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A vicariância do Poder Judiciário

Dá-se o nome de hipertrofia compensatória ou vicariante quando, tendo em vista o mau funcionamento ou perda de um rim, cabe ao outro a função de substituí-lo. O ativismo judicial, dentro dessa comparação, nada mais é do que um Judiciário vicariante, substituindo os Poderes inertes.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, tem-se verificado a presença cada vez mais manifesta de um fenômeno denominado Ativismo Judicial, o qual se coloca como meio hábil, por via de interpretações proativas do Poder Judiciário, à potencialização do texto constitucional.

Buscando explicar, ainda que de modo sucinto, acerca desse fenômeno crescente, o presente artigo traz comparações com outros temas, a fim de elucidar didaticamente a função substituta do Judiciário. Assim, o trabalho será desenvolvido segundo as divisões: surgimento da expressão intituladora do tema, a finalidade do fenômeno e o questionamento a respeito da posição a ser tomada pelo Pretório Excelso. Ao final, retomar-se-á a linha comparativa, articulando-a com a conclusão.


2 ATIVISMO JUDICIAL: SURGIMENTO DA EXPRESSÃO

A expressão Ativismo Judicial foi empregada pela primeira vez em uma matéria intitulada The Supreme Court publicada na Revista Fortune e escrita pelo historiador Arthur Schlesinger Jr.[1], a quem coube narrar a ascensão de Robert H. Jackson à Corte.

No artigo, foi empregada a expressão judicial activism contrapondo-se ao self restraint. Tais expressões designavam as posições assumidas pela Suprema Corte americana diante de temas controvertidos e com conotação política. [2]

O jornalista, ainda, dividiu a Corte em duas correntes. Os componentes da primeira - Hugo Black, Willian O. Douglas, Frank Murphy e Wiley Rutledge - chamou judicial activists (ativistas judiciais), haja vista tais magistrados exercerem papel afirmativo no exercício do bem-estar social.[3]

Por seu turno, os juízes Felix Frankfurter, Harold Burton e Robert H. Jackson, integrantes da segunda corrente, foram chamados champions of self-restraint (campeões do autocomedimento), visto que, para eles, o Judiciário tinha um papel limitado dentro do sistema estadunidense. [4]

Sumariado o contexto histórico-terminológico da expressão, cumpre destacar a finalidade do ativismo judicial.


3 FINALIDADE

Dá-se o nome de hipertrofia compensatória ou vicariante quando, tendo em vista o mau funcionamento ou perda de um rim, cabe ao outro a função de substituí-lo. É importante mencionar, para ulterior comparação, que apenas tal situação é compatível com a vida, pois a agenesia renal bilateral, isto é, a inexistência de ambos os rins inviabiliza a vida, uma vez que sem rim não se produz urina. [5]

A vicariância, contudo, não está associada apenas a fenômeno do corpo humano. PASQUALE CIPRO NETO, v.g., ao explanar sobre o emprego da vírgula, aduz que à vírgula substitutiva de formas verbais subentendidas atribui-se o nome de vicária. [6] O professor acerca da temática cita como exemplo um título jornalístico, o qual despertou grande curiosidade nas pessoas: “Estevão é preso; suplente, denunciado; e Roriz, investigado”; verifica-se da frase a função da vírgula vicária, qual seja, substituir o verbo “ser”.

O ativismo judicial, dentro dessa comparação, nada mais é do que um Judiciário vicariante, substituindo os Poderes Legislativo e Executivo ante a inércia e a morosidade em efetivar planos dispostos na carta cidadã.

Essa proatividade judiciária, assim chamada por LUÍS ROBERTO BARROSO, [7] não atinge apenas o Pretório Excelso, ou seja, as instâncias inferiores também são alcançadas, uma vez que estão buscando cada vez mais efetivar a justiça, precisando, para isso, ir além do texto legal.

GLÁUCIA MILÍCIO traz à colação exemplos de práticas ativistas em instâncias inferiores:

Recentemente, um juiz da cidade de Taperoão (PB) determimou toque de recolher às 21h para menores de 12 anos. Em Conceição de Coité (BA), um juiz condenou um homem por furto, mas não mandou para cadeia. A pena, neste caso, foi arrumar um emprego. Na Paraíba, o toque de recolher imposto teve como base os altos índices de violência na região. Na Bahia, o juiz agraciou o acusado por entender que ele passou a infância e adolescência lançado à sorte, esquecido pelo Estado. [8]

Desse modo, conclui-se que o objetivo do ativismo judicial funda-se na busca de uma participação mais acentuada e intensa do Judiciário no concernente à concretização de valores e fins constitucionais, sendo necessária a interferência nos outros dois Poderes, ou ocupação diante de espaços vazios.

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Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.[9]

De acordo com EDUARDO DIEDER REVERBELR, [10] o juiz ativista transpassa o campo de direito e ingressa no campo político, resolvendo problemas políticos com critérios jurídicos. Isso em virtude do desprestígio da lei, da ineficiência da política, da dificuldade da Administração e malversação dos recursos públicos. [11]

O ativismo judicial vem, pois, potencializar o texto constitucional, conferindo a ele concretização.


