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Não existe direito adquirido contra ato do poder constituinte originário

Agenda 26/05/2013 às 22:58

Não faz sentido a alegação de submissão do Poder Constituinte Originário ao direito adquirido precedente, pois, com o rompimento da ordem jurídica anterior, os direitos que decorriam deste não mais existem.

É cediço que o Poder Constituinte Originário é um poder fático que rompe as ordens jurídica e política precedentes através da elaboração de uma nova Constituição e, por tal característica, como muito bem afirmado por Michel Temer[1], ele cria um novo Estado, senão no aspecto histórico-geográfico, no seu aspecto político-jurídico. A sua titularidade, conforme aponta a doutrina moderna[2], pertence ao povo[3].

O pensamento em torno da existência desse poder político que institui uma nova ordem constitucional adveio de Emmanuel Sieyès, o abade de Chartres, no ensaio Que é o terceiro Estado?, segundo o qual, na lição profícua de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[4] “posicionou a Constituição como documento criador do Estado e, por via de consequência, ponto inaugural do sistema jurídico. Destarte, o poder que cria a Constituição não encontra limites de qualquer espécie (...)”.

Diante das assertivas acima apontadas, podemos listar como características de referido Poder a inicialidade, a ilimitação, incondicionalidade e a força legitimadora do êxito.

A inicialidade do Poder Constituinte Originário relaciona-se com a sua característica principal, isto é, fender o sistema jurídico anterior e instituir um novo, sem nenhuma limitação ou condicionante para a sua consecução. Por isso, que a doutrina afirma ainda ser o mesmo ilimitado e incondicionado.

A ilimitação se caracteriza por não estar esse Poder vinculado a nenhum direito pré-existente, nem ao direito que instituirá. Repita-se, mesmo que em exagero, que se trata de um poder político que inicia uma ordem jurídica[5].

Já sua incondicionalidade se mostra na forma de sua manifestação que não está submetida a nenhum processo legislativo anterior. Isto, nas palavras insofismáveis de Canotilho[6], quer dizer que “o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo”.

Ressalte-se, por oportuno, que para os jusnaturalistas esta autonomia do Poder Constituinte Originário não é absoluta, pois na elaboração da nova ordem jurídica seria imprescindível que se respeitasse as normas do direito natural. É de se sopesar nesta corrente doutrinária que, sendo o direito natural abstrato, não existe uma vinculação concreta a ser seguida na elaboração da Constituição, pois “do ponto de vista de um ordenamento jurídico, os chamados direitos naturais não são propriamente direitos: são apenas exigências que buscam validade a fim de se tornarem eventualmente direitos num novo ordenamento normativo, caracterizado por um diferente modo de produção das normas” [7].

Entretanto, conquanto seja ilimitado e incondicionado quanto a qualquer ordem anterior vigente, a doutrina moderna vê a necessidade do Poder Constituinte Originário guardar relação com o eixo axiológico da sociedade, no momento da elaboração da Constituição[8], de modo que estará inevitavelmente limitado à força legitimadora do êxito. 

Do exposto, restam evidente e repetitivo que com a nova Constituição há a instituição de um novo ordenamento jurídico e, por via de consequência, do direito que dele decorre.

Neste contexto, torna-se sem conteúdo a alegação de submissão do Poder Constituinte Originário ao direito adquirido precedente, pois, com o rompimento da ordem jurídica anterior, os direitos que decorriam deste não mais existem. A propósito, ainda que de modo prescindível, o artigo 17 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias[9] explicitou esta assertiva relativamente à percepção de remuneração, vantagens de todas as ordens e aposentadorias dos agentes públicos que ultrapassassem os limites traçados pela nova ordem constitucional.

Com efeito, é pacífico o entendimento de que as normas constitucionais são dotadas implicitamente de eficácia retroativa mínima, ou seja, alcança fatos passados, cujos efeitos futuros ultrapassam a data de vigência da nova Constituição.

A propósito, a lição do professor Paulo Gustavo Gonet Branco[10], para quem:

O STF passou a entender que somente quando a nova norma constitucional claramente ressalva uma situação, que seria agora inválida, mas criada licitamente antes dela, somente nesses casos a situação merece continuar a ser protegida. De toda sorte, os efeitos do ato praticado anteriormente que se exauriram antes da nova norma constitucional não sofrem a influência da nova norma constitucional, a não ser que esta seja expressa nesse sentido.

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Em suma, a norma superveniente do poder constituinte originário, a não ser quando diz o contrário, tem aplicação sobre situações constituídas antes da sua vigência, exatamente sobre os efeitos que o ato praticado no passado tenderia a produzir sob a vigência da nova norma constitucional.

Sendo assim, não existe direito adquirido em face do Poder Constituinte Originário, a não ser que este expressamente excepcione a regra da eficácia retroativa mínima das normas introduzidas pela nova ordem constitucional, pois, do contrário, sequer podemos alegar a existência de algum direito derivado da ordem jurídica precedente.


Notas

[1] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 33.

[2] Neste diapasão, “quando se admite o princípio democrático da soberania popular não se tem dúvidas de que a titularidade do Poder Constituinte pertence ao povo” (ARAUJO, Luiz Alberto David, NUNES JÚNIOR Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 9).

[3] Neste sentido, prevê o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (nota do autor).

[4] ARAUJO, Luiz Alberto David, NUNES JÚNIOR Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional, p. 8.

[5] Op. Cit., p. 10.

[6] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 7 ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 94.

[7] “Do ponto de vista de um ordenamento jurídico, os chamados direitos naturais não são propriamente direitos: são apenas exigências que buscam validade a fim de se tornarem eventualmente direitos num novo ordenamento normativo, caracterizado por um diferente modo de produção das normas” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 80).

[8] Neste sentido, usaremos novamente a lição de Canotilho que entende que o Poder Constituinte Originário “é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como ‘vontade do povo’” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. cit., p. 81).

[9] CF, artigo 17 do ADCT – “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.

[10] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Poder Constituinte Originário. Material da 1ª aula da Disciplina Análise de Processos Normativos Constitucionais e Direitos Fundamentais, ministrada no Curso de Pós-Graduação TeleVirtual em Constituição e Sociedade – Anhanguera- UNIDERP|REDE LFG – IDP, p. 11.

Sobre o autor
Alexandre Orsi Netto

Defensor Público do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela Faculdades Integradas de Itapetininga (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORSI NETTO, Alexandre. Não existe direito adquirido contra ato do poder constituinte originário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3616, 26 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24476. Acesso em: 22 nov. 2024.

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