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Bem jurídico, Constituição e crimes tributários

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29/04/2013 às 16:00
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5 TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA NA CONSTITUIÇÃO

O sistema tributário nacional (ordem tributária) está previsto no artigo 145 e seguintes da Constituição Federal. Contudo, a simples regulamentação do sistema tributário pela Constituição não basta para que a ordem tributária seja objeto de tutela pelo direito penal. Afinal, “a Constituição protege até mesmo os interesses do Colégio Pedro II, ao qual dedica dispositivo próprio.”[356] (art. 242, § 2º, CF/88).

Por essa razão, é imprescindível que o bem jurídico que se pretenda tutelar goze de especial relevância para o sistema constitucional e para a sociedade e ainda que seja imprescindível para a coexistência social pacífica, justa e igualitária. Só assim para se justificar a aplicação da pena criminal.

A arrecadação tributária constitui a principal e mais expressiva fonte de obtenção de receita do Estado. Essa receita, porém, não se destina unicamente à manutenção da máquina estatal, de suas instituições e dos governantes. Pelo contrário, trata-se de receita com função constitucional fundamental e imprescindível para a sociedade e para os cidadãos, como será demonstrado.

5.1. A proteção penal de bens jurídicos supraindividuais

Como já foi delineado neste estudo, não há maiores dificuldades em se identificar os bens jurídicos tutelados pelo direito penal clássico, constantes,  principalmente, no Código Penal; por exemplo, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade.

Além disso, não existem maiores controvérsias sobre a necessidade da utilização dos instrumentos jurídico-penais para se efetivar uma proteção adequada a esses bens jurídicos individuais, tendo em vista que não restam dúvidas de que se tratam de bens jurídicos de especial relevância e imprescindíveis para uma coexistência pacífica, justa, igualitária, necessários à autodeterminação e desenvolvimento do indivíduo na sociedade, além de serem necessários para a efetivação dos direitos humanos e proteção da dignidade humana.

Por outro lado, o mesmo não ocorre com os bens jurídicos superindividuais (direito penal secundário ou acessório).[357]

Com a superação do modelo formulado por Feuerbach, no qual o bem jurídico nada mais era do um direito subjetivo[358] e com a aceitação das concepções de bem jurídico mais modernas, dentre elas a de Claus Roxin, a ideia de bens jurídicos superindividuais ganhou notoriedade na doutrina jurídico-penal.

Bens jurídicos superindividuais, supraindividuais ou coletivos podem ser entendidos como aqueles bens que não podem ser vinculados a uma única pessoa determinada, mas sim aos valores que dizem respeito a um grande número de cidadãos, determinados ou não.[359] Nas palavras de Luiz Regis Prado, esses bens jurídicos, chamados por ele de metaindividuais,

são característicos de uma titularidade de caráter não pessoal, de massa ou universal (coletiva ou difusa); estão para além do indivíduo – afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade -; supõem, desse modo, um raio ou âmbito de proteção que transcende, ultrapassa a esfera individual, sem deixar, todavia, de envolver a pessoa como membro indistinto de uma comunidade.[360]

A relevância dos bens jurídicos superindividuais é corroborada com a implantação do Estado democrático e social de direito, no qual os direitos sociais e coletivos são afirmados e o Estado passa a adotar uma atuação positiva no intuito de efetivar os fundamentos da república (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, etc.), seus objetivos (construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades) e garantir os direitos sociais e coletivos dos cidadãos (educação, saúde, moradia, seguranças, previdência social, etc.).

Como observa João Marcello de Araújo Júnior, nos Estados Democráticos de Direito “os abismos tendem a ser eliminados e as desigualdades corrigidas. Nesse tipo de Estado proclama-se o dever dos poderes públicos de promover as condições para que a liberdade e a igualdade sejam reais e efetivas”.[361]

Heloisa Estelitta é categórica ao reconhecer a existência dos bens jurídicos supraindividuais, porém, afirma que esses bens devem contar com respaldo constitucional e, principalmente, ser reconduzíveis à pessoa humana[362].