4 LIMITAÇÃO OU EXTINÇÃO DA VICARIÂNCIA SUBSTANCIALISTA?

Conforme tratado acima, a função vicariante – ativismo judicial - do Judiciário coloca-se essencial à medida que colima potencializar o texto constitucional. SAUL TOURINHO LEAL afirma que o Judiciário, ao adentrar uma esfera substancialista, reformula-se, deixando para trás o procedimentalismo exacerbado.

A título de elucidação da fase de outrora (procedimentalista), o professor cita o caso Maria Prestes.

Maria Prestes é Olga Benário, importante revolucionária comunista da década de 30, no século XX, a qual, ao ser presa e acusada por cometer delitos contra a ordem social, teve decretada por despacho administrativo sua expulsão do Brasil, bem como sua submissão à jurisdição alemã.

Ocorre que Olga era judia, alemã e, sobretudo, encontrava-se grávida. Logo suas chances de sobrevivência eram mínimas. Desse modo, seu advogado, impetrou habeas corpus, alegando, em síntese, que a impetrante deveria ser expulsa do país apenas após condenação, consoante a constituição vigente e os princípios da ampla defesa e contraditório.

Heitor Lima, ainda, arguiu outras teses, como: direito à maternidade e à vida, as quais foram derrubadas sob a alegação de que se vivia em um estado de exceção. Assim, Olga Benário foi expulsa, confinada em um campo de concentração e assassinada em janeiro de 1941. À época, vivia-se, como se verifica, sob a égide de um Poder Executivo agigantado e opressor, um Legislativo silente e um Judiciário submisso.

Hodiernamente, avança o Judiciário para um viés substancialista. Como exemplo, no ano de 2012, dentre as importantes causas julgadas, o STF, visando coibir práticas de violência doméstica contra a mulher ainda de modo mais eficaz, adotou posicionamento protecionista à mulher em ação declaratória de inconstitucionalidade (ADI 4424), possibilitando ao Ministério Público dar início à ação penal, no delito de lesão corporal de natureza leve, sem a necessidade da representação da vítima.

Tecidos comentários sobre a posição que vem assumindo o Judiciário, é preciso retomar a alusão feita à vicariância renal. Destarte, o rim sadio, o qual trabalha duplamente, em virtude da disfunção renal, pode sofrer um inchaço, vindo a crescer excessivamente, hipertrofiando-se, pois.

Do mesmo modo, a hipertrofia pode se dar com o Judiciário, ainda que essa disfunção dê-se de modo gradativo, pois, de acordo com o professor ELIVAL DA SILVA RAMOS, haverá usurpação doutro Poder, o que ocasionará estremecimento na Tripartição de Montesquieu. [12]

RAMOS defende uma reforma política, i.e., instituição de um parlamento à francesa ou à portuguesa, bem como voto distrital, com vistas a reduzir o número de partidos políticos, além de instituir a figura do primeiro ministro. Referidas medidas combateriam o ativismo judicial, o qual, para ele, independentemente do resultado é ruim.

O professor é favorável, no entanto, a uma interpretação criativa cujo cerne centra-se numa interpretação sistemática, tendo em vista a defasagem da legislação e da jurisprudência. Outrossim, salienta que é preciso prender-se a parâmetros normativos, ou seja, necessária se faz a existência de norma para interpretações com fins ativistas. Desse modo, critica, por exemplo, a vedação ao nepotismo por mera súmula, a qual somente deveria advir de lei.

BARROSO, por sua vez, não se mostra contrário ao ativismo, asseverando que, até o momento, tem sido empregado como solução, não como problema. Entretanto, ao compará-lo com um antibiótico, alerta que deve ser usado de modo comedido, pois doses excessivas podem levar a morte por cura.

Referido autor, no que toca ao Judiciário ativista, entende que os riscos decorrentes desse ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias.

Por derradeiro, aponta que tais riscos podem ser prevenidos por meio das seguintes soluções: diante da existência de norma regendo a situação, ela deve prevalecer, isto é, deve preponderar o Poder Legislativo, o que evitará usurpação de competência; quanto às interpretações ativistas, elas devem se pautar nos cânones da racionalidade, objetividade e fundamentação das decisões; e, por fim, deve haver deferência das valorações feitas pelas instâncias especializadas, desde que, por óbvio, sejam observados a razoabilidade e o procedimento adequado.


5 CONCLUSÃO

Assim, analisados os prós e contras, cabe a adoção de um posicionamento acerca do fenômeno em comento, pois se quedar sobre o muro não é a medida mais acertada a que se propõe o presente artigo.

Portanto, é ululante que nosso país urge de reformas políticas. Todavia, é ainda mais patente a necessidade de ser estancada a injustiça decorrente da ineficiência legislativa e executiva.

