11. as tentativas legiferantes para desvalorizar a função do auditor e dos servidores dos tribunais de contas
Com o mesmo desconhecimento sobre o funcionamento dos Tribunais de Contas revelado por diversos constituintes, vários parlamentares têm apresentado, desde a promulgação da Constituição Federal, diversas Propostas de Emenda à Constituição (PEC), com o fito de alterar a escolha e a composição dos membros do TCU. Em todas elas nota-se a intenção de importar soluções que foram elaboradas heuristicamente pelos seus proponentes. Não é possível inferir que houve fundamentação técnica, já que propostas que gozam de tais fundamentos têm por ponto de partida conhecer a fundo o que se pretende mudar.
As PECs nº 123/1999, 209/2003, 222/2003 e 531/2006, todas apensadas à PEC nº 556/1997 (que remete ao Congresso Nacional a indicação de todas as vagas de Ministros do TCU), modificam a Constituição para realizar concurso público para Ministros e Conselheiros.
Qual o verdadeiro propósito dessas propostas é difícil compreender. Os Auditores já são escolhidos mediante concurso público e realizam as mesmas tarefas dos Ministros. Por que então realizar concurso público, em vez de tornar os cargos de Ministros e Auditores reunidos em uma única carreira, conforme se verifica nas cortes de contas europeias e que serviram de inspiração para a adoção do modelo de Tribunal de Contas no Brasil? Tampouco fica esclarecido por que não seguir os paradigmas europeus, valorizando-se a escolha de servidores públicos das carreiras afetas aos controles interno e externo. A leitura das razões que fundamentam essas PECs não dissipa essas dúvidas.
A PEC nº 316/2008, também apensada à PEC 556/1997, em que o parlamentar que a apresenta faz pleno uso das suas prerrogativas, e pelo texto transcrito abaixo, pode constatar-se a natureza ira et studium de seu conteúdo, pinça trechos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção para defender a participação dos Conselhos Federais de Contabilidade, de Economia, de Administração e da Ordem dos Advogados do Brasil na escolha de membros do TCU:
“Não é nenhuma novidade que em praticamente todos os Estados do país as Assembléias Legislativas costumam referendar os atos e as vontades do Chefe do Executivo. Desse modo, desejando o Governador que um seu aliado político ou amigo pessoal venha a tornar-se membro do Tribunal de Contas do Estado - independente de haver pessoas mais capacitadas para tal -, basta evidenciar sua vontade ao legislativo estadual que esta será realizada.
Não é raro encontrar-se, nos Estados, membros de Tribunais de Contas que foram agraciados com tais cargos após terem atuado como Secretários de Estado durante a administração do Chefe do Executivo que os nomearam, ou após terem exercido fielmente, na Assembleia Legislativa local, funções de lideranças políticas do mesmo governo responsável por suas indicações para a Corte de Contas.
Em assim sendo, qual a garantia de que esses Conselheiros, ao julgarem as contas daqueles que foram responsáveis por suas escolhas para o Tribunal de Contas, não serão influenciados, ao menos, pelo sentimento de gratidão que é inerente a todo ser humano.
A indiscutível influência política sobre os Tribunais de Contas compromete seriamente a independência que devem ter tais órgãos para os quais a Constituição da República determinou a importante tarefa de fiscalização e revisão da atividade administrativa de qualquer das esferas de Poder.
O ideal é que tais Cortes fossem extirpadas de qualquer influência política, seja esta influência oriunda do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, idéia que várias vezes foi esposada nesta Casa, em PECs como as que propõem a escolha de Ministros e Conselheiros (ou parte deles) por meio de concurso público, algumas delas apenas aguardando a constituição de Comissão Especial nesta Casa.
Quanto à relação entre o Tribunal de Contas da União e o Congresso Nacional, dispõe a própria Constituição da República que aquele deve atuar em auxílio ao Poder Legislativo, em regime de cooperação, o mesmo se aplicando, pelo princípio da simetria, aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios. O entendimento dominante, pois, tanto entre doutrinadores do direito quanto nos tribunais pátrios é o de que o Tribunal de Contas da União não é integrante do Congresso Nacional, assim como os Tribunais de Contas dos Estados ou os Tribunais de Contas dos Municípios não são integrantes dos Poderes Legislativos estaduais ou municipais.
Em face disso, não é imperativo que os membros de um Tribunal de Contas sejam escolhidos, livremente, pelo Poder Legislativo ao qual ele deve auxiliar, podendo essa escolha recair – como aqui se propõe – sobre nomes indicados por setores da sociedade civil.