Nesse sentido, Juarez Tavares afirma que “bens jurídicos universais somente requerem proteção como condição da possibilidade de proteção dos bens jurídicos individuais, os quais, por isso, possuem uma função orientadora.”[363] Por essa razão “o fim de proteção dos bens jurídicos é a realização da pessoa individual, sendo o interesse geral apenas uma etapa deste rumo.” [364]

Seguindo mesma linha de pensamento, Winfried Hassemer – defensor de uma teoria pessoal do bem jurídico – não nega a possibilidade de existência de bens jurídicos universais, porém, afirma que esses bens são funcionalizados para servir à pessoa humana: “somente pode aceitá-los como condição da possibilidade de servir a interesses dos seres humanos.”[365]

Não obstante a necessária recondução à pessoa humana para que determinado bem seja elevado à categoria de merecedor de tutela penal, isso não significa que apenas bens individuais possam ser protegidos por meio da pena criminal, mas “também os valores coletivos, na medida em que permitam tal recondução, poderão e, às vezes, deverão ser objeto de tutela penal.”[366]

Estelitta assevera ainda que não existe qualquer tipo de conflito ou hierarquia a priori entre os bens jurídicos individuais e superindividuais, tendo em vista que a única distinção entre eles reside na quantidade de pessoas potencialmente envolvidas e no caráter instrumental que pode ser atribuído aos bens jurídicos coletivos.[367]

Estelitta adverte, entretanto, que a ausência de hierarquia em abstrato (a priori) entre os bens individuais e superindividuais não importa na impossibilidade total de existência de hierarquia de determinado bem superindividual sobre um bem individual ou o contrário, haja vista que essa valoração poderá existir levando-se em consideração a relevância axiológica que a Constituição Federal atribui a determinado bem e o caso concreto.

Em que pese o amplo reconhecimento doutrinário dos bens jurídicos superindividuais, é importante identificar os falsos bens jurídicos coletivos (bens jurídicos aparentemente coletivos). Isso porque, conforme Greco, “a soma de vários bens jurídicos individuais não é suficiente, porém, para constituir um bem jurídico coletivo, porque este é caracterizado pela elementar da não-distributividade”.[368]

Nesse sentido, Greco afirma que a “saúde pública, por exemplo, nada mais é do que a soma das várias integridades físicas individuais, de maneira que não passa de um pseudo-bem coletivo”[369] e, por essa razão, segundo Roxin, o falso bem jurídico “saúde pública” não pode servir de fundamento de punição.[370]

Dessa forma, refutando-se os bens jurídicos aparentemente coletivos, a identificação dos bens jurídicos superindividuais merecedores de tutela penal deve seguir o mesmo caminho para a identificação dos bens individuais, já que a distinção entre eles é meramente formal/conceitual.[371]

Isso significa que, assim como os bens individuais, os bens jurídicos supraindividuais devem possuir respaldo constitucional, devem remeter a uma generalidade de indivíduos identificados ou não, deve haver a possibilidade de recondução à pessoa humana e, por fim, devem compreender o conceito de bem jurídico consistente nas “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.”[372]

5.2. O bem jurídico tutelado nos crimes contra a ordem tributária

Antes de adentrarmos no mérito sobre a necessidade/legitimidade da intervenção penal nos crimes contra a ordem tributária, é imprescindível identificarmos o bem jurídico que a norma penal pretende proteger. Isso porque, só a partir dessa identificação é que poderemos partir para uma segunda análise: saber se essa proteção é ou não legítima.

O nomen iuris empregado para designar o bem jurídico não possui relevância (p. ex, patrimônio tributário, sistema jurídico tributário, arrecadação fiscal, receita tributária etc.), porém, é necessário conceber uma ideia substancial sobre qual e o que vem a ser esse bem jurídico.

José Carlos Tórtima rechaça expressamente as construções que indicam que o objeto de proteção nos crimes fiscais seria a função arrecadadora do Estado, sob o fundamento de que o bem jurídico, ainda que universal, deve remeter e aproveitar à pessoa humana. A função arrecadadora, em sentido oposto, reflete unicamente uma atividade administrativa do Estado, razão pela qual não pode ser identificada como bem jurídico tutelado.[373]

Existem também aqueles que defendem que o bem jurídico seria a “verdade fiscal”, na medida em que o crime tributário consistiria na ofensa aos “deveres de lealdade e transparência do contribuinte para com a Administração tributária”.[374]

Ambas as correntes expostas acima podem ser refutadas, tendo em vista que não se coadunam com a teoria do bem jurídico e com os princípios fundamentais do direito penal estudados nesta pesquisa.

