduz Conde, o princípio da fragmentariedade se desenvolve sobre três vertentes: (a) protegendo o bem jurídico somente contra ataques especialmente graves e excluindo, em alguns casos, as condutas culposas; (b) tipificando apenas uma partes das condutas que, em outros ramos do direitos, são consideradas ilícitas e, por fim, (c) deixando de punir condutas meramente imorais.[328]
Com relação à primeira vertente, a qualidade do bem que lhe coloca como merecedor de tutela penal depende do valor que lhe é atribuído por determinada cultura. Por exemplo, em países orientais, o bem jurídico “honra” tem especial relevância. Conde, porém, adverte para o risco de determinados interesses de grupos minoritários, que não guardam qualquer relação com a comunidade em geral, serem elevados à categoria de bem jurídico-penal.[329]
Foi Biding quem introduziu a ideia de fragmentariedade no meio jurídico-penal ao registrar que o direito penal constitui um “sistema descontínuo de ilicitude”, [330] uma vez que não abrange a proteção de todos os bens do indivíduo, mas apenas parte deles.[331] Por esse motivo, “esse princípio impõe que o Direito Penal continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente”.
Nilo Batista observa que é incorreto conjeturar que, diante dessa fragmentariedade, a legislação e a interpretação deveriam se responsabilizar por garantir uma totalidade de abrangência do sistema penal.[332] Isso não significa, no entanto, como adverte Bitencourt citando Pallazo, “deliberada lacunosidade na tutela de certos bens e valores e na busca de certos fins, mas antes limites necessários a um totalitarismo de tutela, de modo pernicioso para a liberdade.”[333]
4.4 Princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso
O princípio da proporcionalidade ganha notoriedade na seara penal a partir do desenvolvimento do Iluminismo. Cesare Beccaria já assinalava que os castigos devem ser proporcionais aos delitos.[334] Em sentido semelhante, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 prescrevia que “a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito” (art. 12).
Em que pese essas construções teóricas, Ingo Sarlet esclarece que o princípio da proporcionalidade jamais foi observado durante o regime do nacional-socialismo, remetendo a esse regime para contextualizar o desenvolvimento do referido princípio.[335]
A Alemanha nazista, nesse contexto histórico, foi responsável pela execução de aproximadamente sessenta mil penas de morte, milhares de internações em campos de concentração e pela aplicação de sentenças desproporcionais e terrivelmente injustas,[336] sob o fundamento de proteção da raça ariana e do são sentimento do povo alemão.
Gustav Radbruch atribuiu a culpa por esses fatos ao exacerbado positivismo que deixou juristas impotentes frente às cruéis leis positivas editadas pelos nazistas, enquanto militares acabaram indefesos frente a ordens criminosas de seus superiores[337], ordens estas travestidas com ares de legalidade.
O princípio da proporcionalidade, diante dessa conjuntura, por se tratar de um parâmetro capaz de proibir excessos, sedimentou-se como um dos pilares do Estado democrático de direito,[338] principalmente porque a proporcionalidade está intimamente relacionada à ideia de justiça, critério imanente ao Direito. Isso significa, nas palavras de Muñoz Conde, que “a cada uno debe dársele según sus merecimientos y que los desiguales deben ser tratados desigualmente”.[339]
Malgrado não abordar o princípio em comento sob uma ótica exclusivamente penal, Robert Alexy afirma que a máxima da proporcionalidade subdivide-se em três vertentes: adequação, necessidade (postulado do meio mais benigno) e proporcionalidade em sentido estrito (postulado da ponderação propriamente dita).[340]
Segundo Humberto Ávila, para que se caracterize a adequação o meio deve ser apto a promover o fim perquirido. Para que a necessidade seja inconteste, não poderá existir, dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados. E, por fim, pela proporcionalidade em sentido estrito as vantagens trazidas pela promoção do fim devem corresponder às desvantagens provocadas pela adoção do meio.[341]
Trazendo a questão para o âmbito do direito penal, José Luis Díez Ripollés, citando Arroyo Zapatero, afirma que uma das funções primordiais do princípio da proporcionalidade é limitar o excesso de arbítrio do legislador. Assim como Alexy e Humberto Ávila, subdivide a máxima da proporcionalidade em três subprincípios:
O da idoneidade alude à eficácia da intervenção penal para proteger o bem jurídico, incluindo tanto os conteúdos de eficácia como os de efetividade e também os de deficiência. O de necessidade é identificado por ele com as idéias de ultima ratio ou de subsidiariedade, e, portanto, em grande parte, com razões de eficiência. O de proporcionalidade em sentido estrito fornece, ante o conteúdo utilitário dos dois princípios anteriores, componentes de justiça a serem agrupados sob a pauta do caráter fragmentário do Direito Penal.[342]
No tocante aos subprincípios da “adequação” e “necessidade”, não há maiores dificuldades de compreensão, tendo em vista que o primeiro impõe que o meio utilizado – no caso do direito penal, a sanção criminal – deve ser adequado, i.e, deve “ser um instrumento capaz, apto ou adequado à consecução da finalidade pretendida pelo legislador (adequação do meio ao fim).”[343] O segundo, por sua vez, significa que “o meio escolhido é indispensável, necessário, para atingir o fim proposto, na falta de outro menos gravoso e de igual eficácia.”[344] Esse conceito remete às considerações tecidas a respeito do princípio da subsidiariedade e, portanto, prescinde de mais esclarecimentos.