Uma vez que a Constituição exige, para quem vier a compor os Tribunais de Contas, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública (art. 73, § 1º, inciso III), entendemos que os membros dos Conselhos fiscais ligados a essas áreas são as pessoas mais indicadas para apontarem aqueles que possuem tais conhecimentos, afastando-se, dessa forma, o risco de indicações e escolhas meramente políticas.
A participação da sociedade civil, ainda, é fortemente recomendada, para os Estados Partes, pela Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção – CNUCC na promoção e formulação das políticas e medidas administrativas destinadas ao combate à corrupção (lembrando que os Tribunais de Contas são importantes órgãos de combate à corrupção). A referida Convenção foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro do mesmo ano.
Transcrevemos, a seguir, os artigos 5º e 13 da CNUCC.
“Art. 5º. Políticas e práticas de prevenção da corrupção
Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de render contas” (sublinhamos).
“Art. 13. Participação da sociedade
1. Cada Estado Parte adotará medidas adequadas, no limite de suas possibilidades e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para fomentar a participação ativa de pessoas e grupos que não pertençam ao setor público, como a sociedade civil, as organizações não governamentais e as organizações com base na comunidade, na prevenção e na luta contra a corrupção, e para sensibilizar a opinião pública a respeito à existência, às causas e à gravidade da corrupção, assim como à ameaça que esta representa. Essa participação deveria esforçar-se com medidas como as seguintes:
................................................................................” (sublinhamos).
Assim, ao retirarmos do Executivo Federal a faculdade de escolher alguns dos membros do Tribunal de Contas da União e ao estabelecermos que cinco desses membros venham a ser escolhidos, pelo Congresso Nacional, dentre aqueles indicados em listas encaminhadas pelos Conselhos Federais de Contabilidade, de Economia, de Administração e da Ordem dos Advogados do Brasil – cientes, sobretudo, de que os Estados membros, os Municípios e o Distrito Federal deverão adotar o modelo federal aqui estabelecido – estamos tão somente contribuindo para o fortalecimento e uma maior transparência do controle financeiro exercido pelo Poder Legislativo e pela Corte de Contas e, ainda, para uma participação mais efetiva de setores da sociedade civil na fiscalização dos recursos públicos.”
Além do fato de que a participação de membros de setores da sociedade civil não ser adotada nas Cortes de Contas europeias, não fica elucidado por que a fundamentação da PEC não trouxe à colação o conteúdo dos artigos 6º e 7º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. Esses dispositivos são mais esclarecedores quanto ao papel da sociedade civil no combate à corrupção, correspondendo ao que se denomina de “controle social”:
Artigo 6
Órgão ou órgãos de prevenção à corrupção
1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, garantirá a existência de um ou mais órgãos, segundo procede, encarregados de prevenir a corrupção com medidas tais como:
a) A aplicação das políticas as quais se faz alusão no Artigo 5 da presente Convenção e, quando proceder, a supervisão e coordenação da prática dessas políticas;
b) O aumento e a difusão dos conhecimentos em matéria de prevenção da corrupção.
2. Cada Estado Parte outorgará ao órgão ou aos órgãos mencionados no parágrafo 1 do presente Artigo a independência necessária, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, para que possam desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida. Devem proporcionar-lhes os recursos materiais e o pessoal especializado que sejam necessários, assim como a capacitação que tal pessoal possa requerer para o desempenho de suas funções.
3. Cada Estado Parte comunicará ao Secretário Geral das Nações Unidas o nome e a direção da(s) autoridade(s) que possa(m) ajudar a outros Estados Partes a formular e aplicar medidas concretas de prevenção da corrupção.
Artigo 7
Setor Público
1. Cada Estado Parte, quando for apropriado e de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, procurará adotar sistemas de convocação, contratação, retenção, promoção e aposentadoria de funcionários públicos e, quando proceder, de outros funcionários públicos não empossados, ou manter e fortalecer tais sistemas. Estes:
a) Estarão baseados em princípios de eficiência e transparência e em critérios objetivos como o mérito, a eqüidade e a aptidão;
b) Incluirão procedimentos adequados de seleção e formação dos titulares de cargos públicos que se considerem especialmente vulneráveis à corrupção, assim como, quando proceder, a rotação dessas pessoas em outros cargos;
c) Fomentarão uma remuneração adequada e escalas de soldo eqüitativas, tendo em conta o nível de desenvolvimento econômico do Estado Parte;
d) Promoverão programas de formação e capacitação que lhes permitam cumprir os requisitos de desempenho correto, honroso e devido de suas funções e lhes proporcionem capacitação especializada e apropriada para que sejam mais conscientes dos riscos da corrupção inerentes ao desempenho de suas funções. Tais programas poderão fazer referência a códigos ou normas de conduta nas esferas pertinentes.