São correntes que se aproximam das construções teóricas elaboradas por Günther Jakobs, uma vez que defender a “função arrecadadora” ou a “verdade fiscal” como bens jurídicos tutelados seria o mesmo que aceitar a utilização do direito penal unicamente com o objetivo de garantir a vigência da norma ou do sistema social  (teoria sistêmica).

Porém, tais posicionamentos não podem ser admitidos em um Estado democrático e social de direito. Isso porque, um sistema social “não deve ser mantida por ser um valor em si mesmo,”[375] tendo em vista que o direito deve ter como finalidade a garantia de uma comunidade livre e pacífica e, por isso, a norma não pode ter como finalidade unicamente a obediência do indivíduo.[376]

Além disso, essas correntes vão de encontro aos princípios fundamentais do direito penal, pois, ainda que se admitisse a verdade fiscal como bem jurídico tutelado, não se vislumbra proporcionalidade e necessidade na aplicação da pena de prisão para garantir simplesmente a “verdade”. É imprescindível um objetivo e um bem jurídico de maior relevância para justificar essa intervenção na liberdade individual.

Uma segunda parcela  da doutrina defende um sistema misto, segundo o qual o bem jurídico tutelado nos crimes fiscais seria tanto o patrimônio fiscal do Estado quanto os valores de verdade e legalidade fiscal.[377]

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Seguindo essa corrente, Pedro Roberto Decomain entende que os crimes contra a ordem tributária, além do patrimônio fiscal, tutelam múltiplos valores, consistentes na “correção no pagamento das receitas tributárias, a lealdade no relacionamento com o fisco, não procurando enganar seus agentes mediante falsificação de livros e documentos fiscais (...).”[378]

Alécio Adão Lovatto também entende que os delitos fiscais englobam múltiplos valores como objeto de proteção, pois os diversos dispositivos constantes na Lei 8.137/90 protegem a veracidade das declarações, o patrimônio público, a finalidade do incentivo fiscal e a veracidade contábil. Da mesma forma, Antonio Corrêa entende que os crimes contra a ordem tributária protegem a fé pública e o patrimônio público. Andreas Eisele, por sua vez, defende que o bem jurídico mediato protegido consiste na regularidade das operações fiscais e na fé pública e o bem imediato é o patrimônio público, consubstanciado na receita fiscal. [379]

Por outro lado, há quem entenda que os crimes tributários são delitos de dano e, portanto, o bem jurídico tutelado seria exclusivamente o patrimônio fiscal do Estado.[380] Esse argumento merece prevalecer, tendo em vista que a proteção da fé pública, verdade fiscal, lealdade e transparência do contribuinte, regularidade das operações fiscais, etc., somente são levados a cabo indiretamente, pois o objetivo principal da norma penal tributária é proteger a receita patrimonial do Estado, que será empregada em interesses sociais de maior relevância.

Seguindo essa corrente, Edmar de Oliveira Andrade Filho, apesar de assinalar que a ordem tributária corresponde a uma abstração composta por instituição, arrecadação, fiscalização do tributo, afirma que o bem jurídico tutelado é o “patrimônio dos sujeitos ativos da obrigação tributária, eis que da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal exsurge para o ente tributante um direito que consiste em receber determinada quantia em moeda”.[381]

Ainda que as diversas condutas do artigo 1º da Lei 8.137/90 sejam praticadas mediante omissão de informações, prestação de informações falsas, fraude à fiscalização tributária, inserção de elementos inexatos, falsificação ou alteração de notas fiscais, etc., isso não faz com que o bem jurídico tutelado seja a verdade fiscal ou a transparência do contribuinte, pois não se pode olvidar que o caput do dispositivo define como crime a conduta de suprimir ou reduzir tributo.

Por essa razão, o bem jurídico tutelado não pode ser outro senão o patrimônio fiscal que o Estado aufere com a cobrança de tributos. As condutas narradas nos incisos apenas descrevem as formas como a conduta de supressão ou redução pode ser praticada para que se configure o crime.