 Logo, o posicionamento de BARROSO mostra-se muito mais coerente com as necessidades atuais, pois é melhor ter um problema solucionado a assistir de camarote injustiças se assomando.

No sentido figurado empregado a priori: é melhor o hipertrofismo à agenesia renal bilateral, ora porque viabiliza a vida (sistema), ora porque se apresenta como solução mais plausível.


6 REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O ativismo judicial in Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf. Acesso em: 10 de março de 2013.

CAMPOS, Shirley de. Anomalias de número in Rim, rins, nefrologia. Disponível em: http://www.drashirleydecampos.com.br/noticias.php?noticiaid=3674&assunto=Rim/Rins/Nefrologia. Acesso em: 10 de março de 2013.

GREEN, Craig. An intellectual history of judicial activism. Disponível em: http://www.law.emory.edu/fileadmin/journals/elj/58/58.5/Green.pdf. Acesso em: 03 de março de 2013.

LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. 2008. Disponível em: http://www.idp.edu.br/. Acesso em: 03 de março de 2013.

MILÍCIO, Gláucia. Democracia desequilibrada: o ativismo judicial é ruim independente do resultado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-ago-01/entrevista-elival-silva-ramos-procurador-estado-sao-paulo. Acesso em: 10 de março de 2013.

MILÍCIO, Gláucia. Juiz legislador: ativismo judicial estica limites da Justiça. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-12/ativismo-judicial-ainda-causa-polemica-comunidade-juridica. Acesso em 10 de março de 2013.

PASQUALE, Cipro Neto. Coleção professor Pasquale explica. São Paulo: Gold, 2011.

REVERBEL, Eduardo Dieder. Estado de direito e de democracia: os problemas do ativismo judicial in Ativismo Judicial e Estado de Direito. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/revistadireito/article/view/7028/4246. Acesso em: 03 de março de 2013.

TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000100002&script=sci_arttext. Acesso em: 03 de março de 2013.


Notas

[1] “This study’s first step is to distinguish the term ‘judicial activism’, which was coined by Arthur Schlesinger in 1947, from the concept of judicial activism, which has older foundations” GREEN, Craig. An intellectual history of judicial activism. Disponível em: http://www.law.emory.edu/fileadmin/journals/elj/58/58.5/Green.pdf. Acesso em: 03 de março de 2013.

[2] LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. 2008. Disponível em: http://www.idp.edu.br/. Acesso em: 03 de março de 2013.

[3] 4TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000100002&script=sci_arttext. Acesso em: 03 de março de 2013.

5CAMPOS, Shirley de. Anomalias de número in Rim, rins, nefrologia. Disponível em: http://www.drashirleydecampos.com.br/noticias.php?noticiaid=3674&assunto=Rim/Rins/Nefrologia. Acesso em: 10 de março de 2013.

6Pasquale explica em sua obra que a palavra “vicário” tem a mesma origem de “vigário”(do latim vicariu, que significa “o que substitui”, “o que faz as vezes de outro”). PASQUALE, Cipro Neto. Coleção professor Pasquale explica. São Paulo: Gold, 2011.

[7] A atitude proativa difere-se do fenômeno da Judicialização, modelo institucional brasileiro, o qual consiste em o Poder Judiciário fazer aquilo que lhe compete, não havendo, pois, alternativa no fazer. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso em: 30 de maio de 2013.

[8]MILÍCIO, Gláucia. Juiz legislador: Ativismo judicial estica limites da Justiça. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-12/ativismo-judicial-ainda-causa-polemica-comunidade-juridica. Acesso em 10 de março de 2013.

[9] Trecho do discurso proferido pelo Ministro Celso de Mello,em 19 de abril de 2012, na solenidade de posse do Ministro Carlos Ayres Britto como presidente SO STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/discursoCM.pdf. Acesso em: 09 de junho de 2013.

[10] REVERBEL, Eduardo Dieder. Estado de direito e de democracia: os problemas do ativismo judicial in Ativismo Judicial e Estado de Direito. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/revistadireito/article/view/7028/4246. Acesso em: 03 de março de 2013.

[11] No Brasil, há diversos precedentes de postura ativista do STF, dentre elas, a aplicação direta da constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto (exemplo: fidelidade partidária e vedação ao nepotismo), a imposição de condutas ao Poder Público diante da inércia do legislador (exemplo: greve no serviço público).

[12] RAMOS apud Milício. Democracia desequilibrada: o ativismo judicial é ruim independente do resultado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-ago-01/entrevista-elival-silva-ramos-procurador-estado-sao-paulo. Acesso em: 10 de março de 2013.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

José Augusto dos Santos Diniz

graduando do curso de Direito no Centro universitário Salesiano, campus Lorena; graduando do curso de Letras das Faculdades Integradas de Cruzeiro; estagiário do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; DINIZ, José Augusto Santos. A vicariância do Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3634, 13 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24707. Acesso em: 28 dez. 2024.

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