2. Cada Estado Parte considerará também a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos.
3. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de partidos políticos.
4. Cada Estado Parte, em conformidade com os princípios de sua legislação interna, procurará adotar sistemas destinados a promover a transparência e a prevenir conflitos de interesses, ou a manter e fortalecer tais sistemas.
Ademais, é possível constatar que a participação da sociedade civil, conforme prega a Convenção, não inclui a indicação de membros de grupos para órgãos públicos porque isso conflitaria com o disposto no art. 7º da Convenção. Fica ainda mais clara a ideia quando se transcreve as hipóteses de participação, que foi suprimida na fundamentação da PEC: (sem destaques no original)
“(...). Essa participação deveria esforçar-se com medidas como as seguintes:
a) Aumentar a transparência e promover a contribuição da cidadania aos processos de adoção de decisões;
b) Garantir o acesso eficaz do público à informação;
c) Realizar atividade de informação pública para fomentar a intransigência à corrupção, assim como programas de educação pública, incluídos programas escolares e universitários;
d) Respeitar, promover e proteger a liberdade de buscar, receber, publicar e difundir informação relativa à corrupção. Essa liberdade poderá estar sujeita a certas restrições, que deverão estar expressamente qualificadas pela lei e ser necessárias para: i) Garantir o respeito dos direitos ou da reputação de terceiros; ii) Salvaguardar a segurança nacional, a ordem pública, ou a saúde ou a moral públicas.
2. Cada Estado Parte adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgão pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos, quando proceder, para a denúncia, inclusive anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção.”
Para cumprir eficazmente o que prega a Convenção é salutar que participem do corpo decisório servidores públicos que tenham dedicado sua carreira às finanças públicas. E no transcorrer dessa carreira, é fundamental que haja programas de formação e capacitação para que o corpo técnico tenha maior capacitação nas áreas afetas ao controle.
Na graduação em direito, cadeiras como a de direito financeiro são matérias acessórias, assim como a contabilidade pública é no curso de graduação em contabilidade. Da mesma forma, são acessórias, quando previstas na grade curricular, as matérias referentes ao setor público nos cursos de graduação em economia e em administração. Os ensinamentos transmitidos nesses cursos somente serão úteis no âmbito do Tribunal de Contas se envoltos na sua missão constitucional e na aplicação prática de cada um desses conhecimentos em conjunto com os demais. Assim, pouco útil será a participação de um advogado no corpo decisório de uma corte de Contas se sua atividade profissional fosse voltada ao direito trabalhista ou ao direito penal, por exemplo. Assim como o contador atuante na contabilidade bancária também terá pouca utilidade no cotidiano dos julgamentos a cargo de um Tribunal de Contas.
E ao se pensar nos cursos de especialização strictu sensu (mestrados e doutorados), conclui-se pela raridade daqueles voltados a assuntos afetos a Tribunais de Contas.
A valorização dos auditores e dos servidores dos Tribunais de Contas, assegurando-lhes as vagas de Ministros e Conselheiros, se mostra atitude mais consentânea com a eficiência e a busca de critérios objetivos como o mérito, a equidade e a aptidão, conforme previsto no art. 7º da Convenção, bem como supre o anseio colocado em diversas PECs, de que os cargos de Ministros deveriam ser preenchidos por concurso público.
Aliás, a valorização do servidor público, adotando-se o paradigma europeu, deveria abranger os servidores de todos os poderes que dedicam sua carreira à fiscalização financeira, contábil, orçamentária, operacional e patrimonial, em especial aqueles pertencentes aos quadros do sistema de controle interno e externo.
O Tribunal de Contas tem suas funções específicas, não sendo recomendável, com raríssimas exceções, tornar ainda mais específico o que já é especializado.
A especificação de carreiras para provimento dos cargos de servidores nos tribunais de contas estaduais vai de encontro a isso. Novamente, serve o Tribunal de Contas da União como paradigma, já que não exige especificação por áreas de formação para o preenchimento dos cargos de nível superior.
Aliás, instituições que são apontadas como modelos de formação e capacitação de seus quadros, como a Receita Federal e a Polícia Federal, também adotam o modelo usado pelo TCU no preenchimento de seus quadros. Cabe a esses órgãos a continuada capacitação e aperfeiçoamento de seus servidores, haja vista que seus afazeres não são de domínio amplo na sociedade.