Nesse sentido, Luiz Regis Prado assevera que em todas as figuras típicas dos crimes contra a ordem tributária (Lei 8.137/90), o bem jurídico protegido é o Erário, ou seja, o patrimônio tributário da Fazenda Pública. Porém, adverte que não se deve entender o bem jurídico num “sentido simplesmente patrimonialista (ou individualista), mas como bem jurídico supraindividual, de cunho institucional.”[382]

Isso porque o patrimônio fiscal do Estado serve à objetivos maiores e mais relevantes do que a simples manutenção da máquina pública e de suas atividades administrativas, mas se presta, principalmente, à “realização das atividades destinadas a atender à necessidades sociais.”[383]

O patrimônio constitui bem jurídico com relevância constitucional e, em alguns casos, por si só justifica a intervenção penal para sua proteção, como no caso do furto, dano, apropriação indébita e estelionato. Nos delitos contra a ordem tributária, contudo, a intervenção penal se justifica especialmente, tendo em vista que se trata de um patrimônio não individual, mas pertencente a toda a coletividade e que será empregado no desenvolvimento da sociedade.

Esse ponto de vista ficará mais visível nos tópicos subsequentes, quando demonstraremos os graves danos que a sonegação fiscal impelem ao Estado e à sociedade e a importância dos tributos para o desenvolvimento da sociedade e para a consecução dos objetivos, princípios e fundamentos do Estado.

5.3. A relevância constitucional do sistema tributário

Ives Gandra afirma que a norma penal tributária é uma norma de rejeição social, pois caso a norma não existisse a maioria das pessoas não pagariam espontaneamente seus tributos, ao contrário das normas penais socialmente aceitas, cuja aplicação da pena somente seria necessária nos casos patológicos.[384]

A rejeitabilidade social da norma, segundo o renomado tributarista, decorreria da carga fiscal desmedida e do histórico de má utilização da verba pública, com todo o séquito de desperdício e emprego no sustento de luxuosidade dos governantes. Sem contar a corrupção, favorecimentos e a multiplicação de cargos e funções desnecessários.[385]

Por essa razão, Ives Gandra afirma que a sonegação muitas vezes se apresenta como forma de sobrevivência. Diz que quanto maior a carga fiscal maior a sonegação e que o oposto seria verdadeiro, ocasião em que a sonegação ocorreria somente em casos patológicos. Por isso, entende que nos casos em que o Estado impõe uma carga tributária elevada, a sonegação se justificaria.[386]

Porém, não se pode partir do pressuposto de que a arrecadação desmedida, o mau uso da verba pública, o desperdício e a corrupção sejam a regra geral, pois isso não é verdade, segundo José Carlos Tórtima.[387]

Além disso, olvida-se o renomado jurista que os tributos possuem uma finalidade maior do que a simples manutenção da máquina pública e de suas instituições, pois sua aplicação aproveita aos interesses sociais.

Como já foi delineado neste estudo, a primeira concepção de Estado de direito, era marcado principalmente pela legalidade, possuindo forte cunho formalista. O objetivo principal do Estado era garantir os direitos individuais – liberdade principalmente –  através de uma postura abstencionista.

Com a Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a ser um Estado democrático e social de direito. Isso importa dizer que ao Estado foi dado a missão de atuar positivamente no sentido de implementar políticas sociais.

Segundo Estellita, garantir aos cidadãos direitos sociais é imprescindível para viabilizar a liberdade material dos indivíduos, porquanto sem as condições básicas de dignidade (vida, saúde, trabalho, lazer, moradia, família, educação, liberdade de manifestação), o homem não possui capacidade para gozar plenamente de liberdade.[388] Em sentido semelhante, Prado afirma que esses bens jurídicos coletivos “são primordiais para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano enquanto pessoa, bem como sua real integração (social, política, cultural e econômica) em uma coletividade organizada.”[389]

O Estado-Administração não é mais exclusivamente o guardião da liberdade individual; tem ele novas nuanças que lhe marcam uma posição ativa no seio social. De uma posição negativa – não interferir na liberdade individual –, passa a uma posição ativa – garantir direitos sociais. Essa mudança pode ser compreendida apenas “aparente” na medida em que o desfrute de direitos sociais é condição da real e efetiva liberdade individual. Esta é uma constatação que evidentemente inspirou a elevação dos direitos sociais à categoria constitucional. […] Uma legião de miseráveis não desfruta em verdade de liberdade alguma. [390]

A função social do Estado brasileiro encontra-se bem delimitado na Constituição Federal. Assim é que as atuações positivas do Estado devem ser concretizadas de forma a se alcançar os (a) fundamentos da república (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, etc. – artigo 1º); (b) seus objetivos fundamentais, consistentes em construir uma sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminação (artigo 3º) e (c) viabilizando efetivamente os direitos sociais e coletivos (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados – artigo 6º), além dos outros mandamentos Constitucionais.