O principio da proporcionalidade, na concepção de Claus Roxin, encontra-se intimamente ligado à ideia de subsidiariedade do direito penal e não poderia ser diferente, tendo em vista que a “necessidade” é considerada um subprincípio integrante do conceito de proporcionalidade. Na verdade, para Roxin, as concepções de subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal decorrem do princípio da proibição do excesso, porquanto não seria proporcional admitir-se o cerceamento da liberdade individual pelo direito penal quando outros meios menos gravosos alcançariam igualmente e eficazmente os mesmo fins.
Esta limitación del Derecho penal se desprende del principo de proporcionalidad, que a su vez se puede derivar del principio del Estado de Derecho de nuestra Constitución: Como el Derecho penal posibilita las más duras de todas las intromisiones estatales en la libertad del ciudadano, sólo se le puede hacer intervenir cuando otros medios menos duros no prometan tener un éxito suficiente. Pues supone una vulneración de la prohibición de exceso el hecho de que el Estado eche mano de la afilada espada del Derecho penal cuando otras medidas de política social puedan proteger igualmente o incluso con más eficacia un determinado bien jurídico.[345]
A proporcionalidade em sentido estrito, por sua vez, impõe uma juízo de ponderação entre meio e fim, de modo que seja aferido se o meio utilizado é ou não desproporcional para alcançar determinado fim[346]. Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho “trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as vantagens e desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.”[347]
Especificamente no âmbito penal, Luiz Regis Prado afirma que esse subprincípio exige uma vinculação axiológica e graduável entre a conduta e a consequência jurídica, de modo que “deve existir uma medida de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade do fato ilícito praticado, do injusto penal (desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta.”[348]
No direito alemão, o princípio da proporcionalidade goza de especial importância, por se tratar de um princípio constitucional, cuja aplicação é utilizada pelo Tribunal Constituição Federal no objetivo de decidir sobre a admissibilidade de determinada intervenção jurídico-penal.[349]
Roxin, sem embargo, critica o fato de o Tribunal Constitucional alemão não utilizar o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos como parâmetro para deliberar sobre a legitimidade de determinado tipo penal, já que, assim como o princípio da proporcionalidade, “a restrição do Direito Penal à proteção de bens jurídicos se pode deduzir perfeitamente dos fundamentos teórico-estatais de uma democracia parlamentar.”[350]
Ingo Sarlet corrobora o posicionamento do Tribunal Constitucional Federal alemão, afirmando o princípio da proporcionalidade como “critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais”.[351]
Como demonstrado, o princípio da proporcionalidade comumente se exterioriza na forma da proibição do excesso, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Sarlet, contudo, defende que o referido princípio deve ser entendido sob dois aspectos: o da proibição do excesso e o da proibição da insuficiência (também denominado proibição da proteção deficiente).[352]
Isso porque a proibição da insuficiência, por se tratar de um subprincípio corolário da proporcionalidade, vincula igualmente o Estado, de modo a exigir “um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros”.[353] Sendo assim, a não observância da proibição da proteção insuficiente geralmente encontra-se “ representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção.”[354]
Dessa forma, as duas vertentes do princípio da proporcionalidade – proibição do excesso e proibição da proteção insuficiente – impõem que o operador do direito, seja no plano legislativo, seja no plano jurisdicional, combata toda sorte de extremismos, evitando-se, assim, tanto o chamado abolicionismo penal, quanto a política da “tolerância zero”.[355]