Partindo desse contexto, Heloisa Estellita entende que a verdadeira importância da arrecadação tributária dependerá da análise das funções do Estado – parte delas delineadas acima. Por essa razão, assevera que, como o Estado brasileiro possui forte cunho social, com atuação positiva voltada para realização de interesses sociais, o papel do tributo deve extrair daí seu ponto de partida, assim como o Direito Penal.[391]

Nesse sentido, afirma Estellita que a arrecadação tributária, além da missão clássica de obter receita para manutenção da máquina estatal, possui também outras funções primordiais, consistentes em “influir positivamente na redistribuição de riquezas dentro do País, quer entre classes sociais, quer entre regiões, e o de influir no domínio econômico como mais um instrumento de realização da política econômica voltada para o desenvolvimento nacional”.[392]

Assim, o tributo contribui para a efetivação dos direitos sociais, da justiça e da distribuição de renda não apenas com a destinação do produto arrecadado, mas também por meio dos princípios tributários da extrafiscalidade e progressividade.[393]

Por isso é que Ventura Gonzales, citando Alejandro Dumay Peña, afirma que “en el Derecho Penal Económico el bien jurídico tutelado está integrado por intereses económicos de naturaleza social.”[394]

A importância da função do tributo fica mais clara quando observamos as normas constitucionais que impõem algumas atribuições aos entes federados: União (art. 21), Estados (art. 25, § 1º) e Municípios (art. 30). Além dessas atribuições, a Constituições atribui expressamente outras funções, como bem observa Estellita:[395]

·  a prestação da assistência jurídica integral aos necessitados (art. 5º, LXXIV e art. 134);

·  a garantia dos direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à seguranças, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e à assistência aos desamparados (art. 6º);

·  a conservação ao patrimônio público (art. 23, I);

·  cuidar da saúde, da assistência pública, da proteção e da garantia das pessoas portadoras de deficiência;

· proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (art. 23, III);

· proteger o patrimônio cultural (art. 216, § 1º);

·  impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural (art. 23, IV);

·  proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência (art. 23, V);

·  defender e proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer das suas formas (art. 23, VI e art. 225) e preservar as florestas, a fauna e flora (art. 23, VII);

·  fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (art. 23, VIII);

· promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX);

·  combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 23 X);

·  estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito (art. 23, XII);

·  a prestação de serviços públicos (art. 175);

· a realização de reforma agrária através da desapropriação dos imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social mediante prévia e justa indenização (art. 184, caput e § 4º);

· a seguridade social (arts. 194 e 195) asseguradora dos direitos relativos à saúde (art. 198), previdência (art. 201 e 202) e assistência social (art. 203 e 204);

· a educação (arts. 208 e 212);

·  o fomento ao desporto educacional e de alto rendimento (art. 217, caput, e inciso II);

· a proteção à família (art. 226); a proteção à criança e ao adolescente (art. 227) e o  amparo aos idosos (art. 230);

· a proteção das terras e dos bens das comunidades indígenas (art. 231);

·  a assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso (art. 245).

Esses fundamentos, objetivos, direitos sociais e demais funções do Estado arroladas acima são condições e pressupostos imprescindíveis para uma coexistência pacífica, livre, justa e igualitária, sem os quais a vida em sociedade se tornaria verdadeiramente prejudicada.[396]

Em outras palavras, tratam-se de bens jurídicos imprescindíveis para a vida em sociedade. A imprescindibilidade dessas condições é visível. Basta imaginar uma sociedade na qual as pessoas não possuam dignidade,  na qual a liberdade seja cerceada arbitrariamente pelo Estado, na qual as minorias sejam proibidas de frequentar determinados estabelecimentos, com alto índice de pobreza e marginalização, na qual as pessoas não possam contar com um sistema público de saúde eficaz e de boa qualidade, em que as crianças de baixa renda não tenham escolas públicas de qualidade para estudar, em que os idosos que já não mais possam trabalhar para garantir seu sustento não recebam auxílio da previdência social e na qual as pessoas saiam nas ruas com medo constante de sofrerem algum tipo de violência. Não é possível imaginar uma sociedade livre, justa, igualitária, pacífica e harmoniosa nessas condições.

Porém, como afirma Roxin, não apenas essa condições diretamente ligadas aos indivíduos ou à sociedade são bens jurídicos imprescindíveis, mas também todas aquelas “instituições estatais adequadas para este fim (uma administração da justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de corrupção etc.).”[397]

Disso decore que o Estado somente pode garantir à sociedade e aos indivíduos os bens jurídicos individuais e coletivos indispensáveis para uma coexistência justa, pacífica e igualitária mencionados acima através da obtenção e aplicação da receita tributária (a receita tributária é a principal forma de arrecadação do Estado).

Logo, não é possível chegar a outra conclusão senão que o patrimônio tributário do Estado é um bem jurídico-penal de especial relevância, já que sem ele não é possível implementar políticas públicas para se efetivar os direitos sociais e coletivos, fundamentos e objetivos da república e, com isso, garantir uma coexistência social pacífica, livre, justa e igualitária, sob a garantia de todos os direitos humanos[398] e com condições individuais para o livre desenvolvimento do indivíduo, para a realização de seus direitos fundamentais e para o funcionamento de um sistema estatal baseado nessas finalidades.[399]

Dessa forma, chega-se a conclusão que o patrimônio tributário do Estado é um bem jurídico-penal de especial relevância para a sociedade e para os cidadãos individualmente considerados e, por isso, merece proteção penal.

Por essas razões é que Claus Roxin afirma que um sistema de tributos justo tem “importância especial para as possibilidades de desenvolvimento do indivíduo na sociedade”.[400] Seguindo a mesma linha de raciocínio, Juarez Tavares aduz que a arrecadação fiscal do Estado pode ser elevada à categoria de bem jurídico-penal, não simplesmente por se tratar de uma função do poder público, mas principalmente

“como condição de sobrevivência ou melhor padrão de vida da pessoa humana.”[401]

Corroborando esse entendimento, Luiz Regis Prado justifica a tutela penal da ordem tributária com base na natureza supraindividual do bem jurídico tutelado, tendo em vista que “os recursos auferidos das receitas tributárias dão o respaldo econômico necessário para a realização das atividades destinadas a atender às necessidades sociais.”[402]

Prado remete à teoria do contrato social – abordada no primeiro capítulo desse estudo – para asseverar que a função econômica, social e tributária do Estado não é um fim em si mesmo, mas deve se limitar à “busca da satisfação ampla, geral e irrestrita do bem-estar individual e coletivo.”[403]

Ratificando a necessidade de tutela penal do patrimônio público fiscal, Prado aduz que a legitimidade da utilização do direito penal para a proteção da ordem tributária encontra respaldo na Constituição Federal, porquanto a receita obtida com a arrecadação fiscal é destinada a promover as funções, fundamentos e objetivos do “Estado democrático e social de Direito, de modo a propiciar melhores condições de vida a todos (v.g., tratamento de água e esgoto, criação de áreas de lazer, saúde, educação).”[404]

Diante de tudo o que foi exposto, não se pode negar que o patrimônio tributário do Estado constitui bem jurídico-penal de especial relevância e imprescindível para uma coexistência social pacífica, justa e igualitária, necessário à garantia dos direitos humanos, ao livre desenvolvimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais e com respaldo constitucional, na medida em que a receita fiscal é empregada na consecução dos princípios (prevalência dos diretos humanos – art. 4º), fundamentos (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho – art. 1º) e objetivos (construir uma sociedade livre, justa e igualitária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, promover o bem de todos, sem preconceitos – art. 3º) da república, além de ser o patrimônio tributário necessário para a implementação dos direitos individuais (art. 5º) e sociais (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados – art. 6º) e das demais funções estatais previstas na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Por fim, como última observação, cumpre registrar que o reconhecimento do patrimônio tributário estatal como bem jurídico merecedor de proteção penal não implica necessariamente na utilização do direito penal para prevenir qualquer conduta contrária a esse bem jurídico, p. ex., sua aplicação contra o mero inadimplemento da obrigação principal de pagar tributo.

A análise da necessidade de pena nesse caso específico deverá observar os princípios da ofensividade, da intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade e proporcionalidade, de modo que a resposta para esta questão requer uma análise mais aprofundada, não possível neste estudo.

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Sobre o autor
Igor Saúde Izoton

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduando em L.LM Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IZOTON, Igor Saúde. Bem jurídico, Constituição e crimes tributários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3589, 29 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24247. Acesso em: 19 abr. 2024.

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